quarta-feira, 9 de maio de 2018

O processo licitatório na visão da Procuradoria-Geral Federal


Senhoras e Senhores, bom dia!*
Fico envaidecido em me manifestar perante público tão seleto. Inquieto-me aqui com o conceito de democracia ao verificar que estou perante uma elite pensante, em que este auditório representa significativo percentual dos portadores do título de Doutor existentes em todo território nacional.
Como palestrante, eu deveria ser um especialista no assunto e, confesso, o meu mestrado foi sobre imputação objetiva, uma teoria do crime com reflexos na teoria da pena. Já o meu doutorado, seguindo a linha funcionalista da pesquisa do mestrado, teve por objeto de estudo o funcionalismo e o garantismo na defesa de direitos fundamentais no processo criminal. Assim, é muita ousadia a minha ao estar aqui, eis que a licitação é apenas uma atividade que não tem ensejado, talvez por negligência minha, profundos estudos. De todo modo, tenho uma prática, acerca da licitação, que se iniciou com a minha investidura e início do exercício no então cargo de Procurador Autárquico, isso em 25.10.1996.
Inicialmente, apresento uma noção de licitação, sobre a qual De Plácido e Silva afirma:
LICITAÇÃO. Do latim licitatio, dos verbos liceri ou licitari (lançar em leilão, dar preço, oferecer lanço) possui o vocábulo, em sentido literal, a significação do ato de licitar ou fazer preço sobre coisa posta em leilão ou a venda de em almoeda. Assim, não se confunde com o leilão ou com a hasta pública, porque é tecnicamente parte deles, isto pois é o lançamento do preço, a oferta do preço.[1]
No entanto, estaremos tratando da licitação como um processo e este como um conjunto de atos coordenados entre si, tendentes à aplicação da lei material ao caso concreto.[2] Vê-se que o objetivo da licitação é efetivar os fins da Lei n. 8.666, de 21.6.1993, especialmente os de assegurar a negociação mais vantajosa para a administração pública. Mas, em tudo, respeitando aos diversos princípios orientadores do Direito em geral.
Volto-me inicialmente a nós, os denominados intelectuais.
Afirmamos que as questões técnicas devem ser decididas por especialistas e as questões políticas pelo povo. Essa proposição antiga, que nos advém desde Platão, cria alguns imbróglios quase intransponíveis visto que algumas pautas, relativas à cibernética, à biotecnologia, à física quântica e outras, nos levam a questionar a legitimidade de se destinar as decisões de tais questões segundo a regra da maioria. Mas, pergunto-me, com Celso Fernandes Campilongo, a democracia majoritária deverá ceder lugar à tecnocracia elitista à qual pertencemos?[3]
O grande problema é que temos vícios sedimentados por uma fé, ao meu sentir, um dos pontos centrais de toda ação humana, considerando oportuno o que se pode extrair de Habermas acerca das diferentes ações na sociedade complexa:

Popper introduz distintos conceitos de mundo para, segundo Habermas, evidenciar diversas regiões do ser dentro de um único mundo objetivo. Mas, Habermas diz que não se valerá da linguagem de Popper para explicar a ação. Então, inicia tratando do conceito de ação teleológica, que é o centro da teoria filosófica da ação. Ocorre que ela se amplia e se transforma em ação estratégica. Esta é utilitarista, não tendo apenas em vista os fins da ação teleológica, mas também os meios, exemplificando com a teoria dos jogos da Economia.
Outra espécie da ação é a regulada por normas. Ela orienta atores, em princípios solitários, a se orientarem por valores comuns quando forem se interagir com outros atores. Nesse sentido, as normas expressam um acordo existente em um grupo social.
Habermas fala, também, da ação dramatúrgica, na qual os atores se colocam como participantes de uma interação, constituindo uns aos outros como participantes de um público, regulando a interação e o recíproco acesso aos demais à esfera dos próprios sentimentos.
Depois de todas essas espécies de ação que foram mencionadas, Habermas arremata:
Finalmente, el concepto de acción comunicativa se refiere a la interacción de al menos dos sujetos capaces de lenguaje y de acción que (va sea con medios verbales o con medios extraverbales) entablan una relación interpersonal. Los actores buscan entenderse sobre una situación de acción para poder así coordinar de común acuerdo sus planes de acción y con ello sus acciones.[4]
Devo dizer que a noção de realidade, assim como a de verdade, não pode advir da comunicação. Esta é representação e, como tal, não pode evidenciar a realidade. Desse modo, a ação comunicativa nada mais será do que mais uma representação discursiva na sociedade complexa.[5]
Sustento que a ação comunicativa habermasiana é mais uma tese discursiva complexa da qual nós juristas costumamos nos apropriar e utilizar como se fossem nossas. Digo isso, em relação ás pessoas em geral, quando pensam que podem se apropriar da res publica. E, nós que aqui nos reunimos para falar de licitação, temos em vista, no mínimo, uma ação estratégica, na qual teremos em vista o respeito à isonomia e à impessoalidade para alcançar, com a máxima publicidade, um fim público, cujo meio será o processo administrativo licitatório.

É nesse contexto que insiro a Procuradoria-Geral Federal e chamo a atenção para o fato de, recentemente, o Min. Gilmar Ferreira Mendes, defendendo-se das hostilizações que vem sofrendo, em discussão perante o Plenário do Supremo Tribunal Federal, falou orgulhosamente sobre a sua iniciativa de ter retirado as Procuradorias Autárquicas da administração federal indireta, estabelecendo uma carreira única, especialmente porque os Procuradores Autárquicos das Universidades Federais estavam em conluio com a administração superior dessas instituições para perderem ações judiciais que os favoreceriam,[6] como é o caso da Universidade de Brasília e da Universidade Federal do Rio de Janeiro que ainda pagam, por força de liminar, a URP (Unidade de Referência de Preços), cujos pagamentos, há muito tempo, foram declarados inconstitucionais pelo STF. É por isso, Senhoras e Senhores, que não mais existe o cargo de Procurador Autárquico, tendo sido criada a Medida Provisória n. 2.048-26, de 25.6.2000, que instituiu o cargo de Procurador Federal.

Hoje, digo a esse seleto grupo deste auditório, que vige a Medida Provisória n. 2.229-43, de 6.9.2001, “congelada” pela Emenda à Constituição n. 32. Tal medida provisória constitui renumeração da Medida Provisória n. 2.048-26/2000. E, com a Lei n. 10.480, de 2.7.2002, o Procurador Federal foi colocado claramente na posição de membro da Advocacia-Geral da União, cuja vinculação a ela é expressa (art. 9º),[7] a qual tem o reforço da Lei n. 13.327, de 29.7.2016, que institui direitos, atribuições e prerrogativas aos Membros da AGU.

Senhoras e senhores, nós os Procuradores Federais, portanto, estamos junto às Instituições Federais de Ensino Superior, como entes externos, para ajudar e também para controlar as atividades administrativas. Nessa nova estruturação da Advocacia-Geral da União e dos órgãos a ela vinculados, emergiu a discussão na nossa colocação entre os Poderes do Estado, sendo que o STF decidiu que a AGU, assim como o Ministério Público, tem a natureza de órgão essencial à administração da Justiça, embora os Procuradores Federais ocupem espaços das autarquias, não as integram, estando separados dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário.[8] Academicamente, digo que temos natureza executiva, embora haja uma excrecência constitucional ao nos deixarem desvinculados de todos os Poderes reconhecidos como sendo do Estado (Legislativo, Executivo e Judiciário). Assim, a nossa defesa deverá ser a do Estado, independentemente de quem seja o seu governante.

Desde 2010 a AGU vem envidando esforços para otimizar e padronizar suas atuações consultivas, o que não autoriza dizer que haverá uniformização plena, visto que, em uma análise técnica, poderá um Membro da AGU adotar posição minoritária ou inovadora, o que é bom que exista, a fim de possibilitar a evolução da atuação jurídica, pois, doutas e doutos ouvintes, uma nova ordem jurídica só poderá emergir a partir do momento que percebemos que é necessária a a abertura ao novo. De qualquer modo, foi editado o Manual de Boas Práticas Consultivas, que já se encontra em sua 4ª edição, sendo a última do ano de 2016.[9]

Doravante, ficarei adstrito ao processo licitatório, vinculando-o ao referido Manual de Boas Práticas Consultivas, esclarecendo que a Lei n. 8.666, de 21.6.1993, é a lei geral para regulação dos contratos e demais negócios jurídicos na administração pública, embora, na prática, ela seja mais subsidiária do que a que diretamente se aplicará às situações concretas, visto que será preponderante a Lei n. 10.520, de 17.7.2002, que regula o pregão e este, especialmente o eletrônico, deverá ser a regra. Digo isso porque para aquisições de bens de uso comum e para contratação de serviços, também comuns, há preferência normativa pelo pregão.

Para a compra de bens e a contratação de prestadores de serviços, existirão diferentes modalidades de licitação, sendo que compactuo do entendimento de Jacoby, no sentido de que deveríamos nos valer mais da adesão à ata de registro de preços,[10] a qual, não obstante a posição da administração pública de ela não constitui propriamente um processo licitatório, entendemos que se trata de especial forma de licitação.

Com fulcro no art. 23 da Lei n. 8.666/1993, informo que as modalidades de licitação foram estabelecidas inicialmente com base no valor, a saber:

Obras e serviços de engenharia
Compras e demais contratações
Contratação direta, até R$ 15.000,00
Contratação direta, até R$ 8.000,00
Convite, até R$ 150.000,00
Convite, até R$ 80.000,00
Tomada de preços, até R$ 1.500.000,00
Tomada de preços, até R$ 650.000,00
Concorrência, acima de R$ 1.500.000,00
Concorrência, acima de R$ 650.000,00
* Independentemente do valor, para bens e serviços comuns, preferir-se-á o pregão.
** Compra ou contratação em valores superiores a R$ 150.000.000,00, deverá ser precedida de audiência pública.

Ocorre que modificamos essa perspectiva para estabelecermos uma nova modalidade de licitação, que é o pregão, uma espécie de leilão invertido (Lei n. 10.520/2002). Sua forma eletrônica foi regulada pelo Decreto n. 5.450, de 31.5.2005, que hoje é, conforme recomendação do Tribunal de Contas da União, de quem as decisões têm poder normativo  (Lei n. 8.443, de 16.7.1992, art. 3º). Isso é severamente criticado pela doutrina porque pode dar margem à fraude, violando a isonomia, a ampla competição e a publicidade.[11]

Emergem alguns problemas, peculiares às Instituições Federais de Ensino Superior (IFES), especialmente porque são alvos de Termos de Execução Descentralizada (TED), regulados pelo Decreto n. 6.170, de 25.7.2007. Isso decorre de uma velha norma costumeira, estabelecida na administração pública, a saber:

– É proibida a devolução de recursos orçamentários!

Costumamos dizer que se recursos forem devolvidos, o próximo orçamento será reduzido. Então, quando os órgãos públicos da administração direta e indireta percebem que têm receitas sobrando, repassam para as IFES que vão poder enfiar em uma fundação de apoio e executar noutros exercícios financeiros.

Concluo transcrevendo, a título de provocação, algo que já escrevi academicamente:

É antiga a prática de utilização de fundações de apoio para fins ilícitos e imorais, o que levou o TCU, em 1.992, a cogitar a extinção de tal espécie de fundação. Sobre o assunto, Di Pietro, reservou um capítulo, intitulado "Da Utilização Indevida da Parceria com o Setor Privado como Forma de Fugir ao Regime Jurídico Publicístico",[12] o que induz à certeza que toda participação de fundação de apoio na administração pública é merecedora de especial cautela, sendo que a Procuradoria Federal Especializada junto à IFES deverá adotar postura intransigente para defesa dos princípios orientadores do Direito Público em geral e, por consequência, do patrimônio público.[13]
Por favor, não se irritem comigo, estou à disposição de todos para ajudar. Anotem os meus contatos. Espero que não precisem do meu apoio na área da minha expertise, a criminal, mas se precisarem, estarei à disposição.  E os provoquei porque espero que haja alguma pergunta, especialmente porque não podemos nos olvidar do Acórdão TCU 2731/2008.


* Palestra proferida em Pelotas-RS, em 9.5.2018.

[1] SILVA, De Plácido e. Vocabulário jurídico. 20. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p. 492.
[2] MESQUITA JÚNIOR, Sidio Rosa de. Prescrição penal. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2007.
[3] CAMPILONGO, Celso Fernandes. Direito e democracia. 2. ed. São Paulo: Max Limonad, 2000. p. 47.
[4] HABERMAS, Jürgen. Teoria de la acción comunicativa. Madrid: Trotta, 2.010. t. I e II. p. 118.
[5] MESQUITA JÚNIOR, Sidio Rosa de. Habermas e as diversas formas de “ação”. 22.11.2011. Disponível em: <https://sidiojunior.blogspot.com.br/2011/11/habermas-e-as-diversas-formas-de-acao.html>. Acesso em: 3.5.2018, às 2h02.
[6] STF. Plenário. HC 143.333. Rel. Edson Fachin. Disponível em: <http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5178344>. Acesso em: 3.5.2018, às 10h16. Lamentavelmente, a TV Justiça retirou do ar os debates, em que se apresentam as duras críticas do Min. Gilmar Mendes à corrupção. Também, o inteiro teor de cada voto ainda não está disponível na página do STF.
[7] Discute-se doutrinariamente e já há até ação judicial em que se impugna a alteração da estrutura da AGU por lei ordinária, visto que é matéria reservada à lei complementar. De todo modo, não podemos nos olvidar da finalidade pública que motivou a alteração legislativa.
[8] BRASIL. STF. 1ª Turma. RE 558.258-SP. Rel. Ricardo Lewandowski. (o que fica explícito no voto do Min. Dias Toffoli). Disponível em: <https://jurisprudencia.s3.amazonaws.com/STF/IT/RE_558258_SP_1308254316901.pdf?Signature=v8nDeJmDNU8riNoit2YS5RLShDU%3D&Expires=1525810146&AWSAccessKeyId=AKIAIPM2XEMZACAXCMBA&response-content-type=application/pdf&x-amz-meta-md5-hash=26c28e0396186352b15f7552a7f12dfb>. Acesso em: 8.5.2018, às 17h25.
[9] Estabelecido pela Portaria Conjunta n. 1, de 2.12.2016, firmada por: (1) Secretário-Geral se Consultoria; (2) Consultor-Geral da União; (3) Corregedor-Geral da Advocacia-Geral da União; (4) Procurador-Geral do Banco Central; (5) Procurador-Geral da Fazenda Nacional; (6) Procurador-Geral Federal; (7) Procuradora-Geral da União; e (9) Secretária-Geral De Contencioso.
[10] FERNANDES, Jorge Ulisses Jacoby. Contratação direta sem licitação. 10. ed. Belo Horizonte, 2016.
[11] Idem. Preferência pelo uso de pregão eletrônico: uma recomendação do TCU. Teresina: Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, ano 22n. 521410.10.2017. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/61040>. Acesso em: 8.5.2018, às 6h59.
[12] Di Pietro, Maria Sylvia Zenella. Parcerias na administração pública: concessão, permissão, franquia, terceirização, parceria público-privada e outras formas. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2.008. p. 278-289.
[13] MESQUITA JÚNIOR, Sidio Rosa de. Universalidade do acesso e gratuidade do ensino superior. Teresina: Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, ano 14n. 21056.4.2009. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/12580>. Acesso em: 9.5.2018.