quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Feto autor de ação?


Interessou-me a matéria jornalística publicada, na qual se informa que o feto de Wanessa Camargo foi arrolado como autor da ação civil para reparação de danos morais, decorrente do infeliz comentário do "humorista" Rafinha, em que ele teria afirmado que "comeria" ela e o feto.[1]
A ação tem natureza jurídica controvertida até o presente momento, preponderando a tese de que ela é o direito autônomo e abstrato ao exercício da jurisdição ou o poder de invocar a tutela jurisdicional. Destarte, enquanto direito autônomo e abstrato, estando ela promovida, é um direito subjetivo. No entanto, enquanto poder de invocar a tutela jurisdicional, a ação não é direito subjetivo e o Juiz pode indeferir a petição inicial por faltar alguma das suas condições.
São condições de toda ação: (a) possibilidade do pedido – a ser apreciada juridicamente; (b) interesse de agir – o interesse se desdobra em três: necesssidade, utilidade e adequação; (c) legitimidade (mais conhecida como legitimatio ad causam) – esta deve ser analisada sob dois enfoques: a legitimidade ativa (que diz quem pode agir) e a passiva (esta informa quem pode ser demandado).
Posso afirmar que o feto não detém personalidade jurídica. Destarte, não é capaz de ser titular de direitos e obrigações. No âmbito patrimonial, sua excepcional legitimação para estar em juízo como parte se dará na tutela de direitos futuros, condicionados ao nascimento com vida. Outrossim, ele tem os direitos fundamentais à vida e a saúde, as quais são protegidas desde a concepção. Porém, estender o âmbito de proteção à honra, data venia, será pretender elastecer exageradamente o mesmo.
As pessoas passam a deter personalidade jurídica (serem capazes de adquirir direitos e obrigações) com o nascimento com vida. Seria estranho, caso a mãe viesse abortar e os ascedentes ou colaterais pudessem herdar do nascituro como se ele fosse titular de direitos patrimoniais (quando o nascituro figura em uma sucessão mortis causa, protege-se expectativa de direito - caso não nasça com vida, não haverá direito sucessório, mas sobrepartilha).
Ao meu sentir, os causídicos estão construindo uma tese que esbarra na impossibilidade jurídica do pedido, sendo razoável o juízo civil indeferir a petição inicial. O que não se poderá admitir de forma alguma é a eventual sentença condenatória à reparação por danos morais incluir o nascituro como titular de tal direito subjetivo.
Existem "pessoas processuais", as quais, mesmo não detendo personalidade jurídica, tem legitimidade para estar em juízo para defesa de direitos, v.g., espólio, massa falida etc. Estas, como regra, defendem direitos subjetivos de terceiros, eis que incapazes de adquirir direitos e obrigações.
O Código Penal tem crimes relativos às ofensas contra os mortos, mas estes não serão sujeitos passivos. Como o direito protege tão-somente pessoas – o feto, em sentido jurídico, não é uma pessoa -, o sujeito passivo nos crimes relativos aos mortos serão pessoas (portanto, vivas), em face do sentimento religioso que elas tem perante os mortos.
No tocante o direito fundamental vida (não se pode falar em liberdade do feto porque é absolutamente impossível do ponto de vista prático) a proteção jurídico-criminal tem em vista esse bem jurídico fundamental, sendo que a proteção à saúde é consectário lógico da necessidade de se assegurar a vida extra-uterina de quem está por nascer. Todavia, no âmbito criminal, ter-se-á em vista também a gestante, sendo agravante genérica e, às vezes, causa de aumento de pena, o crime perpetrado contra a mulher grávida.
Não se pode admitir que pessoa morta (ou quem não nasceu) tenha honra a tutelar porque este é um bem jurídico de pessoa, coisa que o nascituro não o é. Ele até pode ter expectativa de um direito subjetivo, mas que não pode ser titular do direito ter à honra. Por isso, a reparação do dano não poderá ter como fato gerador a ofensa à honra de quem não é pessoa.
Honra subjetiva é o valor que uma pessoa tem em relação a si mesma (beleza, honestidade, intelectualidade etc.), enquanto que a honra objetiva é aquela que se tem perante a coletividade. Todavia, não se olvide, dignidade e honra são bens jurídicos de pessoas.
A palavra honra, segundo o Vocabulário Jurídico de Plácido e Silva, decorre de honor, que “indica a dignidade de uma pessoa”. Assim, como o Direito só tutela pessoas (quando se protege animais e o meio ambiente se tem em vista a proteção - da vida, da saúde, da dignidade etc. - de pessoas), não há como falar em defesa da honra de quem não é pessoa natural ou pessoa jurídica.
Pergunto (espero que não ocorra a hipótese, mas ela é possível): caso uma sentença venha a ser proferida e haja o seu trânsito em julgado antes do nascimento de nascituro que teve reconhecido em seu favor o direito subjetivo ao recebimento de valores para reparação de danos morais. Vindo ele a morrer juntamente com os seus genitores, em acidente que precede o parto, gerará direitos sucessórios?
O exposto me leva a concluir que o pedido é absurdo, devendo ser indeferido inicialmente pelo juízo civil. No entanto, caso a notoriedade dos fatos constranjam inicialmente o juízo, deverá ao final, no mérito, julgar improcedente o pedido, eis que não há honra objetiva ou subjetiva a tutelar.


[1] VASCONCELOS, Frederico. Feto de Wanessa é autor de processo contra Rafinha Bastos. São Paulo: Folha.com, 19.10.2011, 17h39. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/993322-feto-de-wanessa-e-autor-de-processo-contra-rafinha-bastos.shtml>. Acesso em: 20.10.2011, às 8h04.


4 comentários:

Jennifer Louise disse...

Professor o sr. é um mestre admiravel! Me orgulho de ter sido sua aluna!

Adriana Soares disse...

Muito bom seu texto, além de esclarecedor!

Adriana Soares disse...

Muito bom seu texto. Fazia um tempo que procurava argumentos jurídicos a respeito do caso. Parabéns!

Sidio Rosa de Mesquita Júnior disse...

Muito obrigado pelos comentários elogiosos. O objetivo deste "blog" é acrescer alguma coisa aos (sub)sistemas jurídico e filosófico, sendo que os comentários como os de vocês demonstram que estamos alcançando o nosso objetivo.