segunda-feira, 9 de outubro de 2023

O porte ilícito de psicotrópico para consumo pessoal

1. RAZÃO DE REVISITAR O TEMA

Um ex-aluno, hoje meu amigo, me encaminhou a direção eletrônica de um artigo que escreveu.[1] Li atentamente o texto e, por não concordar com tudo o que foi exposto, decidi fazer alguns comentários.

Gostei do artigo escrito por ele. Mas, a minha responsabilidade, como ex-Professor e amigo, me leva a expor algo sobre o que penso.

2. PORTAR OU CONSUMIR?

O autor era neófito em Direito quando escreveu o artigo. Talvez por isso tenha confundido o portar para consumo pessoal com consumir psicotrópico. O complicador de acusar quem está embriagado por psicotrópico ilícito sem que exista uma quantidade mínima da susbstância é porque não poderão ser feitos laudos preliminares e definitivos, essenciais à processualística criminal condenatória por delitos de psicotrópicos ilícitos.

O crime de porte para consumo pessoal está previsto no caput do art. 28 da Lei n. 11.343. de 23.8.2006, sendo que, academicamente, escrevi sobre esse preceito legal:

Todo título III da lei em comento versa sobre as condutas tendentes ao uso e à dependência de psicotrópicos ilícitos. Nos capítulos anteriores, verificamos medidas preventivas e fixação de uma política para acompanhamento e tratamento dos usuários. Este cap. III do Tít. III adota medidas mais drásticas, tratando como crime o porte de substância entorpecente para consumo próprio.

3.4.2 Do núcleo do tipo e da sua classificação doutrinária

Trata-se de crime comissivo, uma vez que exige ação, sendo que a lei prevê cinco condutas típicas, as saber: “adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal”. Passemos à análise de cada palavra ou expressão:

(...)

É crime comissivo (exige ação, embora possa ser praticado mediante omissão do garante), unissubjetivo (pode ser praticado por uma única pessoa, nada obstando o concurso eventual de pessoas), unissubsistente (nas modalidades transportar, guardar e trazer consigo, não admite tentativa, uma vez que a conduta típica não pode ser fracionada, sendo os atos preparatórios impuníveis), plurissubsistente (na modalidade adquirir a tentativa é punível, haja vista que a conduta pode ser fracionada), de perigo (não exige a ofensa ao objeto jurídico, bastando a ameaça a ele), doloso (exige a vontade ou o assumir o risco do resultado), de tipo anormal (o tipo contém, além de elementos objetivos – núcleo e elementos descritivos – o tipo contém elementos normativo e subjetivo), de tipo de núcleo composto (a conduta típica se caracteriza por mais de uma conduta – mais de um verbo), de tipo de núcleo alternativo (não é necessária a realização de todos os núcleos do tipo, bastando uma das condutas nele descritas) e vago (o sujeito passivo não é personificado).

A classificação segundo a conduta do agente, permite falar em crime comissivo, omissivo e comissivo por omissão. O primeiro exige uma ação, o segundo um deixar de agir (omissão) e o terceiro é aquele em que a omissão do agente representa uma ação contra a lei (a omissão do garante está prevista no art. 13, § 2º, do CP). Daí, o pai poder ser responsabilizado pela conduta típica do filho adolescente que guarda em casa substância psicotrópica ilícita sem nada fazer para impedir a conduta.

(...)

Gilberto Tuhms e Vilmar Pacheco Filho informam que, embora não seja pacífico, é dominante o entendimento, no STJ e no STF, de que a conduta relacionada com psicotrópico ilícito é de perigo presumido ou abstrato, não interessando a quantidade apreendida, tampouco se a droga tem o condão de ofender a saúde pública.[2] Concordo com a posição dos autores, construída no sentido de que “só uma paranóia acusatória justifica um processo criminal por fragmentos de droga, na medida em que grandes quantidades são comercializadas e os órgãos de repressão são incapazes de coibir ou são coniventes com a traficância... preocupar-se em processar usuário pela posse ínfima de quantidade de droga significa grave erro estratégico de persecução penal”.[3]

Os crimes da Lei nº 11.343/2006 são formais, portanto de perigo, mas isso não importa em ver um perigo meramente potencial ou abstrato. Em face do princípio nullum crimen iniura,  a lei criminal só pode reprovar a conduta cause um dano ou um risco concreto a bem de terceiro, sendo inconcebível incriminar o perigo abstrato.

No tocante ao princípio da insignificância, a quantidade de psicotrópico insuficiente para afetar a atividade neurológica de quem o porta, não pode causar um dano sequer a si mesmo, quanto mais à saúde pública. Daí ser coerente entender admissível o princípio da insignificância.

(...)

3.4.4 Elemento normativo do tipo

“Drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar” constitui o elemento normativo do tipo. Como a lei não faz referência à modalidade negligente (aquela em que há omissão ao dever de cuidado), que seria normativa, esta, in casu, fica fora das possibilidades. Desse modo só fica como elemento normativo, aquele que exige a compreensão de outra norma, aquele texto que consta entre aspas no início deste parágrafo.

Trata-se de norma penal em branco em sentido estrito e, conforme afirmei anteriormente, é constitucional. Não entendo cabível pretender inviabilizar o próprio Direito Criminal por considerar inconstitucional a norma criminal em branco em sentido estrito. Assim como Luigi Ferrajoli critica a posição de Luhmann, uma vez que a considera um retorno ao jusnaturalismo,[4] bem como entende que o abolicionismo tende a um anarquismo insustentável,[5] seu garantismo também não pode ser extremado, uma vez que a idéia da estrita legalidade poderá levar à redução do Juiz ao retrógrado status de “boca da lei”. O Juiz não pode ser aquele que simplesmente diz o que o texto legal enuncia, é necessário assumir uma visão de que o sistema jurídico é mais amplo e que a norma jurídica será encontrada na sociedade global, às vezes, distante da lei escrita.

Alessandra Greco discorre sobre a imputação objetiva, apresentando uma noção sucinta sobre a mesma, a fim de afirmar que o crime de porte para consumo próprio deve ser mantido, visto que “não é admissível que se deixe de incriminar o risco que o portador gera na disseminação do vício”. Ademais, segundo ela, não se pode dizer que o fato da vítima ter se autocolocado na posição de risco exclui a imputação, pois o bem jurídico é a saúde pública.[6]

A posição exposta, ao meu sentir, está equivocada. A imputação objetiva propõe um direito criminal menos interventor e, nas palavras de Roxin, mais voltado à justiça do caso concreto.[7] Desse modo, a imputação objetiva, até mesmo em razão da sua fundamentação filosófica funcionalista, tende mais à extinção do crime de porte para consumo próprio.

3.4.5 Das penas cabíveis

3.4.5.1 Da inovação quase tardia

Luiz Flávio Gomes diz que houve descriminalização do porte para consumo próprio,[8] enquanto que Alexandre Bizzotto e Andréia Rodrigues dizem que houve despenalização da conduta.[9] Davi André Costa Silva sustenta que se concretizou uma medida despenalizadora mista.[10]

Sei que a classificação é essencial ao cientista, a fim de localizar topois e desenvolver o conhecimento tendente à localização da natureza do objeto de estudo. No entanto, concordo com von Liszt, no sentido de que as excessivas classificações são, na melhor hipótese, inúteis, e pela maior parte, não passam de exageros da ideia, próprios a induzir a erro.[11] Desnecessário é classificar as medidas despenalizadoras em próprias e impróprias, até porque as medidas despenalizadoras da Lei n. 11.343/2006 são apenas as da Lei n. 9.099/1995, nos casos em que esta for aplicável.

No art. 28 em comento há crime e pena, mas a lei está mais adequada ao DCrim mundial, que refuta a pena privativa de liberdade, optando por penas não privativas de liberdade, mas sem perderem o aspecto de sanção criminal. Aliás, a própria CF, prevê a cominação de várias espécies de penas e a prisão é apenas uma dentre as autorizadas por ela (art. 5º, inciso XLVI).

A posição de Luiz Flávio Gomes encontra obstáculo na própria lei, que trata da matéria no seu Cap. III do Tít. III, sob a rubrica “Dos crimes e das penas”. É um crime, sendo previstas (cominadas) penas não privativas de liberdade para quem os comete. No entanto, referido autor parte do art. 1º da “Lei de Introdução ao Código Penal” (Decreto-Lei n. 3.914, de 9.12.1941), que preceitua:

Considera-se crime a infração penal a que a lei comina pena de reclusão ou de detenção, quer isoladamente, quer alternativa ou cumulativamente com a pena de multa; contravenção, a infração penal, a que a lei comina, isoladamente, pena de prisão simples ou de multa, ou ambas, alternativa ou cumulativamente”.

É bom que um código tenha uma lei de introdução, mas o nosso CP, que é de 1940, tem lei de introdução de 1941. Pior foi com o CC de 1916, que teve lei de introdução, também, de 1941. Na verdade, as “leis de introdução” não poderiam receber esses nomes, uma vez que “introduziam” leis que já estavam em vigor. O pior é um autor, em pleno século XXI, se socorrer de uma lei ultrapassada para explicar a descriminalização do porte de psicotrópico para consumo próprio.

Embora a nova lei atenue um pouco o tratamento criminal a ser dispensado ao usuário e minimize algumas distorções em relação à equiparação de condutas diferentes que a Lei nº 6.368/1976 efetivava, muitos problemas persistem, sendo que é plenamente aceitável a crítica de Maria Lúcia Karam:

A simples posse para uso pessoal das drogas qualificadas de ilícitas, ou seu consumo em circunstâncias que não envolvam um perigo concreto, direto e imediato para terceiros, são condutas que dizem respeito unicamente ao indivíduo, à sua intimidade e às suas opções pessoais, não estando o Estado autorizado a intervir sobre tais condutas, ainda mais através da imposição de uma sanção, qualquer que seja sua natureza ou sua dimensão. Uma lei que repete violações a princípios e normas constantes das declarações universais de direitos e das constituições democráticas jamais poderá ser considerada um avanço”.[12]

No âmbito internacional, a Resolução n. 45/110 da Assembléia Geral das Nações Unidas estabelece as Regras Mínimas das Nações Unidas para a Elaboração de Medidas Não-Privativas de Liberdade (Regras de Tóquio), o que foi decidido na 68ª Sessão Plenária, de 14.12.1990, marcando a vontade de evitar a pena privativa de liberdade e fomentar a busca de caminhos menos onerosos e mais eficazes que a prisão.

A pena restritiva de Direito constitui efetiva pena, a qual, nos termos do CP, é autônoma (art. 44, caput). Na época da edição da Lei n. 3.914/1941, não se falava em pena restritiva de direito. Esta era concebida, no CP, como “pena acessória” (art. 67). A pena restritiva de direito, como a única possível, deve ser a regra, abandonando-se a cultura de que a prisão é a panacéia para todos os males.

O que se deve evitar é a banalização do Direito Criminal. Condutas reprováveis que não sejam efetivamente graves devem ser afastadas do âmbito do DCrim, reservando-se sua prevenção e repressão aos outros ramos do Direito. Ter uma infração criminal apenável com simples advertência verbal não me parece decorrência de uma séria política criminal. O mesmo se pode dizer de infrações puníveis com prisão, de 15 dias a 3 meses, eis que essa pena evidentemente só terá cunho retributivo, quando o DCrim, espera-se, deve ter por escopo maior a prevenção (geral e especial).[13]

Vê-se que praticar qualquer das condutas do art. 28, caput, da Lei n. 11.343/2006, constitui crime, sendo vedada a pena privativa de liberdade, ainda que o agente se recuse a cumprir a pena.

Inexiste no tipo o verbo usar. Assim, ter consumido psicotrópico ilícito, por si só não será crime. E, conforme se vê na transcrição de parte do meu livro, não houve despenalização ou descrinalização, isso sem embargo das posições em sentido contrário.

3. DESPENALIZAR OU DESCRIMINALIZAR?

O Superior Tribunal de Justiça firmou entendimento no sentido de que as condutas do art. 28 da Lei n. 11.343/2006 foram despenalizadas.[14] Alguns Ministros do Supremo Tribunal Federal, ao votarem no RE n. 635.659, mencionam esse aspecto, aduzindo que houve despenalização do porte para consumo pessoal, posição da qual – conforme transcrito do meu livro – discordo.

O que pretendem alguns Ministros do STF é a descriminalização ampla do porte do psicotrópico para consumo pessoal. Porém, os votos já concretizados tendem à descriminalização restrita ao porte da maconha.[15] O Min. André Mendonça pediu vista e pode segurar o processo consigo por longo tempo, na esperança que a modificação dos Membros do STF, leve a uma nova posição e assim prevaleça sua posição de Pastor de igreja evangélica, o que não é jurídico.

4. CONCLUSÃO

Estudo com a pretensão de desenvolver um Direito Criminal mais humano e menos interventor que aquele com o qual venho convivendo e verificando o seu recrudecimento em uma caminhada anticivilizatória. Porém, nenhum estudo pode ser despido de técnica e de racionalidade mínima.

O artigo que li e mencionei no início deste texto está bem escrito, sendo que o seu autor merece elogios. Porém, senti-me compelido a expor algumas considerações para ressaltar aspectos importantes da matéria em estudo.



[1] VILAS BOAS, Gustavo. Usar (consumir) drogas é crime? O uso de substâncias ilícitas e suas consequências jurídicas. Jusbrasil. Disponível em: <https://www.jusbrasil.com.br/artigos/usar-consumir-drogas-e-crime/699367719?_gl=1*1c76j7s*_ga*MTYwMDA1MDUwMi4xNjgyMzg4NDAx*_ga_QCSXBQ8XPZ*MTY5Njg2NTQxMi4zMTMuMC4xNjk2ODY1NDEyLjYwLjAuMA>. Acesso em: 9.10.2023, às 21h30.

[2] THUMS, Gilberto. PACHECO FILHO, Vilmar Velho. Leis antitóxicos: crimes, investigação e processo (análise comparativa das Leis 6.368/1976 e 10.409/2002). p. 4.

[3] Ibidem. p.5/6.

[4] FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2.002. p. 719.

[5] Ibidem. p. 201/202.

[6] GRECO, Alessandra Orcesi Pedro. Imputação objetiva e os crimes de entorpecentes. REALE JÚNIOR, Miguel (Coord.). Drogas: aspectos penais e criminológicos. Rio de Janeiro: Forense, 2.005. p. 119-140.

[7] ROXIN, Claus. Funcionalismo e imputação objetiva no direito penal. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 218-220.

[8] GOMES, Luiz Flávio (Coord.). Nova lei de drogas: comentada, artigo por artigo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 118/119.

[9] BIZZOTTO, Alexandre. RODRIGUES, Andreia de Brito. Nova lei de drogas: comentários à Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p. 39/40.

[10] SILVA, Davi André Costa. Art. 28 da Lei n. 11.343/2006. Do tratamento diferenciado dado ao usuário de drogas: medida despenalizadora mista. www.jus.com.br, 1.10.2006, 1h30.

[11] LISZT, Franz von. Tratado de direito penal alemão. Campinas: Russel, 2.003. t. 1, p. 280.

[12] ORTIZ, Fabíola. Legalização das drogas contra a violência. www.olharvirtual.ufrj.br, 19.10.2006, 4h20.

[13] MESQUITA JÚNIOR, Sidio Rosa de. Comentário à lei antidrogas: Lei n. 11.343, de 23.8.2006. São Paulo: Atlas, 1997. p. 30-36.

[14] STJ. 5ª Turma. AREsp 2.007.599. Notícias. Reformada decisão que não considerou crime a oferta de celular a policiais para evitar prisão por posse de droga. 17.5.2022. Disponível em: <https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/17052022-Reformada-decisao-que-nao-considerou-crime-a-oferta-de-celular-a-policiais-para-evitar-prisao-por-posse-de-droga-.aspx#:~:text=%22O%20artigo%2028%20da%20Lei,usu%C3%A1rios%20de%20drogas%22%2C%20afirmou.>. Acesso em: 9.10.,2023, às 22h33.

[15] STF. Tribunal Pleno. RE 635.659. Notícias. STF tem cinco votos para afastar a criminalização do porte da maconha para consumo próprio: o julgamento foi suspenso por pedido de vista do Ministro André Mendonça. 24.8.2023. Disponível em: <https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=512815&ori=1>. Acesso em: 9.8.2023, às 23h40.