quinta-feira, 8 de outubro de 2015

Sobre as diferentes nuanças, em Platão, do amor!



O artigo que se segue não é uma apologia à homoafetividade, nem uma crítica negativa a ela, mas a expressão teórica anterior à de Freud, no sentido de que a bissexualidade é natural no homem. Ela consta do discurso platônico.

Com Bruno Bettelheim, afirmo que Amor (Eros) e Alma (Psique) souberam nutrir o bom amor e controlar os seus impulsos e, por isso, embora possamos ver semelhança entre a história destes e a do Édipo Rei, não resultaram em desgraça. E, devemos sempre buscar desenvolver o bom amor, não a paixão doentia e incontrolada de Édipo.

É um artigo que gostei porque trata muito bem das diferentes formas de amor, concebidas por Platão e muito bem escrito por Gabriela Rocha Rodrigues.[1] Pode enriquecer o conhecimento daquele que o ler esse provocante artigo intitulado “É o amor dos homens pelos mancebos, pois preferem o sexo que é mais forte e mais inteligente”.[2]

RESUMO:
Entre os filósofos gregos, Platão dedicou parte de sua obra ao Eros, examinando a fundo sua essência, sua origem, as diversas formas de amar, suas vicissitudes e recompensas, além de apresentar o melhor tipo de amor e o modo de alcançá-lo. O presente estudo tem a finalidade de expor os diálogos constantes nas obras Fedro e O Banquete, de Platão, bem como apresentar algumas considerações de estudiosos acerca de tais textos. No Banquete, Platão apresenta o tema do amor a partir de peças oratórias que atribui a vários homens ilustres da sociedade ateniense. Dessa forma, os diversos vieses do sentimento amoroso, bem como suas exigências e demais peculiaridades, se perfilam em uma obra dinâmica, na qual a reflexão filosófica aparece aliada a cuidados de natureza literária incontestável. No Fedro o amor é explorado através dos discursos de Lísias e Sócrates, sendo discutido o aspecto paradoxal do Eros, que tanto pode oferecer bem aventuranças aos amantes, quanto desgraçá-los. O diálogo também expõe o uso da linguagem aliada à verdade e a sabedoria como uma das formas de amor. O trabalho identifica os principais pontos da teoria platônica e constata que o amor é intrinsecamente o desejo do Bem, a possibilidade de voltar ao Mundo das Ideias Puras, cabendo ao homem exercitar-se no seu processo de ascendência espiritual.
Palavras-chave: Amor. Bem. Desejo. Imortalidade. Linguagem.
ABSTRACT:
Among the greek philosophers , Plato devoted part of his work Eros, looking deeply essence, their origin, the different forms of love, its difficulties and rewards, in addition to presenting the best kind of love and how to achieve it. The present study aims to expose the dialogues contained in the works Phaedrus and the Symposium, Plato, and present some considerations scholars about such texts. In the Symposium, Plato presents the theme of love from oratorical piece that attaches to several distinguished men of Athenian society. Thus, the various biases of the loving sentiment, as well as your requirements and other peculiarities, is profiled in a dynamic work in which philosophical reflection appears allied to care undisputed literary nature. In the Phaedrus love is explored through the speeches of Lysias and Socrates, and discussed the paradoxical aspect of Eros, which can offer both the both the beatitudes to the lovers, the disgrace them. The dialogue also exposes the use of language allied to truth and wisdom as a form of love. The paper identifies the main points of the Platonic theory and finds that love is intrinsically desire the Good, the possibility of returning to the World of Ideas Pure, leaving the man workout in the process of their spiritual ancestry.
Keywords: Love. Well. Desire. Immortal. Language.
INTRODUÇÃO
“Wilhelm, que seria, para o nosso coração, o mundo inteiro sem amor? O mesmo que uma lanterna mágica apagada! Assim que a gente coloca aí, uma lâmpada, imagens de todas as cores se projetam na tela branca...” Desse modo, o jovem Werther escreve a um amigo versando sobre a importância do amor. A definição, constante do livro Os Sofrimentos do Jovem Werther, de Goethe, embora belíssima, é apenas uma das inúmeras tentativas de explicar a essência do amor.
Para Camões, o amor “é um fogo que arde sem se ver”. Carlos Drummond de Andrade o define como “o ganho não previsto”, Nietzsche explica que ele é “o estado em que melhor o homem vê as coisas como elas são", e Balzac pergunta: “Se a luz é o primeiro amor da vida, não é o amor a luz do coração?”
A temática do amor, desde os tempos mais longínquos, ocupa lugar único na história da humanidade. Entre os filósofos gregos, Platão dedicou parte de sua obra ao Eros, examinou a essência, a origem, as diversas formas de amar, além de apresentar o melhor tipo de amor e o modo de alcançá-lo. Este trabalho examina os dois principais diálogos que versam sobre a manifestação erótica, O Banquete e Fedro.
N’O Banquete, Platão apresenta o tema do amor a partir de peças oratórias que atribui a vários homens ilustres da sociedade ateniense. Os diversos vieses do sentimento amoroso, bem como suas exigências e demais peculiaridades, se perfilam em uma narrativa dinâmica, na qual a reflexão filosófica alia-se a cuidados de natureza literária incontestável.
No Fedro, o amor é explorado através dos discursos de Lísias e Sócrates, sendo discutido o aspecto paradoxal do Eros, que tanto pode oferecer bem aventuranças aos amantes, quanto pode desgraçá-los. O diálogo também expõe o uso da linguagem aliada à verdade e a sabedoria como uma das formas de amor.
1. O BANQUETE
A obra O Banquete, de Platão (427-347 a.C.), à parte ser considerada uma das mais belas reflexões sobre o amor, quer do ponto de vista literário, quer do ponto de vista filosófico, é, inquestionavelmente, um dos textos da antiguidade clássica cuja contemporaneidade decorre dos elementos universais intrínsecos ao próprio tema.
Dada a pluralidade de reflexões colocadas em confronto no decorrer da obra e a profundidade com que estas diferentes manifestações do amor são examinadas, a contribuição de Platão à cultura ocidental tem sido um referencial inesgotável de pesquisa, fundamentando até mesmo às ciências ditas do inconsciente, tais como a psicologia e a psicanálise, cujas origens remontam a tempos bem atuais.
No Banquete, Platão organiza um confronto de diversos elogios atribuídos a Fedro, Pausânias, Erixímaco, Aristófanes, Agáton e Sócrates, proferidos com o fito de enaltecer e definir a verdadeira essência de Eros. Tais discursos são contextualizados em um cenário próprio da vida grega: o symposion –hábito praticado pela alta sociedade ateniense, no qual, após a comida em comum (syndeipnon), e mais propriamente em ocasião da bebida em comum (sympotos), os convidados entretinham-se com os divertimentos oferecidos pelo anfitrião (dança, música, cantos) e conversavam acerca de vários assuntos com a finalidade de depuração estética e espiritual.
Porém, o diálogo inicia em outra roda de amigos, nesta, Apolodoro é inquirido por um companheiro acerca dos discursos a respeito do amor pronunciados na casa de Agáton, quando este obteve o prêmio com sua primeira tragédia. Antes de resgatar o acontecido, Apolodoro esclarece que tais discursos lhe foram contados por Aristodemo, e que este sim, de fato os presenciara. Segundo Mota Pessanha:
[...] a doutrina socrático-platônica sobre o amor emerge do texto do Banquete como aquilo que pôde ser resgatado de uma longa cadeia de memórias e esquecimentos, no meio de uma série de discursos heterogêneos, provenientes de várias épocas e entremeado de lacunas (PESSANHA, 1994, p. 189).
Assim, a narrativa retorna ao momento em que Aristodemo encontra Sócrates e ambos dirigem-se à casa de Agáton para comemorar a premiação literária alcançada por este. No caminho, Sócrates mostra-se absorvido em suas reflexões, e ao ser apressado por seu companheiro de jornada, aconselha-o a ir em frente. Chegando a casa, Aristodemo é indagado sobre o paradeiro de Sócrates e explica que este ficara para trás, pois era seu costume apartar-se de tudo e ficar meditando. Agáton manda um servo ir buscá-lo, façanha que se revela impossível, vindo Sócrates a aparecer nomeio do jantar.
Ironizando a meditação de Sócrates, o anfitrião convida-o a deitar-se ao seu lado a fim de que possa absorver a sabedoria que aquele havia adquirido com o atraso. Ao que Sócrates responde, também de maneira irônica: “...caro Agatón, se a sabedoria fosse uma coisa que pudesse passar, por simples contato, de quem a tem a quem não tem, assim como a água que, por um fio de lã corre de um cálice cheio para um cálice vazio” (PLATÃO, 1996, p. 175e).
Após o jantar, os convivas efetuam libações e prepararam-se para começar a beber e desfrutar da boa música, mas Pausânias sugere que naquela ocasião fosse quebrado o protocolo dos banquetes que constrangia os convivas a beberem até a embriaguez total, visto que muitos ainda não se haviam recuperado do banquete da noite anterior.
Todos concordaram com Pausânias e Erixímaco sugeriu que dispensassem a flautista e se divertissem atendendo a uma antiga indignação de Fedro, quanto ao fato inexistirem elogios poéticos em honra de Eros, fosse então esse deus o objeto dos encômios. Iniciam assim os discursos de Fedro, Pausânias, Erixímaco, Aristófanes, Agáton e Sócrates, culminando com o elogio de Alcebíades.
1.1 Discurso de Fedro
Fedro busca legitimar a precedência de Eros em relação aos demais deuses fundamentando seu discurso na obra de Hesíodo, autor da célebre Teogonia, e apresenta Eros como o mais antigo dos deuses, nascido logo após o Caos e juntamente com a Terra. Além de estabelecer a importância da linhagem de Eros, Fedro salienta que este Deus é a causa dos maiores bens que recebemos, atribuindo a ele todas as boas ações que possibilitam ao indivíduo e ao Estado a realização do bem e do belo.
Dentre todas as virtudes que Eros insuflaria nos homens, Fedro afirma que a bravura e a coragem estão entre as mais louváveis, pois através delas seria possível:
[...] formar por algum modo, um estado ou exército exclusivamente composto de amantes e amados, assim se obteria uma constituição política insuperável, pois ninguém faria o que fosse desonesto, e todos, naturalmente, se estimulariam para a prática de belas coisas (PLATÃO, 1996, p. 179 a).
Fedro exemplifica, através dos mitos de Alceste e de Aquiles (a primeira sacrificando-se pelo marido, este vingando seu amigo Pátroclo) que a bravura e a coragem oriundos do amor se refletem no ato extremo de morrer pelo ser amado; assim, morrer um pelo outro, representa o amar verdadeiro e aquele que se sacrifica é admirado e recompensado pelos deuses após a morte, pois, sendo capaz de tal sacrifício, possui em si algo de belo e precioso, a própria divindade.
Percebe-se no discurso inaugural que Platão critica aqueles que, fazendo mau uso da arte retórica, tomam por base o estudo de autoridades em determinado assunto, no caso, os mitólogos, e manipulam esses conhecimentos para angariar a confiança dos ouvintes e através de uma estrutura de discurso formalmente perfeita induzem o interlocutor a acreditar que são sabedores do tema a respeito do qual versam quando, na verdade, escondem o pedantismo e a falta de reflexão com vistas a defender um objeto escuso, aqui a pederastia; aqui merece destaque a posição de António Gomes Robledo:
El discurso de Fedro, en conclusión, es la apología del homosexualismo, considerado como el más fuerte vínculo de la solidaridad social, una solidaridad, por lo demás, que no reconoce otros valores fuera del honor cívico y la gloria militar (ROBLEDO, 1983, p. 338).
1.2 Discurso de Pausânias
Pausânias fundamenta seu discurso na duplicidade de Eros. Assim, se há duas Afrodites, a Urânia ou Celestial (nascida de Uranos) e a Paudemiana ou Popular (nascida de Zeus e Dione), consequentemente há dois tipos de amor, um celestial, outro popular, uma vez que Afrodite e Eros são inseparáveis.
Com o intuito de valorar as diferentes naturezas do amor, Pausânias faz uma analogia entre a interpretação da ação humana, que é considerada segundo o seu resultado –um mal ou um bem, e o amor, de forma que este “em si mesmo não é belo e louvável, mas se torna belo e louvável, quando nos encaminha para um amor que é belo e louvável” (PLATÃO, 1996, p. 181a).
Desse modo, o Amor Popular, voltado mais para o corpo do que para o espírito, tem por objeto tanto as mulheres quanto os mancebos e é o amor com que os homens inferiores amam. Já o Amor Celestial, regido pela razão e moderado quanto à concupiscência, é o mor dos homens pelos mancebos, pois preferem o sexo que é mais forte e mais inteligente.
Para Pausânias, este segundo Eros atua entre homens e mancebos, que possuem, além da identificação sexual, uma identificação superior, baseada na premissa de que caberia ao homem sábio educar o mancebo no caminho da virtude, e, àquele, deixar-se conduzir, partilhando ambos do único caminho para o amor virtuoso: o da servidão voluntária, onde amante e amado se auxiliam constantemente ao longo da vida.
Após explanar sobre as diferentes naturezas do amor, Pausânias volta-se para uma análise política e sociológica do Amor em relação ao Estado, estudando o tema do amor em relação a diferentes cidades com o intuito de justificar ainda mais sua teoria; assim, aponta que na Élida e na Beócia todos procuram eliminar as dificuldades na conquista dos mancebos, favorecendo amplamente a Eros; na Jônia, porém, governada por bárbaros, o amor é duramente castigado, pois lá a soberania se assenta na desconfiança, impossibilitando que o amor e a filosofia floresçam no espírito dos súditos. Com relação à Atenas e Esparta, consideradas em conjunto, Pausânias as coloca numa posição intermediária quanto às outras.
Em seguida, Pausânias afirma que o Amor Celestial é incentivado e favorecido pela opinião pública. Esta distingue o amor nobre do amor vil com a finalidade de proporcionar todas as facilidades àquele que elege como superior. Na visão de Robledo: “Apelando hipócritamente para la moralidad, Pausânias viene a sancionar de hecho lo mismo que Fedro, sólo que enmascarándolo en una mitología filosófica tan cruda en los hechos como sutil en la intención” (ROBLEDO, 1983, p. 389).
Com Pausânias, Platão prossegue no intento de denunciar a falsa sabedoria dos sofistas, pois, no caso presente, trata-se de uma peça mais insidiosa que a anterior, que se vale de recursos mais abrangentes, tais como as relações sociais e políticas, e enfoca o que era mais caro ao mundo ateniense – a eficiência do Estado.
1.3 Discurso de Erixímaco
Erixímaco, o terceiro orador, é médico e representa a concepção naturalista; como tal amplia o poder de Eros atribuindo-lhe a geração de todo o mundo físico e de todo o cosmos. Associando Eros à Medicina, salienta que através desta pode observar que o amor, sendo um deus poderoso e admirável, está presente não somente nas almas dos homens, como até então afirmaram os oradores que o precederam, mas também na dos animais e plantas, sendo o motor primevo que propulsiona todas as atividades dos seres e da natureza.
Quanto aos corpos, Erixímaco corrobora a divisão efetuada por Pausânias e afirma que um Eros reina sobre o que é sadio e outro sobre o que é doente, cabendo ao médico utilizar sua sabedoria para harmonizar o que de bom e ruim se encontra no corpo do homem:
A Medicina (...) é a ciência do amor nos corpos relativamente à sua repleção e evacuação, e aquele que nesses movimentos consegue extremar o bom do mau amor, esse é um bom médico. Aquele que suscita o aparecimento de amor onde não havia amor, e onde não obstante era necessário e elimina um amor existente, quando pernicioso, esse inegavelmente, merece o título de excelente médico (PLATÃO, 1996, p. 186c).
Tal como Heráclito, para o qual ‘a unidade, que se opõe a si mesma, consigo concorda, como sucede à harmonia que do arco e da lira se evola (PLATÃO, 1996, p. 187 a), Erixímaco sustenta que a harmonia resulta de elementos contrários que celebram entre si um acordo, como as notas longas e breves que ditam o ritmo de uma música, tornando-a melodiosa e agradável.
Neste discurso Platão anuncia uma regra que, conforme Jaeger: “conduz à submissão do Eros a um critério valorativo” (JAEGER, 1995, p. 730), visto que caberia aos sábios incentivar o Amor Celeste e instruir os demais homens quando da convivência com o Amor Vulgar, que ao contrário de ser erradicado, deve ser utilizado como um meio de prazer, sem, no entanto, tornar-se destrutivo.
1.4 Discurso de Aristófanes
O comediógrafo Aristófanes, após recuperar-se de uma crise de soluços, inicia seu discurso enaltecendo as qualidades benfazejas de Eros. Partindo de uma linha antropológica, a personagem diz ser imprescindível remontar à origem da natureza humana para elucidar o poder de Eros. Para tanto, relata um dos mais belos mitos da obra platônica: em sua origem a humanidade era constituída por três sexos, o masculino, o feminino e o andrógino, formado pelo conjunto daqueles dois. Esses seres eram robustos e possuíam quatro mãos, quatro pés, dois órgãos de geração e uma cabeça, que comportava duas faces opostas; o sexo masculino descendia do Sol (Hélio), o feminino, da Terra (Géia) e o andrógino, da Lua (Sibele). Tomados pela audácia, os homens tentaram escalar o céu para atacar os deuses, mas fracassaram em seu intento e foram castigados por Zeus:
Creio que encontrei um modo de permitir que os homens existam, mas domesticados, tornando-os mais fracos: cortarei cada um deles em duas partes, e assim obteremos essa dupla vantagem: ficarão mais fracos e mais úteis, por que serão mais numerosos para nos servir (PLATÃO, 1996, p. 190d).
A partir desse momento cada metade pôs-se a procurar a outra, numa ânsia feroz de unirem-se novamente: “É daí que se origina o amor que as criaturas sentem umas pelas outras; e esse amor tende a recompor a antiga natureza, procurando de dois fazer um só, e assim restaurar a antiga
perfeição” (PLATÃO, 1996, p. 191d).
Segundo esta perspectiva o amor fundamenta-se na falta, no anseio de retorno àquela situação original em que homens e mulheres buscam reencontrar em outro ser a metade que lhe foi tirada e ao mesmo tempo devolver ao outro o que em si se encontra dele. Embora caricatural, este discurso traz em si o germe da perspectiva platônica a respeito da reminiscência, ou seja, de uma situação ideal a que constantemente a realidade está referenciada – o Mundo das Ideias:
E são essas as pessoas que vivem juntas toda a vida, sem conseguirem, aliás, explicar o que mutuamente esperam uma da outra; pois não parece ser o prazer dos sentidos a causa de tanto encanto em viver juntas. É evidente que a alma de cada uma deseja outra coisa que não conseguem dizer o que seja, que pressentem e às vezes exprimem de maneira misteriosa (PLATÃO, 1996, p.192e).
Diferentemente do personagem Pausânias, o de Aristófanes justifica o homossexualismo masculino e feminino, e também o heterossexualismo, através da origem do amor, mas não deixa de favorecer o homossexualismo entre os homens salientando que o pederasta só casa e tem filhos quando cede à opinião pública, contrariando, assim, sua natureza original.
Ao concluir seu discurso, Aristófanes, alerta que a humanidade nunca deve ir contra Eros, mas,
o contrário, deve obter sua amizade e louvá-lo, pois somente este deus é capaz de assegurar a verdadeira felicidade.
Como bem registra Robledo, à primeira vista é de causar estranheza a presença do comediógrafo no Banquete, uma vez que este, por meio da comédia As Nuvens, desencadeou uma reação em cadeia que culminou com a sentença sacrificial de Sócrates. Para Robledo, o intuito de Platão atendeu à finalidade de declarar a antipatia que nutria por Aristófanes desde a injusta condenação imposta a Sócrates, pois o Aristófanes do discurso é um glutão e bêbado, e a forma do elogio por ele proferido é inferior aos demais e, sobremaneira, cômico.
Pero la simpatía personal no es la única razón, ni mucho menos, pola que Platón introduce en sus diálogos a ciertos personagens: la antipatia, por el contrario, puede ser la razón apropriada, sobre todo cuando se trata de ponerlos en solfa (ROBLEDO, 1983, p. 393).
1.5 Discurso de Agáton
O próximo orador do banquete é Agáton, anfitrião e vencedor do prêmio que era então comemorado. Após uma breve discussão com Sócrates, Agáton censura os demais oradores por apenas chamarem felizes os homens agraciados por esse deus, sem, no entanto, elogiar a verdadeira essência do amor. Assim, sua pretensão é explicar quem é Eros e explicitar seus efeitos.
No discurso de Agáton todos os deuses são felizes, mas Eros, por ser o mais jovem e belo dentre eles, é o mais feliz; por ser jovem, esse deus foge à velhice e por ser belo busca viver em ambientes suaves, perfumados e harmônicos. É possuidor de todas as virtudes e “constrói sua morada nos corações e nas almas dos deuses e dos homens. Não em todas as almas, é preciso dizer: quando encontra espíritos endurecidos, retira-se, e habita apenas os que são doces” (PLATÃO, 1996, p. 195e).
Tendo em vista defender a extrema perfeição desse deus, Agáton discursa colocando em dúvida a religião tradicional grega e sustenta que as velhas histórias sobre deuses contadas por Hesíodo e Parmênides, se são verídicas, devem-se ao império de Anankê (a Necessidade), pois sob a regência de Eros jamais ocorreriam tais atrocidades e violências.
Quanto à sabedoria do Amor, Agáton o coloca como o criador de tudo o que é grandioso, desde as artes dominadas pelos deuses (a arte de tecer, de governar, a medicina, a música) até aquelas atribuídas aos mortais (estes, após o toque de Eros transformar-se-iam em poetas). Neste elogio, o amor é focalizado como um elemento socializador que beneficia tanto os deuses quanto os homens:
É ele quem nos arranca do isolamento, quem aproxima os homens; é princípio e liame da sociedade. É ele quem nos guia e nos inspira em festas, danças e sacrifícios, quem faz entreabrir-se a doçura e desaparecer a ferocidade (PLATÃO, 1996, p. 197c).
Assim, observa-se que Platão atribui a Agáton um discurso que é a verdadeira exaltação da superficialidade para, mais uma vez, criticar a verborragia dos sofistas.
1.6 Discurso de Sócrates
Quando de seu discurso, Sócrates ironiza Agáton e diz-se inibido de falar após ter ouvido tão belo discurso, sentindo-se incapaz de tecer um elogio a Eros. Prosseguindo sua encenação, Sócrates pede permissão a Fedro para falar da forma que melhor sabe fazer – por meio do diálogo –, mas ara tanto necessita, antes, tratar umas pequenas questões com Agáton, a fim de que possa falar com mais segurança.
A partir desse momento Sócrates, passa a formular questões sutis que embaraçam Agáton, como, por exemplo: Eros deseja ou não o objeto de que é amor? Quando deseja e ama, possui ou não a coisa que deseja e ama? e termina por levar seu interlocutor a descobrir que o discurso proferido era perfeito retoricamente, mas vazio em essência de conhecimento.
Para expor as verdades alcançadas no breve diálogo que traçara com Agáton, Sócrates reproduz um discurso que outrora mantivera com Diotima, uma sábia, natural da Mantinéia, que fora a responsável pelo conhecimento de Sócrates acerca do amor. Num primeiro momento, Diotima teria esclarecido a Sócrates que o amor não é uma divindade, pois carece do belo e do bom, mas nem por isso é feio e mau, na verdade este habitaria num plano intermediário entre esses dois opostos, tal qual a opinião certa está para a sabedoria e a ignorância. Eros seria um ser entre os homens e os deuses, um daimon
A ele cabe interpretar e transmitir aos deuses o que vem dos homens, e aos homens o que vem dos deuses; a uns, as orações e os sacrifícios; a outros, os mandamentos e as recompensas das preces. Seu lugar é entre os dois, e por isso preenche o vazio que há entre uns e outros. É o liame que une o todo a si mesmo. Graças a ele é que existe a divinação, e também a arte dos sacerdotes relativa aos sacrifícios, às consagrações, às fórmulas sagradas, a todas as profecias, encantações, à magia em geral. Um deus, com efeito, não se aproxima de um homem. Toda a comunicação que se estende entre os deuses e os homens, estejam acordados ou dormindo, é sempre feita por intermédio dos gênios. O homem a quem são feitas essas comunicações e que as conhece, é um homem inspirado; todos os outros, os que só conhecem um pouco das artes e de certas manipulações não passam de artífices. Há muitos gênios, e, sobretudo diferentes espécies deles. Eros é um desses gênios (PLATÃO, 1996, p. 203 a).
Tal natureza mediadora é devida à origem do amor. Sendo filho de Poros (Recurso) e de Penia (Pobreza), herdou da mãe a ânsia permanente, a fome e a miséria, e, do pai, todos os expedientes para suprir o que lhe falta, ou seja, a bravura e o desejo de conhecimentos. E tendo sido concebido na ocasião do nascimento de Afrodite, tornou-se seu servidor, pois ama o que é belo. Definida a origem do Amor, a estrangeira caracteriza o seu fardo: oscilar permanentemente entre a miséria e a riqueza na busca do belo e da sabedoria:
A sabedoria, efetivamente, é uma das coisas mais belas que há e Eros tem como objeto do seu amor precisamente o que é belo. Logo, devemos reconhecer que Eros é necessariamente um filósofo, e como tal ocupa o meio-termo entre o sábio e o tolo (PLATÃO, 1996, p. 204 a).
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Partindo da afirmativa de que Eros é o amor do belo, Diotima traça uma analogia entre o belo e o bem para demonstrar que, se o amor é amor do belo, também é amor do bem, e se é essencialmente desejo, conclui-se que é o desejo de possuir o bem; e não somente possuí-lo, mas possuí-lo para sempre. Daí que o Amor é o desejo de posse do Bem para sempre.
A profetisa salienta ainda que para receber esse justo nome – Amor -, os homens devem praticá-lo de forma adequada, de modo que consigam a criação da beleza segundo o corpo e segundo o espírito. Tal feito é possível através do ato de procriar no belo “pois que o amor consiste no desejo da posse perpétua do bem; donde resulta que o amor é também o desejo de imortalidade” (PLATÃO, 1996, p. 207 a).
O conceito de imortalidade na fala de Diotima apresenta dois vieses: o da procriação, de natureza heterossexual, e o do espírito, do qual participam ambos os sexos (contrariando todos os demais discursos, neste há uma completa carência de preconceito). O primeiro acontece quando o homem é fecundado em seu corpo e através da procriação e do nascimento consegue imortalizar-se através daqueles a quem gera. O segundo relaciona-se
com as artes e diz respeito aos que concebem pelo espírito, gerando a sabedoria que atravessa
séculos e séculos; entre estes figuram os poetas, os inventores e os juristas.
Diotima destaca que para alcançar a sublime posse, o homem deve conduzir-se da seguinte maneira: na mocidade deve dirigir a atenção para belos corpos, para depois perceber que a beleza da alma é infinitamente superior à do corpo; após deve dirigir-se para a beleza dos conhecimentos, quando então, estará apto a contemplar a imensidão do belo; ultrapassados todos os graus do amor, o homem sentirá em si próprio a essência do belo, a sensação sublime de pureza e segurança que é o amor enquanto saber.
1.7 Discurso de Alcibíades e o elogio a Sócrates
Logo após o discurso de Sócrates ocorre a chegada intempestiva de Alcebíades à frente de um bando de bêbados com o propósito de felicitar Agáton pelo prêmio alcançado. Dadas as boas-vindas ao general ateniense, Erixímaco coloca-o a par dos discursos em honra de Eros e pede-lhe que também faça um elogio ao deus do amor. Alcibíades atende ao pedido do simposiarca e prepara-se para fazer um elogio a Eros, mas este se converte num elogio a Sócrates.
Iniciando o discurso, Alcibíades destaca o paradoxo desconcertante que lhe suscita Sócrates e
passa a compará-lo às estátuas de silenos (semideuses dotados de grande fealdade), que eram produzidas por escultores gregos, as quais, de aspecto externo grotesco, ao serem partidas revelavam em seu interior imagens esculpidas de divindades belíssimas. O jovem general passa então a elogiar os dotes oratórios de Sócrates, primeiro comparando a técnica deste com a arte da figura mitológica de Mársias – segundo a lenda o criador da flauta, instrumento cujo som envolvente é de grande doçura ao ouvido, e que, segundo o orador promove a comunhão com o mundo divino. Diz Alcebíades: “A única diferença que há entre ti (Sócrates) e ele (Mársias), é que consegues os mesmos efeitos sem te utilizares de instrumentos, mas só de tua palavra” (PLATÃO, 1996, p. 215b).
Confronta ainda os discursos de Sócrates com os de outros mestres da oratória e diz que aqueles não o impressionaram tanto quanto os do filósofo: “Ao ouvi-lo, meu coração pulsa mais fortemente do que o dos coribantes e enchem-se os meus olhos de lágrimas sob o efeito de suas palavras” (PLATÃO, 1996, p. 215e).
Sem as amarras da sobriedade, o general passa a confessar todo seu embaraço e queixa-se do sofrimento que lhe causa a rejeição do filósofo, visto que este nunca cedeu às suas investidas apaixonadas. Ao final de sua fala, Alcebíades conclui prevenindo Agatão contra Sócrates, reafirmando ser, como outros tantos jovens atenienses, vítima de sina adversa, visto que o filósofo se mantém inatingível à paixão que lhe devotam os amantes. E como destaca que o anfitrião haverá de arrepender-se se não lhe der ouvidos, esta nuança no final de sua fala revela a presença de outro componente do amor apaixonado do intemperante general grego: o ciúme, o medo e a vergonha de ser preterido. Segundo Mota Pessanha “Alcebíades é o amor paixão, acorrentado à imediatez, ao presente, ao sensível, à urgência do aqui e agora” (PESSANHA, 1994, p. 100) por isso age de tal forma.
A postura de Sócrates no discurso amoroso de Alcebíades não corresponde ao que este espera daquele. Isto promove no amante o desespero angustiado da dúvida, já que o filósofo não lhe corresponde nem lhe dá razões para desprezá-lo:
Como pensais agora que eu devia tratar a um homem assim? Eu me sentia desprezado, e não obstante não podia deixar de admirar o seu caráter, a sua continência e o seu autodomínio; encontrar um homem dotado de tamanha temperança e sabedoria como jamais pensei que pudesse haver. O fato é que nem pude zangar-me com ele nem renunciar a sua amizade, nem descobrir meios de atraí-lo para mim (PLATÃO, 1996, p. 219c).
A intervenção desbordada de Alcebíades em tudo contrasta com os demais discursos, os quais mantiveram sempre um distanciamento contido em relação ao amor. Este, o discurso que Platão dá a Alcebíades, um homem de ação, nos traz a complexidade de um amor frustrado e as contradições que ele propõe, onde o que se ama no outro é um pouco de nosso ideal, daquilo que gostaríamos de ter para amar e não aquilo que realmente o outro é, mas que também nós não somos.
2. FEDRO
Vinculando estreitamente o tema do Eros à linguagem, neste diálogo Platão retoma e aprofunda a discussão abordada no Banquete, onde havia afirmado ser o amor desejo de imortalidade, desejo do Belo, e que o ato de procriar através do corpo ou do espírito, possibilitaria ao homem superar sua condição mortal.
No início do diálogo platônico, Sócrates encontra-se com Fedro em uma rua de Atenas; este mostra-se profundamente entusiasmado com um discurso que ouvira de Lísias, mestre da retórica, acerca do amor e convida o filósofo a acompanhá-lo para fora dos muros da cidade a fim de que possam conversar. Caminham ao longo do rio Ilisso e enfim alcançam um plátano alto, florido, perfumado e por onde corre bonita fonte de água fresca; acomodam-se e Fedro passa à leitura do discurso de Lísias.
2.1 Discurso de Lísias
Fedro relata que o retórico Lísias defende que é preferível manter uma relação amorosa com um amante sem paixão do que arriscar-se a ceder favores àqueles que amam verdadeiramente, pois
os primeiros mantêm a amizade e a dignidade após o rompimento, já os segundos tornam-se inconvenientes e traiçoeiros.
O amante apaixonado esquece-se de seus negócios, de seus parentes e amigos e só visa à satisfação de seu desejo “Em consequência disto, é sempre duvidoso que eles, uma vez satisfeito o desejo, estejam dispostos a continuar essa amizade, desde que desapareça o desejo” (PLATÃO, 1996, p. 233 a).
Vale ressaltar que tanto os gregos quanto os romanos, consideravam a excessiva influência dos instintos amorosos sobre um indivíduo como danosa e indigna. O amor apaixonado era considerado uma doença escravizadora – na medida em que torna o homem dependente de outra pessoa, corrompendo, dessa forma, a hierarquia social. Deixar-se dominar por seus desejos é próprio dos seres inferiores; a marca do indivíduo superior mostra-se através da autodisciplina aliada à razão.
Percebe-se que neste primeiro discurso, o amor é ligado à passividade, ao orgulho, ao medo, enfim, ao negativo; segundo as ideias de Lísias o amor é um sentimento nocivo que afasta o homem da razão e da virtude, tornando-o afeito a impulsos irrefreáveis de posse e concupiscência.
2.2 Primeiro Discurso de Sócrates
Não obstante o entusiasmo de Fedro, Sócrates ironiza o discurso de Lísias, afirmando que aquele, além de não possuir qualidades retóricas, carece ainda de expressão quanto à verdadeira essência do tema. Após uma longa discussão, Fedro exige que o filósofo formule um discurso sobre o amor que seja superior ao de Lísias.
Sócrates graceja diante da fúria de Fedro e pede às Musas que estas lhe inspirem um bom discurso. Num primeiro momento, o filósofo afirma que o amor é desejo, mas esclarece que os homens são governados por dois tipos de desejo: o desejo inato do prazer e o desejo do melhor, este, aliado à reflexão. O primeiro princípio, o desejo aliado à paixão é apresentado como uma fúria incontrolável, uma rebelião dos sentidos, uma doença que degenera o indivíduo e afasta-o da virtude; a este Sócrates chama Eros:
Quando o desejo, que não é dirigido pela razão, esmaga em nossa alma o prazer do bem e se dirige exclusivamente para o prazer que a beleza promete e quando ele se lança, com toda a força que os desejos intemperantes possuem, o seu poder é irresistível. Esta força toda poderosa, irresistível, chama-se Eros ou Amor (PLATÃO, 1996, p. 238c).
Para o filósofo, o homem governado por esse tipo de desejo torna-se escravo da volúpia e causador dos maiores prejuízos ao amado, visto que, tomado pela impaciência o afastará dos amigos, da família, dos negócios e da filosofia, pois necessita que o amado viva exclusivamente para o seu desejo: “Uma coisa é evidente para todos, e em primeiro lugar para o próprio amante: ele deseja, acima de tudo, que seu amado seja privado dos mais ambicionáveis, mais agradáveis e mais divinos bens” (PLATÃO, 1996, p. 243a).
Afora todos esses males que o amante apaixonado causa ao amado, Sócrates salienta que ainda há um pior: quando seu amor termina, o amante revela-se o mais traiçoeiro dos homens; passa a desfazer e humilhar o antigo amado e jamais cumpre qualquer das promessas que outrora lhe fizera. E conclui:
Eis, caro rapaz, o que é necessário ter em mente; deves saber que o amor de um homem apaixona do não provém de um sentimento benévolo, mas, como o apetite ao comer, da necessidade de satisfazê-lo. ‘Como o lobo ama o cordeiro, ama o apaixonado o seu amado’ (PLATÃO, 1996, p. 241d).
Para Marilena Chauí, tanto Lísias quanto Sócrates, nos dois primeiros discursos do Fedro, apresentam o amor como appetitus, vocábulo latino que traduz o grego hormê, que significa ardor, zelo, e oréxis, que é a ação de tender fortemente para algo ou alguém; donde apettitus implica em avidez, paixão e desejo. O cupiditas (desejo ávido) é a doença do apettitus, que dá origem à palavra concupiscência (NOVAES, 1990, p. 27).
Proferido o discurso, Fedro exige de Sócrates um posicionamento sobre o desejo aliado ao Bem, ou seja, o desejo do melhor; este, porém, dá-se por satisfeito e prepara-se para atravessar o regato e voltar à cidade; mas então percebe que cometera um pecado terrível: ao fazer um discurso ímpio sobre o amor houvera desrespeitado um deus; deveria, pois penitenciar-se a fim de fugir à ira de Eros: “Esses discursos pecaram contra Eros. [...] Eis por que, meu Fedro, é necessário que eu me penitencie” (PLATÃO, 1996, 243).
2.3 Segundo Discurso de Sócrates
Logo no início de seu segundo discurso, Sócrates afirma que não fora verdadeiro o anterior e defende que a loucura do homem apaixonado é uma espécie de delírio inspirado pelos deuses para a sua felicidade e não para sua ruína.
Segundo Sócrates, os delírios benévolos aos homens são de quatro tipos: o primeiro é o da profetisa de Delfos, o segundo, das sacerdotisas, ambas são de suma importância, pois, prestam grandes favores às pessoas e aos Estados da Grécia quando em situações de guerra, flagelos e purificações por pecados antigos. O terceiro delírio é atribuído às Musas, tendo em vista que são mestres da arte poética, o homem inspirado por estas criará as mais belas canções e os mais comoventes poemas. O quarto tipo de delírio é o Amor; este foi enviado pelos deuses para o seu bem, para sua felicidade. Nas palavras de Sócrates: “... o amor foi enviado ao amante e ao amado, não em virtude de sua utilidade material, mas, ao contrário, e é o que mostraremos, esse delírio lhes foi incutido pelos deuses para sua felicidade” (PLATÃO, 1996, p. 245c).
A fim de explicar a benevolência do amor, Sócrates parte do seguinte princípio: toda a alma é imortal; esta pode ser representada por uma carruagem alada onde um cocheiro procura conciliar o ímpeto de dois cavalos. A carruagem dos deuses é facilmente conduzida, pois seus cavalos são bons e virtuosos, já a carruagem dos demais seres, que é regida por cavalos contrários – um bom, outro ruim – é de difícil manejo.
Em seu passeio pelo céu, anterior à existência terrena, as almas contemplam as Ideias Eternas -
a Justiça, o Bem, a Verdade, o Belo -; a alma dos deuses, saciada sua sede de conhecimento, volta para o interior do céu, já a alma do homem, além de não conseguir contemplar com clareza as Ideias, devido ao enfrentamento constante entre os cavalos, perdem as suas asas aladas e passam a habitar um corpo humano. A retomada das asas será efetivada através da reminiscência, quando o homem, ao contemplar a beleza, reconhece-a como uma das Ideias divinas, que outrora contemplara.
Visto que o amor é o ato de procriar no Belo, ao avistar a Beleza, a alma humana eleva-se ao divino e reencontra a plenitude anteriormente experimentada. Desse modo o amor manifesta-se como algo divino e por isso difícil de ser abandonado; conforme Sócrates: “Cada um escolhe o seu amor de acordo com o respectivo caráter e passam a considerá-lo como seu deus, elevam-lhe uma estátua em seu coração, enfeitam-no para adorá-lo e celebrar seus mistérios” (PLATÃO, 1996, p. 252d).
Os amantes possuídos por esse tipo de amor são zelosos para com seus amados e desejam compartilhar os mesmos interesses e as mesmas vitórias. Neste discurso o amor surge como uma iniciação ao bem, algo que transcende a matéria corpórea e anima os seres humanos a desenvolverem-se espiritualmente para alcançar a plenitude outrora experimentada quando a alma habitava o Mundo das Ideias.
Segundo Flávio Di Giorgi, neste discurso amor possui dois componentes: o amare que diz respeito ao ato sexual e o bene velle que é a estima, o querer bem; daí que o amor para ser completo, harmônico, precisa ter necessariamente esses dois elementos. Se não tem, ou dominará a paixão, ou a amizade (CARDOSO, 1990, p. 137).
Quanto às alternativas do amor, Sócrates volta a referir-se aos dois cavalos contrários que regem a carruagem; estes representam os dois princípios primordiais que governam o homem: o bem e o mal. O cavalo bom é harmonioso e ama a honestidade; o cavalo mau é rebelde e dotado de lascívia. Quando o cocheiro vê o objeto amado e procura aproximar-se, os cavalos travam uma luta entre si para ver qual dos dois dominará o objeto.
Se o princípio do bem for vitorioso, o amor advindo dele proporcionará aos amantes uma vida regrada pela filosofia e pela concórdia e ao morrerem suas almas novamente recebem asas e voltam aos céus, permanecendo unidas para toda a eternidade. Porém, se o princípio do mal for o vencedor, o amor será voltado para os prazeres e satisfações, sem a presença da filosofia; suas almas também rumarão ao céu, mas seu amor é inferior aos que verdadeiramente amam. De acordo com Sócrates:
São essas coisas divinas, que te dará o amor do que ama com paixão. O amor daquele que não tem paixão, daquele que apenas possui a sabedoria mortal e que se preocupa com os bens do mundo, só gera na alma do amado a prudência do escravo à qual o vulgo dá o nome de virtude, mas que o fará vagar, privado da razão, na terra e sob a terra durante nove mil anos! (PLATÃO, 1996, p. 257a).
2.4 A Linguagem do Amor
Nesse ponto do diálogo, o tema do Amor aparece intimamente ligado à questão da linguagem; Sócrates expõe os defeitos da retórica que vigoram em seu tempo. Primeiramente ressalta que a arte Retórica tem o poder de governar e manipular os homens por meio das palavras e por isso um orador ignorante é extremamente nocivo à sociedade, pois através de suas lições infundadas de verdade acaba por impelir o povo a pensar e agir de modo tão ignorante quanto ele. “Logo, meu caro amigo, quem não conhece a verdade, mas só alimente opiniões, transformará naturalmente a arte retórica numa coisa ridícula que não merece o nome de arte” (PLATÃO, 1996, p. 262c).
Então o filósofo toma como exemplo o discurso de Lísias e prova que este não passa de um embuste. Para Sócrates o discurso é mal estruturado, visto que começa pelo fim, há um grave desordenamento entre as frases e um excesso de repetições; todos esses elementos comprovam o mais grave: a total ausência de conhecimento sobre o assunto; destaca ainda que o fato de tratar-se de um tema abstrato facilita aos oradores medíocres manipularem e iludirem seus ouvintes.
Após a crítica, Sócrates explica como devem conduzir-se os discursos: primeiramente deve-se lançar um ideia geral sobre o tema a ser tratado; depois, dividir essa ideia em vários elementos, classificar os seus opostos e por fim apresentar qual delas é a melhor. A esse método, Sócrates chama Dialética – arte do diálogo e da discussão:
...a melhor maneira de aprender e de pensar. E quando me convenço de que alguém é capaz de apreender, ao mesmo tempo o conjunto e os detalhes de um objeto, sigo esse homem como se caminhasse nas pegadas de um deus. E aos que têm esse talento, deus sabe que tenho razão em assim falar, sempre chamei dialéticos (PLATÃO, 1996, p. 266).
O verdadeiro orador, para Sócrates, é aquele que possui o dom da eloquência e o exercitar até a exaustão através da pesquisa e da meditação; deve conhecer profundamente a natureza do objeto sobre o qual irá trabalhar; deve perceber se sua natureza é simples ou multiforme, se produz ação e suas influências, classificar seus gêneros e suas causas; somente assim o orador adquirir à experiência para saber que espécie de discurso deve usar para persuadir as diferentes almas.
Sócrates expõe que os retóricos de sua época pregavam que não era necessário conhecer a verdade sobre o que é bom ou o que é justo, nem sobre a natureza do objeto em questão, e sim falar sobre o provável, o verossímil. Na obra de Platão, para que a retórica alcance uma posição elevada, deve ligar-se ao problema da busca da Verdade, do Bem e da Justiça e estar unida à Dialética. Só assim a retórica passa à condição de instrumento com validade necessária à formação da virtude e da cidadania.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
No interior dos diálogos Fedro e O Banquete, de Platão, percebemos duas formas de desejo/amor: de um lado, o amor enquanto aspiração ao Mundo das Ideias, a impulsionar a alma, pela ascese, rumo a sua condição original; de outro, o desejo enquanto apetite, que prende o corpo ao carnal, à imediatez da concupiscência. O primeiro é o anseio de plenitude pura; o segundo, perseguição do prazer sexual. Ambos apresentam um vínculo com o tempo e associam-se a um tipo de memória. Esse enfrentamento de desejos voltados para objetos de natureza diversa cria uma tensão permanente, que ultrapassa o nível psicológico e alcança outros campos da compreensão humana, tais como o ético, o pedagógico e o político, constituindo os inúmeros desdobramentos da construção platônica.
O embate entre aspiração e apetite nos permite entrever o verdadeiro sentido do idealismo platônico enquanto primazia do ideal em relação ao real imediato, do absoluto em relação ao hipotético, ou em última instância, da alma em relação ao corpo. A caracterização e união desses elementos, reunidos na relação do sensível e do inteligível, é a tarefa a que Platão se propõe; por sua própria natureza é um empreendimento infindável, pois o que pretende é um exercício perene do filosofar, da busca pela sabedoria.
Para Platão o melhor tipo de amor se une essencialmente ao Bem e ao Belo; pela via da beleza há o despertar para aquilo que é sensível e a consequente reminiscência da plenitude de outrora, experimentada no Mundo das Ideias. O amor seria, então, o desejo de imortalidade ligado ao Bem. A eternidade somente pode ser alcançada de duas formas: através da procriação pelo corpo (geração de filhos) ou através da procriação pelo espírito (geração de obras); junte-se a isso a importância da educação filosófica como o meio ideal para ascender a tal estado.
Assim, a filosofia do Eros está orientada para o próprio amor, aquele que deve ser amado por si mesmo, pois se o amor pertence às verdades absolutas, pertence à alma, e se esta se encontra
distante do mundo sensível é através do amor que retorna a sua essência.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
CARDOSO, Sérgio (Org.). Os Sentidos da Paixão. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.
CATULO, Caio Valério. Poesia Lírica Latina. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
DURANT, Will. História da Filosofia. São Paulo: Cultural, 2000.
JAEGER, Werner. Paidéia: A Formação do Homem Grego. São Paulo: Martins Fontes, 1995.
NOVAES, Adauto (Org.). O Desejo. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
PAULO, Margarida Nichele. Indagação sobre a imortalidade da alma em Platão. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996.
PLATÃO. Diálogos I: Mênon, Banquete, Fedro. Rio de Janeiro: Ediouro, 1996.
ROBLEDO, Antonio Gomes. Platón. México, 1983


[1] Professora do Curso de Letras da Universidade Federal de Pelotas (RS). Mestre em Letras pela UFPel. Graduada em Direito (UCPel) e Especialista em Filosofia Moral e Política (UFPel). Integrante do Grupo de Pesquisa Estudos Comparados de Literatura, Cultura e História.
[2] RODRIGUES, Gabriela Rocha. É o amor dos homens pelos mancebos, pois preferem o sexo que é mais forte e mais inteligente. Disponível em: <http://www.giacon.pro.br/lem/EDICOES/06/Arquivos/RODRIGUES.pdf>. n. 6, Mai 2014. Acesso em: 8.10.2015, às 22h30.