quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Crescem os "sequestros relâmpagos" no Distrito Federal

Publiquei, em <http://www.sidio.pro.br/SequestroRelampago.pdf>, um artigo jurídico intitulado "Cresce o número de sequestros relâmpagos e não há solução legislativa razoável". Uma pessoa, prefiro não identificar, o leu no Jus Navigandi e mandou o seguinte comentário:

Dr. Sidio.Embora entenda que a diminuição da criminalidade passe pela educação principalmente no seio familiar, vemos à cada dia se restringir a autoridade da família por meio de leis espúrias.Entretanto declarar que a criminalidade aumenta em razão da punibilidade é fundamento perverso, porque a pena restringe, o que não restringe são as atitudes paternalistas do judiciário para com o apenado, que sabe que não cumprirá sua pena integralmente. Isso é que deveria ser comentado e defendido em tese.

Vi que não havia publicado noticia do artigo mencionado neste espaço virtual, razão de estar publicando parte do mesmo aqui neste momento:

O presente texto visará a demonstrar que a solução da maioria das soluções dos problemas da sociedade complexa tem soluções metajurídicas, razão de tomar por referência a notícia transmitida hoje (12.2.2012), às 8h50 (matéria retransmitida às 10h14), no canal de televisão Globo News, no qual se disse que em 2011 o número de sequestros relâmpagos, no Distrito Federal, cresceu em 30%, isso em relação a 2010, e, neste ano de 2012, já foram registrados 73 ocorrências policiais de tais crimes.
Sempre que trato de estatísticas, alerto os meus alunos para as cifras negras, o que nos leva a duvidar das estatísticas em matéria criminal, pois – certamente -, muitos números se perdem e elas podem partir de equivocadas premissas.
(...)

Citei vários autores nos meus livros e nas diversas publicações que fiz sobre a matéria criminal, a fim de subsidiar a afirmação de que o Direito não é a panaceia de todos os males da sociedade. Pior ainda é pretender considerar o Direito Criminal como tal porque ele é subsidiário, de última instância ou de ultima ratio. Ademais, nada será mais incoerente do que pretender resolver o problema da criminalidade por meio do seu efeito, a pena.
Sendo a pena efeito do crime, ratifico, não se deve pretender resolver o problema da criminalidade por intermédio dela. Porém, o Brasil conheceu um político – o qual foi, inclusive, Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) – que foi Ministro da Justiça nos idos de 1996, Nelson A. Jobim, o qual propôs uma lei mais severa como solução para os roubos havidos nas proximidades das caixas eletrônicas dos bancos.
Atendendo aos interesses das empresas seguradoras de veículos automotores, o Congresso Nacional editou a Lei n. 9.426, de 24.9.1996, a qual cuidou especificamente do sequestro relâmpago, conforme se pode extrair da Exposição de Motivos n. 287, de 12.7.1995, encaminhada ao Congresso Nacional pelo Ministro Nelson Jobim, conforme Mensagem n. 784, de 19.7.1995. Dela consta:

(...)
Com a nova redação, foram acrescidos os incs. IV e V no § 2º do art. 157 do Código Penal. Também, foi alterado o § 3º do mesmo artigo, ficando o referido dispositivo legal da seguinte maneira:
(...)
É interessante notar que o Deputado Federal João Alberto Fraga Silva, mesmo havendo disposição que tratava expressamente do crime de sequestro relâmpago, fez campanhas públicas, no ano de 2005, dizendo que tentava aprovar o Projeto de Lei do Senado que instituía o crime de sequestro relâmpago. Tal projeto, datado de 11.8.2004, ganhou, na Câmara dos Deputados, o número PL 4.025/2004. Diante da manifestação de parlamentares, em defesa da conversão do projeto nupercitado em lei, foi editada a Lei n. 11.923, de 17.4.2009, que criou o § 3º ao art. 158 do Código Penal, o qual ficou assim:
(...)
O art. 158 do CP ficou contraditório. Ele trata da extorsão e o art. 157, § 2º, inc. V, cuida do roubo, sendo que, em face do princípio da especialidade, no caso de refém anterior à subtração, na hipótese de sequestro relâmpago, dever-se-á, considerar extorsão, com pena mínima de 6 anos de reclusão. Todavia, caso a vantagem seja imediata e o sequestro ocorra para assegurar a vantagem ou impunidade do agente (facilitação da fuga), aplicar-se-á a pena do art. 157, § 2º, cuja pena mínima será de 5 anos e 4 meses de reclusão. Ocorre, que o advento da nova lei mais rigorosa serviu, na prática, de incentivo ao aumento de tais crimes.
(...)
Concluo dizendo que não é por meio do rigor punitivo que se pode pretender combater a criminalidade. No caso de sequestro relâmpago, a experiência brasileira vem demonstrando que o aumento do rigor incentiva o crescimento da prática de tais delitos.
Respondi ao signatário do comentário noticiado no início da postagem dizendo ao mesmo que, caso queira deixar o seu comentário público, que pode fazê-lo aqui, convite que estendo a todo leitor dos textos aqui contidos. 

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

A rídicula sentença condenatória de Lindemberg Alves (do "caso Eloá)

Aqui estou para apresentar a maior parte do artigo jurídico que publiquei (em http://www.sidio.pro.br/LindembergSentenca.pdf)  sobre a análise jurídica possível da sentença condenatória de Lindemberg Alves:

Farei pequenos comentários à sentença proferida no “Caso Eloá”, levando em consideração aspectos notórios. Por isso, os mesmos prescindem de provas, sendo que as críticas visam a demonstrar o que deve ser feito para melhor aplicação da legislação criminal, ao contrário do teatro montado em torno do julgamento e Lindemberg Alves Fernandes.
A íntegra da sentença está disponível em <http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2012/02/confira-integra-da-sentenca-do-julgamento-de-lindemberg-alves.html>, a qual é transcrita aqui, in verbis:
[Não transcreveri aqui a sentença. O interessado poderá ver a sua íntegra na minha página eletrônica, conforme informado acima]
Desculpe-me a Juíza de Direito Milena Dias, mas existem equívocos graves na sua sentença, inclusive, na representação tácita que ela pretendeu demonstrar no dispositivo do ato judicial. Esclareça-se que a doutrina jurídica informa que a sentença é o ato ápice da atuação judicial e deveria ser, em todos os casos, ato de inteligência, sendo que a sentença transcrita não representa aquilo que se pode esperar, mormente em caso tão notório.
(...)

Lindemberg foi levado a julgamento perante o Tribunal do Júri, este o condenou. Com isso, ao contrário de iniciar a sentença com a palavra “Vistos”, que nada traduz, a Juíza deveria ter informado especificamente que o réu foi condenado pelo Tribunal do Júri a determinados crimes, o que ela faz muito mal ao final quando afirma:
“Em face da decisão resultante da vontade soberana dos Senhores Jurados, julgo PROCEDENTE a pretensão punitiva do Estado, para condenar LINDEMBERG ALVES FERNANDES, qualificado nos autos, como incurso nas sanções...”
Diz-se que a sentença do júri, quanto à origem, é mista, porque o tribunal popular decide se absolve ou condena e o Juiz Presidente elabora a sentença e, no caso de condenação, faz a dosimetria da pena, estabelece o regime inicial etc. Assim, quem julgou procedente a pretensão punitiva não foi a Juíza Milena Dias, mas os jurados...

A individualização da pena exigiria detalhamento dos crimes na sentença, o que não foi feito. Por isso, a sentença é nula, cabendo recurso contra ela, isso com fundamento no art. 593, inc. III, alínea “c”, do Código de Processo Penal (CPP). É nula por violar a individualização da pena e por não conter toda fundamentação para o quantum fixado na pena base para cada um dos crimes.
Existem livros monográficos sobre a sentença criminal, especificamente sobre a aplicação da pena, os quais deveriam ter sido lidos pela magistrada para que ela não incorresse em uma situação constrangedora como a que se expôs publicamente no momento de ler a sentença que proferiu. Até mesmo o meu Execução Criminal poderia ajudar bastante, eis que demonstra a técnica para uma adequada dosimetria da pena.[1]
Ao fazer a análise das circunstâncias judiciais do art. 59 do CP, a magistrada o fez atabalhoadamente, criando, com isso confusões insuperáveis, as quais só podem conduzir à declaração da nulidade da sentença, o que pode ser corrigido pelo próprio TJSP.
(...)

Não se olvide que a teoria normativa informa que são elementos da culpabilidade: (a) imputabilidade; (b) potencial consciência da ilicitude; (c) exigibilidade de conduta conforme o Direito. Porém, como sou partidário da teoria psicológica-normativa, acresço outro aos 3 elementos da culpabilidade, a saber: intensidade de dolo ou grau de negligência[2] (conforme o caso).
(...)

As consequências dos crimes de cárcere privado até poderiam ser consideradas desfavoráveis, mas em relação ao homicídio, a Juíza não disse a razão, até porque não existiriam elementos para uma reprimenda maior. Vida é sempre vida, sendo que as consequências de um homicídio podem ser mais graves se a vítima for arrimo de família, ser mãe de crianças pequenas etc. Todavia, o que se vê in casu que a notoriedade do caso e o clamor público decorre de uma curiosidade anormal e da hipervalorização de assuntos criminais, como sempre ocorre na mídia.
No tocante aos crimes de homicídio, a o motivo torpe serviu para qualificar cada um deles, elevando a pena mínima de 6 para 12 anos. Desse modo, não poderia ser considerado na pena-base. Ao assim agir, a Juíza incorreu em bis in idem, o que torna a sentença nula nessa parte.
Foi desastrosa a entrada policial no ambiente dos crimes. Não foi uma entrada que respeitou a técnica policial que me ensinaram quando estudei na Academia Policial Militar do Guatupê e fui declarado Aspirante-a-Oficial. Não se olvide que as circunstâncias eram de tensão e que os homicídios se deram depois de alguns dias em claro, sendo que a cobertura intensa dos meios de comunicação de massa, ao contrário de tornarem tais circunstâncias desfavoráveis ao réu, lhe favoreciam porque alterariam sua capacidade de dominar a sua própria vontade, reduzindo a sua culpabilidade.
São 8 as circunstâncias judiciais do art. 59 do Código Penal (CP), mal transcritas na sentença, in verbis: culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e a personalidade do agente, os motivos, as circunstâncias [e as consequências] do crime, bem como o comportamento da vítima... Data venia, fixar a pena no mínimo será muito mais do que fantasia, será um poder-dever do Estado sempre que não houver circunstância judicial, agravante genérica ou causa de aumento de pena a incidir ao caso.
(...)

Tomando por base o exposto, o homicídio qualificado, como tem pena cominada que varia de 12 a 30 anos de reclusão, o máximo que poderia ser atribuído a cada circunstância judicial seria 3 anos (1/6 de 18 anos, o que resulta de 30 anos menos 12 anos). O exposto deixa clara a possibilidade de se impor pena mínima máxima somente se ao menos 6 circunstâncias judiciais estiverem presentes, sendo que, a sentença em comento sequer tangencia algumas das mencionadas circunstâncias do art. 59 do CP.
O clamor social, criado pela cobertura maciça dos meios de comunicação de massa, não deve ser considerado em desfavor do agente porque é fator alheio ao crime propriamente dito.
(...)

Preferiu-se a falta de técnica e falar de “formas aglutinadoras”, talvez por falta de conhecimento, tratar de institutos jurídicos consagrados no ordenamento jurídico – concurso formal e crime continuado -, os quais nem sempre levam à exasperação da pena. Com efeito, com relação a ameaça feita a todos, mantendo-os em cárcere privado, será uma ação que levará a mais de um crime (concurso formal), conforme previsão do art. 70 do CP.
Quanto à pena de multa, a magistrada não fundamentou o quantum segundo a capacidade econômica do réu, o que torna a pena nula nessa parte, eis que desrespeitou ao disposto no art. 60, caput, do CP...

A prisão cautelar conta com fundamentação sucinta. Esta não se confunde com ausência de fundamentação, portanto, a sentença não contém mácula formal nessa parte. De outro modo, eu e a doutrina processualista pátria (com fundamento no princípio do estado de inocência – constante do Pacto de São José da Costa Rica como princípio da presunção de inocência -, na Constituição Federal e no próprio Código de Processo Penal, recém-alterado nessa parte) verificamos violação à legalidade material ao impor prisão cautelar apenas com fundamento na gravidade dos fatos ou no clamor social.
A magistrada errou, também, ao mandar extrair cópia da sentença e enviar para o Ministério Público sem manifestar expressamente a sua vontade de que a Defensora do sentenciado seja processada criminalmente, pois o crime contra a honra por ela noticiado é de ação de iniciativa pública condicionada à representação (CP, art. 145)...
Finalmente, a Juíza de Direito sequer leu o Código de Processo Penal para verificar os requisitos da sentença condenatória, eis que atenta à importância de atendimento à vítima, a Lei no 11.719/2008 inseriu o inc. IV, no art. 387 do CPP...

Poderia escrever mais sobre a confusão e a falta de técnica manifestadas na sentença. No entanto, estes breves apontamentos já evidenciam que o “circo” montado em torno do “Caso Eloá” terminou com um triste desfecho, evidenciado por uma ridícula sentença condenatória recorrível.




[1] MESQUITA JÚNIOR, Sidio Rosa de. Execução criminal: teoria e prática. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2010. p. 276-310.
[2] Negligência é omissão ao dever de cuidado, a qual, ao meu sentir engloba as 3 clássicas modalidades de culpa, permitindo abandonar esta última palavra, eis que ela gera confusões com culpabilidade.

sábado, 11 de fevereiro de 2012

A revisão feita pelo próprio Habermas da sua liçao sobre o Direito e a democracia


Parece que Habermas não está conseguindo avistar a democracia proposta por ele, em sua racionalização social, na União Europeia em Crise. Veja-se a matéria que se segue:




A crise da zona euro torna necessária uma maior integração política da UE. Mas a via seguida pelos dirigentes europeus deixa de lado aquilo que deveria ser a sua prioridade: o bem-estar dos cidadãos, definido num quadro democrático, considera o sociólogo Jürgen Habermas. Excertos.


A curto prazo, a crise exige a maior atenção. Mas, para além disso, os atores políticos não deveriam esquecer as falhas de construção que estão na base da união monetária e que só poderão ser superadas através de uma união política adequada: faltam à União Europeia as competências necessárias para a harmonização das economias nacionais, que registam enormes diferenças nas suas capacidades de concorrência.

O "pacto para a Europa", mais uma vez reforçado, apenas contribui para reforçar um defeito antigo: os acordos não vinculativos no círculo dos chefes de Governo não produzem efeitos ou, então, não são democráticos e devem, por isso, ser substituídos por uma institucionalização indiscutível das decisões comuns.

O Governo federal alemão tornou-se o impulsionador de uma falta de solidariedade que afeta toda a Europa, por ter fechado os olhos, há demasiado tempo, à única saída construtiva que até o Frankfurter Allgemeine Zeitung passou entretanto a referir através da fórmula lacónica de "mais Europa".

Uma paralisia generalizada

Todos os governos interessados estão desorientados e paralisados perante a difícil escolha entre, por um lado, os imperativos dos grandes bancos e das agências de notação e, por outro, o receio face à perda de legitimidade junto das respetivas populações frustradas, que os ameaça. O incremento imponderado denuncia a falta de uma perspetiva mais ampla.

A crise financeira, que dura desde 2008, paralisou o mecanismo do endividamento público à custa das gerações futuras; e, entretanto, não se percebe como podem as políticas de austeridade – difíceis de impor a nível interno – ser conciliadas, a longo prazo, com a manutenção de um nível suportável do Estado social.

Dada a dimensão dos problemas, seria de esperar que os políticos pusessem, sem demora e sem condições prévias, as cartas europeias em cima da mesa, a fim de esclarecer de forma cabal a população sobre a relação entre os custos a curto prazo e a utilidade real do projeto europeu, ou seja, sobre o seu significado histórico.

Em vez disso, colam-se a um populismo que eles próprios favoreceram, devido à ausência de esclarecimento de um assunto complexo e impopular. No limiar entre a unificação económica e política da Europa, a política parece suster a respiração e enterrar a cabeça nos ombros.

União política seria um castelo de areia

Porquê esta paralisia? É uma perspetiva que remonta ao século XIX que impõe a resposta conhecida do demos: a não existência de um povo europeu, motivo pelo qual uma união política digna desse nome seria um castelo de areia. Gostaria de contrapor uma interpretação diferente desta interpretação: a fragmentação política constante, no mundo e na Europa, está em contradição com o crescimento sistémico de uma sociedade mundial multicultural e bloqueia todos os progressos na civilização jurídica constitucional das relações de poder, estatais e sociais.

O facto de, até agora, a UE ter sido sustentada e monopolizada pelas elites políticas, teve por resultado uma perigosa assimetria – entre a participação democrática dos povos nos benefícios que os respetivos governos dela "retiram" para si mesmos, na cena distante de Bruxelas, e a indiferença, ou mesmo a ausência de participação dos cidadãos da UE relativamente às decisões do seu Parlamento, em Estrasburgo.

Esta observação não justifica a substancialização dos "povos". Só o populismo de direita continua a apresentar uma caricatura dos grandes temas nacionais, que se obstruem uns aos outros e bloqueiam qualquer formação de vontade que ultrapasse as fronteiras.

Quanto mais as populações nacionais tomarem consciência de, e quanto mais os órgãos de comunicação despertarem as consciências para, até que ponto as decisões da UE influenciam o seu quotidiano, mais aumentará o interesse dessas populações em utilizar também os seus direitos democráticos de cidadãos da União.

Este fator de impacto tornou-se tangível na crise do euro. A crise forçou igualmente o Conselho, a contragosto, a tomar decisões que podem ter pesos desiguais sobre os orçamentos nacionais.

Negociações numa zona jurídica indefinida

Desde 8 de maio de 2009, o Conselho ultrapassou um patamar, através das decisões de resgate e de possíveis alterações da dívida, e ainda através de declarações de intenções quanto à harmonização em todos os domínios associados à concorrência (em política económica, fiscal, de mercado de trabalho, social e cultural).

Para lá desse patamar colocam-se problemas de justiça da repartição. Seria, portanto, conforme com a lógica dessa evolução que os cidadãos dos Estados que são forçados a sofrer as alterações de repartição dos encargos para além das fronteiras nacionais, tivessem o desejo de influenciar democraticamente, no seu papel de cidadãos da União, aquilo que os seus chefes de Governo negoceiam ou decidem numa zona jurídica indefinida.

Em vez disso, assistimos a táticas dilatórias, por parte dos governos, e a uma rejeição de cariz populista do conjunto do projeto europeu, por parte das populações. Este comportamento autodestrutivo explica-se pelo facto de as elites políticas e os órgãos de informação hesitarem em tirar consequências razoáveis do projeto constitucional.

Por pressão dos mercados financeiros, impôs-se a convicção de que, quando da introdução do euro, foi negligenciado o pressuposto económico do projeto constitucional. A UE só pode afirmar-se contra a especulação financeira se adquirir as competências políticas de orientação necessárias para assegurar, pelo menos no coração da Europa – ou seja, entre os membros da zona monetária europeia – uma convergência dos desenvolvimentos económicos e sociais.

Exercício de um domínio pós-democrático

Todos os participantes sabem que este nível de "cooperação reforçada" não é possível no quadro dos tratados existentes. A consequência de um "governo econômico" comum, que também agrada ao Governo alemão, significaria que a exigência central da capacidade de concorrência de todos os países da comunidade económica europeia iria muito além das políticas financeiras e económicas, até aos orçamentos nacionais, e chegaria ao ventrículo do coração, ou seja, ao direito dos parlamentos nacionais em matéria orçamental.

Ainda que um direito válido não deva ser infringido de forma flagrante, esta reforma em suspenso só é possível pela via de uma transferência de outras competências dos Estados-membros para a União. Angela Merkel e Nicolas Sarkozy chegaram a um compromisso entre o liberalismo económico alemão e o estatismo francês que tem um conteúdo completamente diferente. Se não me engano, os dois procuram consolidar o federalismo executivo implícito no Tratado de Lisboa numa autoridade intergovernamental do Conselho Europeu, que é contrária ao Tratado. Um regime destes permitiria transferir os imperativos dos mercados para os orçamentos nacionais, sem qualquer legitimação democrática própria.

Deste modo, os chefes de governo transformariam o projeto europeu no seu oposto: a primeira comunidade supranacional democraticamente legalizada tornar-se-ia um entendimento efetivo, por ser velado, de exercício de um domínio pós-democrático. A alternativa reside na continuação consequente da legalização democrática da UE. Uma solidariedade dos cidadãos, alargada a toda Europa não pode constituir-se se, entre os Estados-membros, ou seja, nos possíveis pontos de rutura, se consolidarem desigualdades sociais entre nações pobres e ricas.

A União deve assegurar aquilo que a Lei Fundamental da República Federal Alemã designa (artigo 106, alínea 2) por "homogeneidade das condições de vida". Essa "homogeneidade" assenta apenas numa estimativa das situações de vida social que seja aceitável do ponto de vista da justiça da repartição – e não no nivelamento das diferenças culturais. Acontece que é necessária uma integração política baseada no bem-estar social para que a pluralidade nacional e a riqueza cultural do biótopo da "velha Europa" possam ser protegidas do nivelamento, no seio de uma globalização cuja progressão é tensa.

* Este artigo é um extrato da obra "Um ensaio sobre a Constituição da Europa" (Suhrkamp, 2011), que será publicada em breve em português, pela editora Ediçoes 70.

Este texto é um excerto da conferência que Jürgen Habermas dará na Universidade de Paris-Descartes (12, rue de l'Ecole-de-Médecine, 75006 Paris) no contexto de um colóquio organizado, no dia 10 de novembro, pela equipa PHILéPOL (filosofia, epistemologia e política) dirigida pelo filósofo Yves Charles Zarka. A totalidade do texto será publicada no número de janeiro de 2012 na revueCités (PUF). Na quinta-feira dia 10 de novembro, após o colóquio, às 18 horas, Jürgen Habermas terá uma conversa com Yves Charles Zarka sobre o papel da filosofia na crise atual da consciência europeia, na biblioteca filosófica Vrin (6 place de la Sorbonne, 75005 Paris).[1]

O fato é que Habermas relança a discussão que tratou em uma das suas principais obras, Faticidad y validez: sobre el derecho y el Estado democrático de derecho en términos de teoría del discurso, só que em outros termos. O assunto tem merecido destaque na imprensa europeia, conforme se pode ver a seguir:

O futuro da democracia na Europa provoca o entusiasmo da imprensa germanófila. A publicação no Frankfurter Allgemeine Zeitung de um artigo a criticar a destruição da democracia na Europa, depois das críticas suscitadas pelo desastroso referendo grego que foi o rastilho, provocou a reação de Jürgen Habermas.

Nas páginas deste jornal, o respeitadíssimo filósofo escreve que “é preciso salvar a dignidade da democracia” e que George Papandreu, o primeiro-ministro grego demissionário, é “o arquétipo do homem político que não consegue estabelecer a ponte entre o mundo dos especialistas financeiros e o dos cidadãos; [entre] os imperativos sistémicos do capitalismo financeiro selvagem – que a própria política libertou da economia real – e as queixas do seu eleitorado quanto às promessas não cumpridas de justiça social".

Em tempos de crise, com a faixa central bloqueada, os homens políticos têm de anunciar a cor, afirma Habermas, e manter a tomada de decisões ao nível do cidadão: “não se trata apenas de uma questão de democracia, mas de uma questão de dignidade". "A tragédia grega deixa-nos de sobreaviso quanto à via pós-democrática escolhida por Angela Merkel e Nicolas Sarkozy. Uma concentração de poderes num cenáculo de chefes de governo que impõe acordos aos parlamentos nacionais não é uma boa opção", afirma. E recomenda um novo processo constitucional na Europa que integre os cidadãos…

As reações não se fizeram esperar. Furioso, Jan Fleischhauer, cronista residente do Spiegel Online, acusa Habermas de ser o "último peso-pesado entre os intelectuais da Alemanha dos bons sentimentos", pertencente “ao grupo dos histéricos com tendência para o apocalipse”. "No relato que faz sobre a crise do euro, os políticos há muito que se deixaram esmagar pela economia. São os executores zelosos do capitalismo financeiro. […] Mas quando se trata de formular reivindicações concretas, Habermas fica perante o mesmo problema dos ativistas do movimento Occupy Wall Street a quem, também a eles, só lhes ocorre dizer que o dinheiro tem de ser redistribuído de uma qualquer maneira. Na verdade, todo este esforço retórico visa absolver os políticos das suas responsabilidades para poderem continuar tranquilamente na sua política."[2]

Sempre considerei cândida a postura habermasiana, mas alguns doutos pensadores me chamavam de louco porque Habermas não poderia ser contestado, isso sem se aperceberem da impossibilidade de se concretizar o consenso proposto por ele.

A democracia não pode se dar por um modelo de consenso ou uma regra de maioria, mas por uma racionalidade que transcenda o pequeno grupo de intelectuais de um deteminado Estado.
Perceber o dinamismo dos (sub)sistemas da sociedade é importante, o que valoriza teorias sociológicas para o desenvolvimento de uma sólida democracia. Porém, não podemos nos olvidar que, assim como Habermas disse que “a não existência de um povo europeu, motivo pelo qual uma união política digna desse nome seria um castelo de areia”, não há identidade de grupo, eis que cada indivíduo do mesmo é um universo particular.


[1] PRESSEUROP. Jürgen Habermas: Está em jogo a democracia. Disponível em: <http:// www.presseurop.eu/pt/content/article/1106151-juergen-habermas-esta-em-jogo-democracia>. Acesso em: 11.2.2012, às 16.
[2] PRESSEUROP. Habermas relança o debate sobre a Europa e a democracia. Disponível em: <http://www.presseurop.eu/pt/content/news-brief/1152171-habermas-relanca-debate-sobre-europa-e-democracia>. Acesso em: 11.2.2012, às 12h.

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Lei Maria da Penha: O Supremo Tribunal Federal (STF) optou pelo rigor

Estou preocupado com os novos rumos do Direito. Estamos judicializando a vida privada e tornando público o núcleo da sociedade, a família. Ontem, o STF decidiu, em ação direta de inconstitucinalidade que os crimes de violência doméstica são de ação de iniciativa pública incondicionada, criando Direito de forma violadora ao sistema repúblicano e à tripartição de poderes. Veja-se o informativo que se segue:

“Quinta-feira, 09 de fevereiro de 2012
Supremo julga procedente ação da PGR sobre Lei Maria da Penha

Por maioria de votos, vencido o presidente, ministro Cezar Peluso, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) julgou procedente, na sessão de hoje (09), a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 4424) ajuizada pela Procuradoria-Geral da República (PGR) quanto aos artigos 12, inciso I; 16; e 41 da Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006).
A corrente majoritária da Corte acompanhou o voto do relator, ministro Marco Aurélio, no sentido da possibilidade de o Ministério Público dar início à ação penal sem necessidade de representação da vítima.
O artigo 16 da lei dispõe que as ações penais públicas ‘são condicionadas à representação da ofendida’, mas para a maioria dos ministros do STF essa circunstância acaba por esvaziar a proteção constitucional assegurada às mulheres. Também foi esclarecido que não compete aos Juizados Especiais julgar os crimes cometidos no âmbito da Lei Maria da Penha.
Ministra Rosa Weber
Primeira a acompanhar o relator, a ministra Rosa Weber afirmou que exigir da mulher agredida uma representação para a abertura da ação atenta contra a própria dignidade da pessoa humana. ‘Tal condicionamento implicaria privar a vítima de proteção satisfatória à sua saúde e segurança’, disse. Segundo ela, é necessário fixar que aos crimes cometidos com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei dos Juizados Especiais (Lei 9.099/95).
Dessa forma, ela entendeu que o crime de lesão corporal leve, quando praticado com violência doméstica e familiar contra a mulher, processa-se mediante ação penal pública incondicionada.
Ministro Luiz Fux
Ao acompanhar o voto do relator quanto à possibilidade de a ação penal com base na Lei Maria da Penha ter início mesmo sem representação da vítima, o ministro Luiz Fux afirmou que não é razoável exigir-se da mulher que apresente queixa contra o companheiro num momento de total fragilidade emocional em razão da violência que sofreu.
‘Sob o ângulo da tutela da dignidade da pessoa humana, que é um dos pilares da República Federativa do Brasil, exigir a necessidade da representação, no meu modo de ver, revela-se um obstáculo à efetivação desse direito fundamental porquanto a proteção resta incompleta e deficiente, mercê de revelar subjacentemente uma violência simbólica e uma afronta a essa cláusula pétrea.’
Ministro Dias Toffoli
Ao acompanhar o posicionamento do relator, o ministro Dias Toffoli salientou que o voto do ministro Marco Aurélio está ligado à realidade. O ministro afirmou que o Estado é ‘partícipe’ da promoção da dignidade da pessoa humana, independentemente de sexo, raça e opções, conforme prevê a Constituição Federal. Assim, fundamentando seu voto no artigo 226, parágrafo 8º, no qual se preceitua que ‘o Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações’, o ministro Dias Toffoli acompanhou o relator.
Ministra Cármen Lúcia
A ministra Cármen Lúcia destacou a mudança de mentalidade pela qual passa a sociedade no que se refere aos direitos das mulheres. Citando ditados anacrônicos – como ‘em briga de marido e mulher, não se mete a colher’ e ‘o que se passa na cama é segredo de quem ama’ –, ela afirmou que é dever do Estado adentrar ao recinto das ‘quatro paredes’ quando na relação conjugal que se desenrola ali houver violência.
Para ela, discussões como a de hoje no Plenário do STF são importantíssimas nesse processo. ‘A interpretação que agora se oferece para conformar a norma à Constituição me parece basear-se exatamente na proteção maior à mulher e na possibilidade, portanto, de se dar cobro à efetividade da obrigação do Estado de coibir qualquer violência doméstica. E isso que hoje se fala, com certo eufemismo e com certo cuidado, de que nós somos mais vulneráveis, não é bem assim. Na verdade, as mulheres não são vulneráveis, mas sim mal tratadas, são mulheres sofridas’, asseverou.
Ministro Ricardo Lewandowski
Ao acompanhar o relator, o ministro Ricardo Lewandowski chamou atenção para aspectos em torno do fenômeno conhecido como ‘vício da vontade’ e salientou a importância de se permitir a abertura da ação penal independentemente de a vítima prestar queixa. ‘Penso que nós estamos diante de um fenômeno psicológico e jurídico, que os juristas denominam de vício da vontade, e que é conhecido e estudado desde os antigos romanos. As mulheres, como está demonstrado estatisticamente, não representam criminalmente contra o companheiro ou marido, em razão da permanente coação moral e física que sofrem e que inibe a sua livre manifestação da vontade’, finalizou.
Ministro Gilmar Mendes
Mesmo afirmando ter dificuldade em saber se a melhor forma de proteger a mulher é a ação penal pública condicionada à representação da agredida ou a ação incondicionada, o ministro Gilmar Mendes acompanhou o relator. Segundo ele, em muitos casos a ação penal incondicionada poderá ser um elemento de tensão e desagregação familiar. ‘Mas como estamos aqui fixando uma interpretação que, eventualmente, declarando (a norma) constitucional, poderemos rever, diante inclusive de fatos, vou acompanhar o relator’, disse.
Ministro Joaquim Barbosa
O ministro Joaquim Barbosa, por sua vez, afirmou que a Constituição Federal trata de certos grupos sociais ao reconhecer que eles estão em situação de vulnerabilidade. Para ele, quando o legislador, em benefício desses grupos, edita uma lei que acaba se revelando ineficiente, é dever do Supremo, levando em consideração dados sociais, rever as políticas no sentido da proteção. ‘É o que ocorre aqui’, concluiu.
Ministro Ayres Britto
Para o ministro Ayres Britto, em contexto patriarcal e machista, a mulher agredida tende a condescender com o agressor. ‘A proposta do relator no sentido de afastar a obrigatoriedade da representação da agredida como condição de propositura da ação penal pública me parece rimar com a Constituição’, concluiu.
Ministro Celso de Mello
O decano do Supremo, ministro Celso de Mello, também acompanhou o relator. ‘Estamos interpretando a lei segundo a Constituição e, sob esse aspecto, o ministro-relator deixou claramente estabelecido o significado da exclusão dos atos de violência doméstica e familiar contra a mulher do âmbito normativo da Lei 9.099/95 (Lei dos Juizados Especiais), com todas as consequências, não apenas no plano processual, mas também no plano material’, disse. Para o ministro Celso de Mello, a Lei Maria da Penha é tão importante que, como foi salientado durante o julgamento, é fundamental que se dê atenção ao artigo 226, parágrafo 8º, da Constituição Federal, que prevê a prevenção da violência doméstica e familiar.
Ministro Cezar Peluso
Único a divergir do relator, o presidente do STF, ministro Cezar Peluso, advertiu para os riscos que a decisão de hoje pode causar na sociedade brasileira porque não é apenas a doutrina jurídica que se encontra dividida quanto ao alcance da Lei Maria da Penha. Citando estudos de várias associações da sociedade civil e também do IPEA, o presidente do STF apontou as conclusões acerca de uma eventual conveniência de se permitir que os crimes cometidos no âmbito da lei sejam processados e julgados pelos Juizados Especiais, em razão da maior celeridade de suas decisões.
‘Sabemos que a celeridade é um dos ingredientes importantes no combate à violência, isto é, quanto mais rápida for a decisão da causa, maior será sua eficácia. Além disso, a oralidade ínsita aos Juizados Especiais é outro fator importantíssimo porque essa violência se manifesta no seio da entidade familiar. Fui juiz de Família por oito anos e sei muito bem como essas pessoas interagem na presença do magistrado. Vemos que há vários aspectos que deveriam ser considerados para a solução de um problema de grande complexidade como este’, salientou.
Quanto ao entendimento majoritário que permitirá o início da ação penal mesmo que a vítima não tenha a iniciativa de denunciar o companheiro-agressor, o ministro Peluso advertiu que, se o caráter condicionado da ação foi inserido na lei, houve motivos justificados para isso. ‘Não posso supor que o legislador tenha sido leviano ao estabelecer o caráter condicionado da ação penal. Ele deve ter levado em consideração, com certeza, elementos trazidos por pessoas da área da sociologia e das relações humanos, inclusive por meio de audiências públicas, que apresentaram dados capazes de justificar essa concepção da ação penal’, disse.
Ao analisar os efeitos práticos da decisão, o presidente do STF afirmou que é preciso respeitar o direito das mulheres que optam por não apresentar queixas contra seus companheiros quando sofrem algum tipo de agressão. ‘Isso significa o exercício do núcleo substancial da dignidade da pessoa humana, que é a responsabilidade do ser humano pelo seu destino. O cidadão é o sujeito de sua história, é dele a capacidade de se decidir por um caminho, e isso me parece que transpareceu nessa norma agora contestada’, salientou. O ministro citou como exemplo a circunstância em que a ação penal tenha se iniciado e o casal, depois de feitas as pazes, seja surpreendido por uma condenação penal”.[1]
É crescente o casamento de mulheres jovens com homens muito mais velhas. Depois de alguns anos, a mulher (ainda relativamente jovem), não suportará mais o marido, que já terá saúde complicada e praticará maus tratos contra o mesmo, como notoriamente tem ocorrido. Em tais casos, não se aplicará a Lei n. 11.340/2006 porque esta é uma lei que só tem em vista a proteção da mulher.

No caso de violência doméstica, a Lei n. 11.455, de 13.5.2002, como presente às mães (em homenagem ao dia das mães) estabeleceu que o Juiz Criminal pode cumular competência cível, própria dos juízos de família, estabelecendo a separação cautelar de corpos (Lei n. 9.099/1995, art. 69, parágrafo único). Embora a Lei n. 11.340, de 7.8.2006 tenha sido técnica em seu art. 24, inc. IV, ela tem em vista a partilha de bens, ou seja, reservou sua técnica ao âmbito civil.
Em inconstitucional proteção específica à mulher, a Lei n. 11.340, de 7.8.2006, denominada “Lei Maria da Penha”[2], diante da inércia do Estado e do incontrolável desejo de vingança de uma única mulher, o Brasil criou restrições na referida lei, tais quais: a) a pena privativa de liberdade não pode ser substituida por restritiva de direito pecuniária ou multa (art. 17); b) possibilitou a prisão preventiva para assegurar medida de urgência decretada judicialmente (CPP, art. 313, inc. IV); c) o Juiz Criminal poderá decretar alimentos provisionais ou provisórios em favor da mulher (art. 22, inc. V); d) manteve a possibilidade de decretar a separação de corpos (art. 23, inc. IV); e) afasta a incidência da Lei n. 9.099/1995 (art. 41).
Diante da nova lei, crime apenado com detenção pode ser objeto de decreto de prisão preventiva, prevalecendo a regra da prisão preventiva e da liberdade provisória mediante caução (indevidamente denominada fiança na processualidade criminal pátria) a ser arbitrada pela autoridade judicial. Deve-se concordar com Sérgio Romcy, no sentido de que a autoridade policial não poderá arbitrar a fiança, ainda que o crime seja apenado com detenção, isso porque se a apresentação dos fatos ao Juiz para decidir imediatamente sobre serem cabíveis medidas de urgência.[3]
O pior é que o STF inovou e declarou inconstitucional a previsão legal de que o crime de lesão corporal leve é de ação de iniciativa pública condicionada, tornando-a pública incondicionada. Veja-se a decisão:
Decisão: O Tribunal, por maioria e nos termos do voto do Relator, julgou procedente a ação direta para, dando interpretação conforme aos artigos 12, inciso I, e 16, ambos da Lei nº 11.340/2006, assentar a natureza incondicionada da ação penal em caso de crime de lesão, pouco importando a extensão desta, praticado contra a mulher no ambiente doméstico, contra o voto do Senhor Ministro Cezar Peluso (Presidente). Falaram, pelo Ministério Público Federal (ADI 4424), o Dr. Roberto Monteiro Gurgel Santos, Procurador-Geral da República; pela Advocacia-Geral da União, a Dra. Grace Maria Fernandes Mendonça, Secretária-Geral de Contencioso; pelo interessado (ADC 19), Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, o Dr. Ophir Cavalcante Júnior e, pelo interessado (ADI 4424), Congresso Nacional, o Dr. Alberto Cascais, Advogado-Geral do Senado. Plenário, 09.02.2012. (STF. Pleno. Rel. Marco Aurélio. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=3897992. Acesso em: 4.3.2012, às 12h40).
No momento em que o tribunal é fonte de DCrim, violando direitos fundamentais, mormente a legalidade, a sociedade poderá estar sujeita a todo tipo de arbítrio, que é o que estamos vivendo no Brasil. Hoje, o Estado, sob a batuta do STF, deverá se sujeitar à inoportuna intervenção criminal no núcleo social: a família.




[1] Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=199853>. Acesso em 10.2.2011, às 7h30.


[2] Maria da Penha Maia Fernandes, em 29.5.1983, foi atingida pelo então marido, Marco Antônio Heredia Viveiros, um economista colombiano nato e naturalizado brasileiro. Ele foi denunciado no dia 28.9.1984 e pronunciado no dia 31.10.1986. O júri o condenou no dia 4.5.1991, sendo que, por força de decisão proferida em apelação da defesa, em 15.3.1996, foi submetido a novo júri e condenado a 10 anos e 9 meses de reclusão. Novos recursos foram interpostos e, em Set/2002, o condenado foi preso. Em 20.8.1998, a própria Maria da Penha e organismos não-governamentais protocolaram representações junto à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA), sendo que esta publicou em 16.4.2001, seu Relatório n. 54 daquele ano, o qual apontou inúmeras falhas do sistema jurídico brasileiro e levou o Brasil a aderir à Convenção de Belém do Pará (ratificada pelo Brasil, em 27.11.2005). A respeito, vide:CUNHA, Rogério Sanches; PINTO, Ronaldo Batista. Violência doméstica: Lei Maria da Penha. Comentada artigo por artigo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2.007. p. 11-15).


[3] AUAD FILHO, Jorge Romcy. A liberdade provisória na Lei Maria da Penha. Teresina: Jus Navigandi, ano 12, n. 1585, 3 nov. 2007. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=10584>. Acesso em: 5.4.2009, às 11h.