RESUMO
O
presente artigo tem como objetivo analisar o consentimento da pessoa para o
tráfico destinado à prostituição, especialmente, o transnacional. O assunto
passará pela análise da Lei n. 13.344, de 6.10.2016, que entrou em vigor no dia
21.11.2016, o que evidencia a sua relevância e atualidade, até porque
decorrente de uma série de protocolos que deu ensejo à Convenção de Palermo,
restando saber se o consentimento do ofendido será causa de exclusão da ilicitude
ou da tipicidade, sendo que a pesquisa tenderá a demonstrar que o consentimento
do ofendido excluirá a tipicidade e, portanto, o fato típico.
Palavras chave: Prostituição Internacional. Crime.
Consentimento do ofendido. Tipicidade.
1. INTRODUÇÃO
Escolher
um tema para escrever um artigo acadêmico é algo complicado. Porém, entre
os movimentos de lei e ordem e o abolicionismo, será necessário verificar qual posição poderá ser adotada sobre a utilização de propagandas para
levarem brasileiras e brasileiros ao exterior para se prostituírem sob o manto
de trabalho, mas perdendo as dignidades, especialmente sexuais.
O
problema se centra na dúvida sobre o consentimento da pessoa para o tráfico
destinado à prostituição exclui a tipicidade ou a ilicitude. Partiremos de uma
única hipótese, que é a tendente a afirmar que o consentimento do ofendido será causa excludente da tipicidade.
Para
enfrentarmos o problema, trataremos de aspectos superficiais históricos, da
luta internacional por evitar o tráfico de pessoas, conjugando com a luta
internacional para evitar a violência contra mulheres.
Trabalharemos
com a hipótese de que nem todo assédio para levar pessoas ao exterior poderá
ser considerado crime, visto que, nem sempre, a dignidade da pessoa humana
estará em jogo.
A
relevância do tema é marcante, haja vista a luta internacional para evitar o tráfico
de pessoa, a motivação da Lei n. 12.015, de 7.8.2009, bem como a recente
publicação da lei n. 13.344, de 6.10.2016, que “Dispõe sobre a prevenção e
repressão ao tráfico interno e internacional de pessoas e sobre as medidas de
atenção às vítimas”.
2. DA DIGNIDADE À PROSTITUIÇÃO
Nesta seção
passaremos inicialmente pelo significado jurídico de dignidade, para,
conhecendo, desde o início, o conceito de prostituição, podermos enfrentar a
questão da dignidade em face da prostituição, a fim de sabermos o que
exatamente leva à prostituição e especialmente ao tráfico de pessoas para tais
fins. Para tanto, desde logo, aspectos históricos não poderão ser olvidados.
Como o escopo
desta pesquisa será buscar entender se o assédio de modelos brasileiras para
atuarem como prostitutas no exterior, não será enfrentada a questão da
prostituição masculina, a qual também passa pelo tráfico de pessoas, mas foge
do cerne do presente trabalho.
2.1 Significado jurídico complexo de
dignidade
Existem
discussões filosóficas, alheias ao objeto desta pesquisa, que indagam sobre a
cientificidade do Direito. No entanto, ela se norteará por aspectos científicos. Com isso,
procuraremos afirmar o quê é a dignidade na sua essência.
A dignidade da
pessoa humana consta da Constituição Federal, como um dos fundamentos da
República Federativa do Brasil (art. 1º, inc. III). Lexicologicamente, dignidade, do latim dignitas, é a qualidade de quem ou daquilo que é digno, é uma
autoridade moral, uma nobreza, um decoro ou uma respeitabilidade.
Canotilho,
inspirador do modelo analítico da Constituição Federal da República Federativa
do Brasil, se refere ao art. 2º da Constituição lusitana que prestigia a
dignidade da pessoa humana, expondo que é um princípio antrópico (relativo ou pertencente ao homem) que acolhe a
ideia pré-moderna e moderna da dignitatis-hominis,
ou seja, “do indivíduo conformador de si próprio e da sua vida segundo o seu
próprio projeto espiritual”.
Uma pessoa poder
firmar-se como ela mesma exigirá uma pluralidade de direitos que autorizarão a
ela ser distinguida das demais pessoas. Nesse sentido, afirma José Afonso da
Silva:
Dignidade da pessoa humana é um valor supremo que atrai o
conteúdo de todos os direitos fundamentais do homem, desde o direito à vida.
“Concebido como referência constitucional unificadora de todos os direitos
fundamentais [observam Gomes Canotilho e Vital Moreira], o conceito de
dignidade da pessoa humana obriga a uma densificação valorativa que tenha em
conta o seu amplo sentido normativo-constitucional e não uma qualquer ideia
apriorística do homem, não podendo reduzir-se o sentido da dignidade humana à
defesa dos direitos pessoais tradicionais. esquecendo-a nos casos de direitos
sociais, ou invocá-los para construir ‘teoria do núcleo da personalidade’
individual, ignorando-a quando se trate de garantir as bases da existência
humana. Daí decorre que a ordem econômica há de ter por fim assegurar a todos
existência digna (art. 170), a ordem social visará a realização da justiça
social (art. 193), a educação, o desenvolvimento da pessoa e seu preparo para o
exercício da cidadania (art. 205) etc., não como meros enunciados formais, mas
como indicadores do conteúdo normativo eficaz da dignidade da pessoa humana.
Em Gilmar Mendes,
Inocêncio Coelho e Paulo Gustavo Branco, encontra-se presente a ideia de
singularidade que representa a dignidade.
Assim, a dignidade é um conjunto de valores que permitirão à pessoas ser ela
mesma, em oposição à ideia de coletividade.
Robert Alexy vê a
dignidade da pessoa humana como norma e como princípio orientador de direitos
fundamentais que não tem caráter absoluto, mas na dicção da Constituição alemã,
é um princípio que deverá prevalecer quando houver colidência com outros princípios.
De toda sorte, conforme esclarece Virgílio Afonso da Silva, enquanto regra, a
dignidade de pessoa humana é imutável, mas é ponderável como todos os demais
princípios.
2.2 Rápida visão sobre a ilicitude
da prostituição
A
prostituição não é crime e, nem sempre, foi ou é imoral. No entanto, conforme
ensina Nelson Hungria, desde remota antiguidade, o lenocínio (intermediação
para a prostituição feminina), por sua vez, tem sido objeto de repressão
jurídico-criminal.
Sólon (638 a.C – 558 a.C), chegou a editar norma que punia o lenocínio com a
morte.
Deve-se
reconhecer a grande dificuldade que se encontra para estabelecer a origem
precisa da prostituição. Por oportuno, transcreve-se a lição de Magalhães
Noronha:
Os historiadores aludem à
fase da hospitalidade, em que a prostituição era um dever, em épocas primitvas.
Mais tarde, apresenta-se com caráter religioso. Na Fenícia, adorava-se Astarté,
cuja imagem apresentava os dois sexos. Suas festas eram verdadeiras orgias,
dirigidas por sacerdotes. No Egito, as virgens escolhidas por suas belezas,
eram consagradas a Ísis. Os ministros do culto incumbiam-se não só de
iniciá-las na licenciosidade e luxúria, mas de conseguir-lhes o casamento,
depois que haviam se prostituído. Esse gênero de prostituição acarretava para o
país grandes lucros, pois centenas de milhares de estrangeiros para lá eram
atraídos. As próprias filhas dos reis prostituíam-se. Conta-se que a pirâmide
de Quéops foi erguida pelos vultosos lucros de sua filha. Entre os assírios e
babilônios adorava-se Milita. Toda mulher tinha que ir, ao menos uma vez em sua
vida, ao templo e aí esperar que fosse solicitada por um homem, que lhe
atirando qualquer moeda (a qual se tornava sagrada) e invocando a deusa, com
ela se afastava do templo e a possuía. Em hipótese alguma, facultava-se à
mulher recusar a posse sexual. Cumprido o ato, podia voltar, então, à sua casa.
Tal preceito tinha de ser observado por toda mulher, mesmo as mais ricas e
nobres. Na índia, incumbia à donzela deixar que um sacerdote a deflorasse.
Aliás, no Kama-Sutra vê-se que a sexologia é uma parte da religião, ou de
qualquer modo, com ela se relaciona.
Vê-se,
pois, que a prostituição teve até mesmo uma conotação religiosa, sendo que a ideia
perpassou até mesmo pela cultura romana, que cultuou Afrodite (versão grega) ou
Vênus (versão romana), a deusa do amor. E, mesmo no autar da deusa Pudititia,
orgias se concretizavam. Também, nos templos das deusas Vênus Volúpia e Vênus
Salácia, ocorriam, respectivamente, busca dos libertinos para a inspiração das
práticas mais voluptuosas e aperfeiçoamento das cortesãs nas suas profissões. E, Magalhães Noronha
continua apresentando um outro momento:
Na Grécia, não faltavam
organizações sagradês de meretrizes. É certo que as leis de Sólon protegiam a
família, punindo o adultério, o rapto, a sedução, o tráfico etc., mas
reconheciam o meretrício. Essa classe era constituída por escravas, quase todas
estrangeiras e moravam em lugares mantidos pelo Estado. Os proventos eram
entregues aos sacerdotes de Afrodite Pandemus. O legislador, ao que parece,
dava ainda à prostituição um fundo religioso. Em Atenas e outras cidades
gregas, os alcoices estabeleciam-se nas proximidades dos banhos, os quais não
se destinavam apenas a fins higiênicos.
..............................................................................................................
Com o advento do
Cristianismo, tratou de reprimir-se o meretrício. O Imperador Tácito tentou a
supressão dos prostíbulos em Roma. Teodósio, o Grande, e Valentiano I proibiram
a prostituição. Justiniano também se lançou à empresa. Todas essas tentativas,
como que a demonstrar, já, a complexidade do problema, foram vãs. E, assim, a
prostituição passou para a Idade Média.
Podemos
afirmar, com Nelson Hungria, que “A prostituição é um mal inextirpável. Ignorada, tolerada, regulamentada ou
proibida, sempre existiu e há de existir sempre. É inútil tentar
extingui-la”.
Em apertada síntese, o doutrinador apresentou os clássicos sistemas de
tratamento da prostituição pelo Estado, quais seja:
(a) ignorância – o Estado não se imiscui
em assuntos relativos à prostituição, mantendo-a à margem da legalidade ou da
proibição, como se não existisse;
(b) tolerância ou abolicionista – o Estado
percebe a prostituição, mas a assimila como um mal potencial, tolerando-a até
certos níveis, mas sem intervir em suas práticas menos “agressivas”. Baseia-se
na proposta de não punir a prostituta, mas de lhes impor a obrigação de
respeitar o pudor público e prevenir a proliferação de doenças;
(c) regulamentação – é o sistema mais
aceito no atual estágio da humanidade. Países com maior Índice de
Desenvolvimento Humano (IDH) preferem regulamentar a prostituição para defesa
da dignidade da pessoa humana e defesa da saúde pública;
(d) proibição – incriminar a
prostituição, especialmente a feminina, é uma postura corrente em Estados
machistas, baseada em Lombroso, mas sem base científica porque se a
prostituição, por si mesma, se afetar alguém, será a própria pessoa prostituída
e a autolesão não poderá constituir crime.
Normalmente, a
prostituição traz sofrimentos, sendo que há grande discriminação social e o
trabalho sexual não é agradável como pode parecer, ao menos é o que se pode
verificar na história de Gabriela Leite
e Raquel Pacheco.
Nesse sentido, Sidio R. de Mesquita Júnior afirma:
A aparente vida fácil das prostitutas
e o constante sonho de encontrar um milionário semelhante ao ator Richard Gere,
do filme "Uma linda mulher" é um engodo bem retratrado pelo texto
anteriormente transcrito. Porém, a prostituta vende o seu corpo assim como todo
trabalhador que se vale do corpo para sustentar a sua vida, não sendo ela
inferior ao professor (que vive do seu intelecto), do lutador e do atleta em
geral (que vivem das suas forças e das suas habilidades) etc.
Mirian Hatcher, Coordenadora de programas de justiça para
mulheres e tráfico humano, Cook County
Sheriff’s Office, no mesmo sentido, afirma:
Há exatos 25 anos, uma das comédias românticas de maior sucesso
da história do cinema, "Uma Linda Mulher", estreava nos Estados Unidos. O filme
arrecadou quase meio bilhão de dólares até hoje.
Julia Roberts encantou as audiências como uma "prostituta
feliz", e sua química com Richard Gere, um investidor agressivo fazendo
negócios em Los Angeles, era inegável. Os dois incendiaram a tela.
O único problema é que a prostituição retratada no filme não
poderia estar mais distante da verdade.
A prostituição é terrível. A maioria envolve tráfico de sexo. É
intrigante saber que o roteiro do filme originalmente era uma história sombria,
um alerta. Da minha perspectiva de sobrevivente, essa é a triste realidade.
Muito poucas entre nós escolhem "cair na vida". Não
somos felizes e com certeza não curtimos o sexo com os clientes. De
acompanhantes de alto nível a garotas compradas online, as mulheres
prostituídas são atrizes.
Diversamente, na
Austrália, para marcar o 25º aniversário do filme “Uma Linda mulher” foi
lançado um “blog” que pretendia evidencia o que se transcreveu, no sentido de
que a realidade das profissionais do sexo é muito mais difícil do que a
apresentada no cinema. Isso criou uma reação em que muitas prostitutas
pretenderam evidenciar não se poder generalizar a realidade das prostitutas em
um país em que a prostituição é legalizada como profissão.
No Brasil, assim
como a autolesão não é crime, o suicídio e a prostituição não são crimes.
Todavia, a participação na prostituição alheia poderá constituir crime. Mais
difícil será reparar o dano causado à prostituta que for deslocada de lugar, especialmente
para o estrangeiro, razão de destacarmos o assunto para análise em seção
específica.
3. LENOCÍNIO E DO TRÁFICO DE PESSOAS
Lenocínio é uma
palavra que decorre do latim lenocinium,
significando alcovitice ou inculcação de mulheres, sendo o ato de aliciar
mulheres para ações contrárias à castidade.
O
convite à prostituição poderá ter fim de lucro ou não. De qualquer modo, esse é
um assunto que preocupa o mundo desde alguns séculos, o que exige uma abordagem
mais detalhada. Especialmente no que tange ao lenocínio tendente à transferir
pessoas de um País para outro país.
3.1 A luta internacional
contra o tráfico de pessoas
Hedel
Torres apresenta vários quadros comparativos, visando a demonstrar a evolução
legislativa internacional, desde a Declaração dos Direitos do Homem e do
Cidadão (1789) até a Declaração e Programa de Ação da 3ª Conferência (2001). No entanto, pretendemos
abordar o assunto de uma forma um pouco mais abrangente, razão de nos
reportarmos a um artigo de Ela Wiecko. Ela apresenta o seguinte quadro:
·
1814 – Tratado de Paris entre
Inglaterra e França, para proibir o tráfico de negros;
·
1926 – Reafirmação da convenção de
1814 pela Sociedade das Nações;
·
1953 - Reafirmação da convenção de
1926 pela Organização das Nações Unidas;
·
1956 – Convenção de Genebra, que
repetiu os conceitos e ampliou o foco para redução às condições análogas à de
escravo, vedando a imobilização por dívidas e a servidão (debt bondage) e a subjugação e exploração da mulher;
·
1904 – Acordo para a Repressão do
Tráfico de Mulheres Brancos, de Paris, convolado em Convenção no ano seguinte;
·
1910 – em Paris, Convenção
Internacional para a Repressão do Tráfico de Mulheres Brancas;
·
1921 – Convenção Internacional de
Genebra para a Repressão do Tráfico de Mulheres e Crianças;
·
1933 – ainda em Genebra, Convenção
Internacional para a Repressão do Tráfico de Mulheres Maiores.
Após o
estabelecimento da Organização das Nações Unidas, em 24.10.1945, para
substituir a ineficiente Liga das Nações, inicia-se nova fase com expressa
anulação e substituição das anteriores, seguindo-se:
Ø 1947
– Protocolo de Emenda à Convenção Internacional para a Repressão do Tráfico de
Mulheres e Crianças e à Convenção Internacional para a Repressão do Tráfico de
Mulheres Maiores;
Ø 1949
– Convenção e Protocolo Final para a Repressão do Tráfico de Pessoas e do
Lenocínio (Lake Success);
Ø 1979
– Convenção sobre a Eliminação de todas Formas de Discriminação contra a Mulher
(reconheceu a ineficácia da Convenção de 1949);
Ø 1983
– cobrança de relatórios pelo Conselho Econômico e Social da ONU;
Ø 1992 – Programa de Ação para a Prevenção da Venda de
Crianças, Prostituição Infantil e Pornografia Infantil;
Ø 1993 – Conferência Mundial dos Direitos Humanos, com
especial preocupação com a “eliminação de todas as formas de assédio sexual,
exploração e tráfico de mulheres”;
Ø 1994 –
Resolução da Assembleia Geral da ONU definiu o tráfico como o movimento ilícito
ou clandestino de pessoas através das fronteiras nacionais e internacionais,
principalmente de países em desenvolvimento e de alguns países com economias em
transição, com o fim de forçar mulheres e crianças a situações de opressão e
exploração sexual ou econômica, em benefício de proxenetas, traficantes e
organizações criminosas, assim como outras atividades ilícitas relacionadas com
o tráfico de mulheres, por exemplo, o trabalho doméstico forçado, os casamentos
falsos, os empregos clandestinos e as adoções fraudulentas.
Ø 1996 – Programa de Ação da Comissão de Direitos
Humanos para a Prevenção do Tráfico de Pessoas e a Exploração da Prostituição;
Ø 1998
– O Estatuto de Roma definiu os crimes internacionais de escravidão sexual e de
prostituição forçada contra a humanidade e de guerra;
Ø 1998
– Convenção Interamericana sobre o Tráfico Internacional de Menores. Conceituou
como tráfico internacional de pessoas com menos de 18 anos a “subtração,
transferência ou retenção, ou a tentativa de subtração, transferência ou
retenção de um menor, com propósitos ou por meios ilícitos”;
Ø 2000
– Convenção das Nações Unidas contra o Crime
Organizado Transnacional, adotada em Nova York.
Deve-se destacar
aqui que o tráfico de pessoas constou do Estatuto de Roma, que está em vigor no
Brasil, promulgado pelo Decreto n. 4.388, de 25.9.2002, que institui a Corte
Internacional Criminal. Em tal estatuto, muitas condutas foram tipificas como
crimes contra a humanidade, com penas elevadíssimas
Art. 7º - Crimes
contra a humanidade
1. Para os efeitos do presente Estatuto, entende-se
por "crime contra a humanidade", qualquer um dos atos seguintes,
quando cometido no quadro de um ataque, generalizado ou sistemático, contra
qualquer população civil, havendo conhecimento desse ataque:
.......................................................................................................................................
c) Escravidão;
d) Deportação ou transferência forçada de uma
população;
e) Prisão ou outra forma de privação da liberdade
física grave, em violação das normas fundamentais de direito internacional;
........................................................................................................................................
g) Agressão sexual, escravatura sexual, prostituição
forçada, gravidez forçada, esterilização forçada ou qualquer outra forma de
violência no campo sexual de gravidade comparável;
h) Perseguição de um grupo ou coletividade que possa
ser identificado, por motivos políticos, raciais, nacionais, étnicos,
culturais, religiosos ou de gênero, tal como definido no parágrafo 3o,
ou em função de outros critérios universalmente reconhecidos como inaceitáveis
no direito internacional, relacionados com qualquer ato referido neste
parágrafo ou com qualquer crime da competência do Tribunal;
i) Desaparecimento forçado de pessoas;
j) Crime de apartheid;
k) Outros atos desumanos de caráter semelhante, que
causem intencionalmente grande sofrimento, ou afetem gravemente a integridade
física ou a saúde física ou mental.
2. Para efeitos do parágrafo 1o:
.......................................................................................................................................
c) Por "escravidão" entende-se o exercício,
relativamente a uma pessoa, de um poder ou de um conjunto de poderes que
traduzam um direito de propriedade sobre uma pessoa, incluindo o exercício
desse poder no âmbito do tráfico de pessoas, em particular mulheres e crianças;
d) Por "deportação ou transferência à força de
uma população" entende-se o deslocamento forçado de pessoas, através da
expulsão ou outro ato coercivo, da zona em que se encontram legalmente, sem
qualquer motivo reconhecido no direito internacional;
........................................................................................................................................
f) Por "gravidez à força" entende-se a
privação ilegal de liberdade de uma mulher que foi engravidada à força, com o
propósito de alterar a composição étnica de uma população ou de cometer outras
violações graves do direito internacional. Esta definição não pode, de modo
algum, ser interpretada como afetando as disposições de direito interno relativas
à gravidez;
g) Por "perseguição'' entende-se a privação
intencional e grave de direitos fundamentais em violação do direito
internacional, por motivos relacionados com a identidade do grupo ou da
coletividade em causa;
........................................................................................................................................
i) Por "desaparecimento forçado de pessoas"
entende-se a detenção, a prisão ou o sequestro de pessoas por um Estado ou uma
organização política ou com a autorização, o apoio ou a concordância destes,
seguidos de recusa a reconhecer tal estado de privação de liberdade ou a
prestar qualquer informação sobre a situação ou localização dessas pessoas, com
o propósito de lhes negar a proteção da lei por um prolongado período de tempo.
3. Para efeitos do presente Estatuto, entende-se que o
termo "gênero" abrange os sexos masculino e feminino, dentro do
contexto da sociedade, não lhe devendo ser atribuído qualquer outro
significado.
Artigo 8o
– Crimes de Guerra
1. O Tribunal terá competência para julgar os crimes
de guerra, em particular quando cometidos como parte integrante de um plano ou
de uma política ou como parte de uma prática em larga escala desse tipo de
crimes.
2. Para os efeitos do presente Estatuto, entende-se
por "crimes de guerra":
a) As violações graves às Convenções de Genebra, de 12
de Agosto de 1949, a saber, qualquer um dos seguintes atos, dirigidos contra
pessoas ou bens protegidos nos termos da Convenção de Genebra que for
pertinente:
...........................................................................................................................
viii) Tomada de reféns;
b) Outras violações graves das leis e costumes
aplicáveis em conflitos armados internacionais no âmbito do direito internacional,
a saber, qualquer um dos seguintes atos:
viii) A transferência, direta ou indireta, por uma
potência ocupante de parte da sua população civil para o território que ocupa
ou a deportação ou transferência da totalidade ou de parte da população do
território ocupado, dentro ou para fora desse território;
.......................................................................................................................................
x) Submeter pessoas que se encontrem sob o domínio de
uma parte beligerante a mutilações físicas ou a qualquer tipo de experiências
médicas ou científicas que não sejam motivadas por um tratamento médico,
dentário ou hospitalar, nem sejam efetuadas no interesse dessas pessoas, e que
causem a morte ou coloquem seriamente em perigo a sua saúde;
.......................................................................................................................................
xxi) Ultrajar a dignidade da pessoa, em particular por
meio de tratamentos humilhantes e degradantes;
c) Em caso de conflito armado que não seja de índole
internacional, as violações graves do artigo 3o comum às quatro Convenções de Genebra, de
12 de Agosto de 1949, a saber, qualquer um dos atos que a seguir se indicam,
cometidos contra pessoas que não participem diretamente nas hostilidades,
incluindo os membros das forças armadas que tenham deposto armas e os que
tenham ficado impedidos de continuar a combater devido a doença, lesões, prisão
ou qualquer outro motivo:
.......................................................................................................................................
ii) Ultrajes à dignidade da pessoa, em particular por
meio de tratamentos humilhantes e degradantes;
iii) A tomada de reféns;
........................................................................................................................................
e) As outras violações graves das leis e costumes
aplicáveis aos conflitos armados que não têm caráter internacional, no quadro
do direito internacional, a saber qualquer um dos seguintes atos:
........................................................................................................................................
vi) Cometer atos de agressão sexual, escravidão
sexual, prostituição forçada, gravidez à força, tal como definida na alínea f do parágrafo 2o do artigo 7o;
esterilização à força ou qualquer outra forma de violência sexual que constitua
uma violação grave do artigo 3o comum às quatro Convenções de Genebra;
........................................................................................................................................
viii) Ordenar a deslocação da população civil por
razões relacionadas com o conflito, salvo se assim o exigirem a segurança dos
civis em questão ou razões militares imperiosas;
.......................................................................................................................................
xi) Submeter pessoas que se encontrem sob o domínio de
outra parte beligerante a mutilações físicas ou a qualquer tipo de experiências
médicas ou científicas que não sejam motivadas por um tratamento médico,
dentário ou hospitalar nem sejam efetuadas no interesse dessa pessoa, e que
causem a morte ou ponham seriamente a sua saúde em perigo;
Segundo o art.
77, as penas de prisão podem ser fixadas em prazos determinados, até o máximo
de 30 anos, o a prisão poderá ser perpétua, cumulando multa e restrições de
direitos. De qualquer modo, sublinhou-se “que a Corte Internacional Criminal,
criada pelo presente Estatuto, será complementar às jurisdições penais
nacionais”.
O cerne deste
artigo não é o exame do Direito Criminal Internacional, mas do Direito Criminal
pátrio, sendo que a presente seção tem o objetivo único de evidenciar a necessidade
de criminalizar o tráfico de pessoas no âmbito interno, até porque, por tratado
de Direito Internacional, o Brasil se obrigou a combater. Porém, não se olvide,
a complementariedade não pode significar em sujeição do Direito Internacional à
jurisdição nacional, sendo importante verificar a autonomia e a relevância da
necessária comunicação da ordem jurídica interna com a internacional.
Vê-se, pois, em
face do caráter complementar da jurisdição da Corte Internacional Criminal, que
a criação de uma lei que fosse abrangente em relação ao tráfico de pessoas era
uma necessidade, até porque, o Código Penal só incriminava o tráfico de pessoas
violador da organização do trabalho (arts. 206 e 207) e contra a dignidade
sexual (arts. 231 e 231-A).
3.2 A evolução legislativa interna
sobre o tráfico de pessoas
Não cuidaremos
aqui das Ordenações do Reino (Ordenações Afonsinas, Manuelinas e Filipinas),
que eram aplicáveis aos crimes praticados no território da Colônia porque
interessa-nos especialmente o momento em que se inicia, no mundo, o combate ao
tráfico de pessoas, especialmente contra o tráfico negreiro, o que corresponde
aproximadamente ao momento da declaração da independência do Brasil.
No Código Penal
da República (Decreto n. 847, de 11.10.1890), incriminou-se o lenocínio (arts.
277-278), mas sem qualquer referência ao tráfico de pessoas. Damásio
Evangelista de Jesus, sem indicar o dispositivo legal, afirma ter sido
criminalizado o tráfico de mulheres no referido código.
Todavia, o exame detalhado do código em exame evidencia que não houve
preocupação com o tráfico dirigido à prostituição.
Para o referido autor, a proteção ao tráfico estaria implícita na proibição do
lenocínio, o que é parece não ser uma afirmação adequada porque a alcovitice
não dependerá necessariamente do tráfico de pessoas.
A
Consolidação das Leis Penais (Decreto n. 22.213, de 14.12.1932), inovou. Os §§
1º e 2º do seu art. 278 dispuseram:
§ 1º Aliciar, atrair ou desencaminhar, para
satisfazer as paixões lascivas de outrem, qualquer mulher menor, virgem ou não,
mesmo com o seu consentimento; aliciar, atrair ou desencaminhar, para
satisfazer as paixões lascivas de outrem, qualquer mulher maior, virgem ou não,
empregando para esse fim ameaça, violência, fraude, engano, abuso de poder, ou
qualquer outro meio de coação; reter, por qualquer dos meios acima referidos,
ainda por causa de dívidas contraídas, qualquer mulher maior ou menor, virgem
ou não, em casa de lenocínio, obrigá-la a entregar-se à prostituição.
§ 2º Os crimes de que tratam este artigo e o seu §
1º serão puníveis no Brasil, ainda que um ou mais atos constitutivos das
infrações neles previstas tenham sido praticados em país estrangeiro.
Essa ideia do
crime de ser punível o tráfico consentido fica mantido nos arts. 231 e 231-A do
Código Penal, significativamente alterado, nessa parte, pelas Leis n. 11.106,
de 28.3.2005, e 12.015, de 7.8.2009.
A Convenção de
Palermo (2000) fez nascer duas Comissões Parlamentares de Inquérito (CPI’s) no
ano de 2011, uma no Senado e outra na Câmara dos Deputados. O relatório final
da CPI da Câmara dos Depurados foi apresentado, em 20.5.2014, com 393 páginas.
No Senado, a Senadora Marinor de Brito, também em 2011, requereu a instauração
de CPI para investigar o tráfico de pessoas. A CPI no dia 19.12.2016,
apresentou seu relatório final com 227 páginas.
A conclusão da
CPI do Senado resultou no Projeto de Lei n. 479/2012, que ganhou o Substitutivo
n. 2/2015 da Câmara. A da Câmara dos Deputados, por sua vez, inicialmente,
houve o Projeto de Lei n. 7.370/2014, resultando na Lei n. 13.344, de
6.10.2016, publicada no dia 7.10.2016, com prazo de vacatio legis de 45 dias (art. 17), a qual tem a seguinte ementa:
Dispõe sobre prevenção e
repressão ao tráfico interno e internacional de pessoas e sobre medidas de
atenção às vítimas; altera a Lei n. 6.815, de 19 de agosto de 1980, o
Decreto-Lei n. 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal), e o
Decreto-Lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal); e revoga
dispositivos do Decreto-Lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal).
Vê-se, pois, que
a nova lei entrou em vigor no dia 21.11.2016, o que torna a presente pesquisa
bastante atual, até porque está em
vigor, com poucos dias de vigência.
No campo
criminal, forão revogados os seguintes artigos:
Tráfico internacional de pessoa para fim de exploração sexual
Art.
231. Promover ou facilitar a entrada, no território nacional, de alguém que
nele venha a exercer a prostituição ou outra forma de exploração sexual, ou a
saída de alguém que vá exercê-la no estrangeiro.
Pena
- reclusão, de 3 (três) a 8 (oito) anos.
§
1o Incorre na mesma pena aquele que agenciar, aliciar ou
comprar a pessoa traficada, assim como, tendo conhecimento dessa condição, transportá-la,
transferi-la ou alojá-la.
§
2o A pena é aumentada da metade se:
I
- a vítima é menor de 18 (dezoito) anos;
II
- a vítima, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário
discernimento para a prática do ato;
III
- se o agente é ascendente, padrasto, madrasta, irmão, enteado, cônjuge,
companheiro, tutor ou curador, preceptor ou empregador da vítima, ou se
assumiu, por lei ou outra forma, obrigação de cuidado, proteção ou vigilância;
ou
IV
- há emprego de violência, grave ameaça ou fraude.
§
3o Se o crime é cometido com o fim de obter vantagem
econômica, aplica-se também multa.
Tráfico interno de pessoa para fim de exploração sexual
Art.
231-A. Promover ou facilitar o deslocamento de alguém dentro do território
nacional para o exercício da prostituição ou outra forma de exploração sexual:
Pena
- reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos.
§
1o Incorre na mesma pena aquele que agenciar, aliciar, vender
ou comprar a pessoa traficada, assim como, tendo conhecimento dessa condição,
transportá-la, transferi-la ou alojá-la.
§
2o A pena é aumentada da metade se:
I
- a vítima é menor de 18 (dezoito) anos;
II
- a vítima, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário
discernimento para a prática do ato;
III
- se o agente é ascendente, padrasto, madrasta, irmão, enteado, cônjuge,
companheiro, tutor ou curador, preceptor ou empregador da vítima, ou se
assumiu, por lei ou outra forma, obrigação de cuidado, proteção ou vigilância;
ou
IV
- há emprego de violência, grave ameaça ou fraude.
§
3o Se o crime é cometido com o fim de obter vantagem
econômica, aplica-se também multa.
O Projeto de Lei
n. 117/2003 pretendeu modificar a Parte Especial do Código Penal. Sendo
oportuno expor:
Já se tentou modificar
todo CP, mas sem sucesso. Desse modo, a Parte Especial do CP (PE/CP) já se
encontrava obsoleta, mormente em relação aos crimes contra os costumes, uma vez
que a evolução social tornou extremamente diferentes os costumes nos últimos
anos. Corolário foi alterar o Título VI, da PE/CP. Essa modificação foi
proposta pela Deputada Federal Iara Bernardi, por meio do Projeto de Lei n.
117, datado de 19.2.2003, depositado na mesma data.
O projeto original era
tímido, eis que visava apenas à modificação dos arts. 216 e 231 do CP,
fundamentado na ideia de que o CP “em vigor contempla mecanismos, estereótipos,
preconceitos e discriminação em relação às mulheres”. Porém, algumas emendas
foram apresentas, sendo mais ousada a de origem do Deputado Luiz Antônio
Fleury.
A redação final do
projeto foi apresentada por meio do substitutivo do Senado Federal, o que
constituiu o texto final aprovado pelo Congresso Nacional e sancionado sem
qualquer veto pelo Presidente da República.
A Lei n. 11.106,
de 28.3.2005, instituiu o crime do art. 231-A e deu nova redação ao art. 231,
ambos transcritos, mas que tem a redação transcrita a partir da Lei n. 12.015,
de 7.8.2009. Sobre tal lei, expus alhures:
A grande inflação
legislativa nacional é preocupante. As leis são feitas açodadamente, o que tem
sido objeto de críticas. O pior é que temos o hábito de tentar resolver o
problema da criminalidade por meio da criação de leis mais rigorosas como se
essa fosse uma solução efetiva para os graves problemas que enfrentamos.
Em 2.003 foi
instaurada Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI), mediante
requerimento da Deputada Federal Maria do Rosário (PT-RS), a qual foi
designada relatora da CPMI, que teve como Presidente a Senadora Patrícia
Saboya Gomes (PPS-CE), cujas atividades perduraram por um ano e, após a
visita feita a 21 estados, foi elaborado relatório final, apresentado ao
Congresso Nacional no dia 7.7.2004, às 17h30.
O relatório resultou
em um livro de 63 páginas e a presidência da CPMI ofertou notoriedade em favor
da parlamentar. Esta foi denominada "heroína do Ceará" pela Revista
Isto É. Sem dúvida, a Senadora Patrícia Saboya Gomes soube utilizar bem a CPMI para alcançar
algum destaque na mídia. Seu trabalho resultou em vários indiciamentos,
inclusive, o do atleta Zequinha Barbosa. Em função de tal CPMI, foi elaborado o
Projeto de Lei n. 253, de 13.9.2004.
..............................................................................................................
O
Projeto de Lei n. 253/2004, na Câmara dos Deputados, em face de projeto de lei
substitutivo, ganhou o n. 4.850/2005, sendo que, ao final, foi proposta uma
consolidação das emendas de vários Deputados Federais, sendo relator da
mencionada consolidação o Deputado Federal Flávio Dino, de onde resultou
o texto transformado na Lei n. 12.015, de 7.8.2009, publicada no Diário Oficial
da União, Seção 1, de 10.8.2009. Esta merece críticas positivas e negativas.
Novamente emerge
a ideia de resolver o problema da criminalidade por meio de novas lei
criminais, tendo sido editada a mencionada Lei n. 13.344, que instituiu novo
crime contra a liberdade individual, no Título I da Parte Especial do Código
Penal, in verbis:
Tráfico de Pessoas
Art. 149-A. Agenciar,
aliciar, recrutar, transportar, transferir, comprar, alojar ou acolher pessoa,
mediante grave ameaça, violência, coação, fraude ou abuso, com a finalidade de:
I - remover-lhe órgãos, tecidos ou partes do corpo;
II - submetê-la a trabalho em condições análogas à de escravo;
III - submetê-la a qualquer tipo de servidão;
IV - adoção ilegal; ou
V - exploração sexual.
Pena - reclusão, de 4
(quatro) a 8 (oito) anos, e multa.
§ 1o A pena é aumentada de um terço até a metade
se:
I - o crime for
cometido por funcionário público no exercício de suas funções ou a pretexto de
exercê-las;
II - o crime for
cometido contra criança, adolescente ou pessoa idosa ou com deficiência;
III - o agente se
prevalecer de relações de parentesco, domésticas, de coabitação, de
hospitalidade, de dependência econômica, de autoridade ou de superioridade
hierárquica inerente ao exercício de emprego, cargo ou função; ou
IV - a vítima do
tráfico de pessoas for retirada do território nacional.
§ 2o A pena é reduzida de um a dois terços se o
agente for primário e não integrar organização criminosa.
A nova lei é
multidisciplinar, alterando várias normas e tem um rigor maior a ser imposto ao
criminoso que incorrer no tráfico interno e externo de pessoas do que o arts.
231 e 231-A, que ela revogará.
O tipo tem núcleo
composto alternativo, o que significa dizer que basta a realização de uma das
condutas descritas no caput do art.
149-A transcrito para que haja consumação, até porque se trata de crime formal,
ou seja, de consumação precipitada ou antecipada.
3.3 O consentimento do ofendido como
excludente de crime
Foi
desenvolvida a tese, no sentido de que o consentimento da vítima, nos delitos
cujo objeto jurídico seja disponível, constitui causa excludente da ilicitude,
o que não pode ser admitido, embora seja praticamente pacífico tal entendimento
na doutrina criminal pátria hodierna.
Fernando
Capez ensina que o consentimento do ofendido constitui: (a) irrelevante criminal nos crimes em que o bem jurídico é
indisponível, v.g., homicídio; (b)
excludente de tipicidade se o dissentimento, ou o consentimento, for exigência
expressa do tipo, v.g., furto; (c)
excludente de ilicitude nos crimes em que o consentimento, ou o dissenso, não
forem exigência expressa do tipo; (d)
causa de diminuição de pena, somente quando prevista na lei.
Diz-se que o
consentimento do ofendido constitui causa supralegal excludente da ilicitude,
um verdadeiro princípio de Direito que não autorizaria considerar ilícito um
fato que foi considerado irrelevante pela pessoa atingida, desde que ela possa
dispor livremente do bem jurídico afetado. Tal construção, ante a máxima nullun
crimen sine injura parece tentadora, mas não pode prevalecer porque ilícito
o fato continuará sendo, o que pode lhe faltar, na verdade, é o fato típico, a culpabilidade
ou a punibilidade.
Assis Toledo
afirmava que o consentimento do ofendido era causa supralegal excludente da
ilicitude, um verdadeiro princípio do Direito, acima da lei. Ele sugere a
hipótese do dano (CP, art. 163) com o consentimento expresso do proprietário da
coisa, ou o encarceramento (CP, art. 148) de quem expressamente consentiu.
Ao meu aviso, a existência do delito pressupõe a contraposição
do dono do objeto jurídico, isso quando se trata de bem disponível e
desembaraçado. Havendo consentimento prévio, não haverá o fato típico, eis que
não existirá sujeito passivo, uma vez que “alienado” o objeto jurídico.
O
consentimento da vítima tem relevância, nos delitos de ação criminal de
iniciativa exclusivamente privada, visto que o ofendido pode se manter inerte,
elidindo a punibilidade. Também, tem relevância para o grau de censura, que tem
relação com as consequências do delito. Desse modo, ao contrário de se reservar
à doutrina a correta política criminal, deve-se exigir do legislador o adequado
exercício do seu poder legiferante, só se reservando à iniciativa pública da
ação criminal à hipótese que extrapole bem jurídico disponível.
Dizer que a
censura criminal (culpabilidade), deve ser concebida segundo cada injusto
concretizado (a “justiça do caso concreto”), entendo o consentimento da vítima,
no atual estágio da história do Direito Criminal (que pretende ser mais humano
e menos interventor) é possível dizer que o fato não tem relevância
jurídico-criminal a ponto de possibilitar a drástica censura de tal ramo do
Direito. Não constitui a melhor postura de política-criminal transformar em
crime de ação criminal de iniciativa pública aquele que se refere a bem
jurídico suficiente, visto que se a lei entende que o fato é grave o suficiente
para ensejar iniciativa pública incondicionada (não depender da vontade da
vítima a existência do processo), é porque o fato é grave, sendo inoportuno
atribuir ao julgador o dever de se imiscuir na eleição de quais objetos
jurídicos são relevantes, a ponto de desnaturar a iniciativa pública da ação
criminal.
Alguém
poderá ver alguma contraditio in terminis entre o que foi exposto neste
tópico e aquele relativo à tentativa inidônea, visto que, assim como naquela
hipótese, o agente teve a intenção de praticar o resultado, mas acabou
alcançado pela máxima nullum crime sine injura. Então, poder-se-ia
admitir a inserção de um preceito que puna como tentado, o delito consumado de
ação criminal de iniciativa pública incondicionada que, após sua realização,
contou com o consentimento do ofendido. Essa poderia ser uma solução. No
entanto, voltamos a dizer: sendo disponível o bem jurídico, interessa
principalmente ao seu titular decidir sobre sua proteção, não se podendo pensar
em crime praticado por aquele que contou com a liberalidade desembaraçada do
proprietário.
Finalmente,
para que se possa pensar em consentimento do ofendido válido é necessário que
ele preencha os requisitos gerais dos negócios jurídicos: a) capacidade; b)
objeto lícito (não pode o titular dispor de bem sobre o qual recaia algum ônus
que impeça a liberalidade, v.g., posse direta de terceiro); c) vontade livre
(aqui é importante esclarecer que o ardil ou a coação utilizada pelo agente
pode constituir novo crime, ao contrário de tornar o fato atípico, v.g., na
hipótese apresentada continuará existindo o furto e a coação moral constituirá
o crime de ameaça, ex vi do art. 147 do CP).
4. O CONSENTIMENTO DO OFENDIDO NO
TRÁFICO DE PESSOAS
Os protocolos que
deram ensejo à Convenção de Palermo deixam evidente que, no tráfico de pessoas,
o consentimento livre do ofendido é causa excludente da tipicidade. Com isso, o
consentimento o ofendido excluirá o próprio fato típico, não se chegando a
discutir a ilicitude.
O Decreto n.
5.017, de 12.3.2004, promulga o Protocolo Adicional à Convenção das Unidas
contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e
Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças, Seu art. 3º,
dentre as definições, dispõe:
Para efeitos do presente Protocolo:
a) A expressão "tráfico de pessoas" significa o
recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de
pessoas, recorrendo à ameaça ou uso da força ou a outras formas de coação, ao
rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou à situação de
vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para
obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra para fins
de exploração. A exploração incluirá, no mínimo, a exploração da prostituição
de outrem ou outras formas de exploração sexual, o trabalho ou serviços
forçados, escravatura ou práticas similares à escravatura, a servidão ou a
remoção de órgãos;
b) O consentimento dado pela vítima de tráfico de pessoas tendo em
vista qualquer tipo de exploração descrito na alínea a) do presente Artigo será
considerado irrelevante se tiver sido utilizado qualquer um dos meios referidos
na alínea a);
c) O recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou
o acolhimento de uma criança para fins de exploração serão considerados
"tráfico de pessoas" mesmo que não envolvam nenhum dos meios
referidos da alínea a) do presente Artigo;
d) O termo "criança" significa qualquer pessoa com idade
inferior a dezoito anos.
O consentimento
mediante fraude, de pessoa incapaz (criança, adolescente ou doente mental), coação ou violência será inválido. Veja-se que o pagar
para quem detenha autoridade sobre a vítima, a fim de obter o consentimento,
manterá a tipicidade do fato, ex vi
da alínea “a”.
Revogado o art.
231-A do Código Penal, mas já na vigência da redação anterior, o TJDTFT
decidiu:
Apelação Criminal 2008 01 1
118698-6 APR
Órgão
|
1ª Turma Criminal
|
Processo N.
|
Apelação Criminal
20080111186986APR
|
Apelante (s)
|
M. F. O. E OUTROS
|
Apelado (s)
|
M. P. D. F. E T.
|
Relatora
|
Desembargadora
SANDRA DE SANTIS
|
Revisor
|
Desembargador
MARIO MACHADO
|
Acórdão Nº
|
387.974
|
E M E N T A
APELAÇÃO CRIMINAL –
RUFIANISMO – TRÁFICO INTERNO DE PESSOAS – INTERCEPTAÇÃO TELEFÔNICA – PROVA
ILÍCITA – PRORROGAÇÕES SUCESSIVAS – CERCEAMENTO DE DEFESA – INDEFERIMENTO DE
PERGUNTAS – EXPLORAÇÃO DA PROSTITUIÇÃO ALHEIA – CONDENAÇÃO MANTIDA –
CONSENTIMENTO VÁLIDO DAS VÍTIMAS – ATIPICIDADE DA CONDUTA.
I. A interceptação das comunicações telefônicas foi
precedida de ordem judicial fundamentada e as renovações foram autorizadas em
razão da necessidade da medida para fins de investigação criminal. Preliminar
de ilicitude da prova rejeitada.
II. As perguntas formuladas pela defesa foram
indeferidas pelo Juiz por não terem relação com a causa e por importarem em
repetição de questionamentos já respondidos pela testemunha. Preliminar
rejeitada.
III. Há provas suficientes de que a ré tirou proveito
da prostituição alheia, razão pela qual a condenação por rufianismo deve ser
mantida.
IV. O consentimento válido
das supostas vítimas em submeterem-se à prostituição impede a tipificação do
crime do artigo 231-A do Código Penal.
Vê-se que o crime
do art. 149-A terá a mesma ideia, no sentido de que o consentimento da pessoa
vítima que seja válido, será causa excludente da tipicidade, não se falando em
excludente supralegal da ilicitude.
5. ÚLTIMAS CONSIDERAÇÕES
Iniciamos a
partir da noção de dignidade, visando a demonstrar que a maior preocupação com
o tráfico de pessoas será com a dignidade, sendo que, para tanto, explicamos
inicialmente a dignidade.
Aspectos históricos da prostituição foram enfrentados, evidenciando que ela nem sempre foi
recriminada. Passamos, então, por sua origem vetusta, comentando suas fases da
antiguidade, até que chegamos ao momento atual.
Apresentamos,
então, as fases clássicas de tratamento da prostituição, quais sejam:
ignorância; tolerância ou abolicionista; regulamentação; e proibição. O Brasil
admite um sistema de tolerância sui
generis em que a prostituição não será crime, mas participar da
prostituição será crime.
Procuramos demonstrar
que a escolha pela prostituição, normalmente, gera sofrimentos, razão de termos
evidenciar dois casos de grande notoriedade: o de Gabriela Leite e o de Raquel
Pacheco. Depois, en passant, passamos
por casos concretos internacionais em que, de um lado se fala em sofrimento e,
de outro, se alega que a prostituição não é ruim.
Trabalhamos com o
lenocínio e o tráfico de pessoas, evidenciando a luta internacional para evitar
tais práticas. A seguir, evidenciamos que o Estatuto de Roma já punia o tráfico
de pessoas. Porém, como sua aplicação é subsidiária, ressaltamos a importância
de se ter uma lei nacional para atender à vontade manifestada pela adesão à
Convenção de Palermo.
Tratamos da
evolução legislativa nacional para combate ao tráfico de pessoas, demonstrando
que o lenocínio e o tráfico contra a organização do trabalho eram as condutas
puníveis. Então, tratamos do processo legislativo que possibilitou a Lei n.
13.344/2016.
Foi
desenvolvida a tese, no sentido de que o consentimento da vítima, nos delitos
cujo objeto jurídico seja disponível, constitui causa excludente da ilicitude,
o que não pode ser admitido, embora seja praticamente pacífico tal entendimento
na doutrina criminal pátria hodierna.
Defendemos o
consentimento do ofendido como causa excludente da tipicidade, em desprestígio
da alegação de que o consentimento será causa supralegal excludente da
ilicitude. Então, passamos ao ponto central em que confirmamos a hipótese
eleita, visto que os protocolos internacionais que deram ensejo à Convenção de
Palermo consideram o consentimento do ofendido causa excludente de tipicidade.
Art. 277.
Excitar, favorecer, ou facilitar a prostituição de alguem para satisfazer
desejos deshonestos ou paixões lascivas de outrem:
Pena
– de prisão cellular por um a dous annos.
Paragrapho
unico. Si este crime for commettido por ascendente em relação á descendente,
por tutor, curador ou pessoa encarregada da educação ou guarda de algum menor
com relação a este; pelo marido com relação á sua propria mulher:
Pena
– de prisão cellular por dous a quatro annos.
Além
desta pena, e da de interdicção em que incorrerão, se imporá mais:
Ao
pae e mãe a perda de todos os direitos que a lei lhe concede sobre a pessoa e
bens do descendente prostituido;
Ao
tutor ou curador, a immediata destituição desse munus;
A’
pessoa encarregada da educação do menor, a privação do direito de ensinar,
dirigir ou ter parte em qualquer estabelecimento de instrucção e educação;
Ao
marido, a perda do poder marital, tendo logar a acção criminal, que prescreverá
em tres mezes, por queixa contra elle dada sómente pela mulher.
Art. 278.
Induzir mulheres, quer abusando de sua fraqueza ou miseria, quer constragendo-as
por intimidações ou ameaças, a empregarem-se no tratico da prostituição;
prestar-lhes, por conta propria ou de outrem, sob sua ou alheia
responsabilidade, assistencia, habitação e auxilios para auferir, directa ou
indirectamente, lucros desta especulação:
Penas
– de prisão cellular por um a dous annos e multa de 500$ a 1:000$000.