quinta-feira, 21 de julho de 2016

Crimes praticados em nome da lei e da ordem

1. FINALIDADE
Este pequeno texto tem o escopo de esclarecer um pouco sobre as razões pelas quais não concordo com a “Operação mãos limpas à brasileira”, ou seja, Operação Lava Jato, a qual vem se desenvolvendo desde o ano de 2014.
2.  A POSTURA DO JUIZ FEDERAL SÉRGIO FERNANDO MORO
A postura do Juiz Federal Sérgio Fernando Moro foi anunciada em artigo por ele elaborado em 2004, ocasião em que ele sustentou:
A publicidade conferida às investigações teve o efeito salutar de alertar os investigados em potencial sobre o aumento da massa de informações nas mãos dos magistrados, favorecendo novas confissões e colaborações. Mais importante: garantiu o apoio da opinião pública às ações judiciais, impedindo que as figuras públicas investigadas obstruíssem o trabalho dos magistrados, o que, como visto, foi de fato tentado.[1]
Já informei por diversas vezes que Maquiavel jamais cunhou a máxima: “os fins justificam os meios”.[2] É um equívoco pensar que um erro justifica outro. Assim, toda vez que o Juiz Federal, Membros do Ministério Público ou outros servidores públicos envolvidos na Operação Lava Jato, a Operação mani pulite à brasileira, dão publicidade aos fatos, mediante o vazamento do conteúdo de ligações telefônicas, praticam crime, eis que a Lei n. 9.296, de 24.7.1996, dispõe:
Art. 10. Constitui crime realizar interceptação de comunicações telefônicas, de informática ou telemática, ou quebrar segredo da Justiça, sem autorização judicial ou com objetivos não autorizados em lei.
Pena: reclusão, de dois a quatro anos, e multa.
Não se venha aqui aduzir a legitimidade da divulgação pelos seus fins, eis que o dolo, desde Hans Welzel, é o simples pretender praticar a conduta descrita na norma, não incluindo em si a consciência da ilicitude. Ademais, o elemento normativo do tipo “com objetivos não autorizados em lei”, resta devidamente preenchido toda vez que se pretende, em nome de suposto utilitarismo, angariar prestígio público para praticar novas condutas violadoras da lei e caracterizadoras de crime.
3. A POSTURA DO STF NÃO ESTÁ INDENE DE DÚVIDAS
O Supremo Tribunal Federal tem decidido de forma tendente a valorizar as ações da Operação Lava Jato, atendendo ao anseio e às paixões populares. Porém, algumas decisões se destacam, conforme se verá adiante.
No primeiro semestre letivo do ano de 2016 encontrei um aluno que pretendia ser meu orientado no trabalho de conclusão de curso e o orientei a discorrer sobre a inconstitucionalidade da prisão do então Senador da República Delcídio do Amaral.[3] Com efeito, foi violada a imunidade formal que desautoriza a prisão cautelar, ainda que em flagrante delito, por crime inafiançável. Nesse sentido, dispõe a Constituição Federal:
Art. 53. Os Deputados e Senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos.
§ 1º Os Deputados e Senadores, desde a expedição do diploma, serão submetidos a julgamento perante o Supremo Tribunal Federal.
§ 2º Desde a expedição do diploma, os membros do Congresso Nacional não poderão ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável. Nesse caso, os autos serão remetidos dentro de vinte e quatro horas à Casa respectiva, para que, pelo voto da maioria de seus membros, resolva sobre a prisão.
Somos do denominado civil law, o que significa dizer que o nosso Direito é legislado. Assim, especialmente em matéria criminal, toda conduta violadora da legislação, especialmente da Constituição Federal constituirá desvio ou abuso de poder. Nesse sentido, dispõe a Lei n. 4.898, de 9.12.1965:
Art. 4º Constitui também abuso de autoridade:
a) ordenar ou executar medida privativa da liberdade individual, sem as formalidades legais ou com abuso de poder;
(...)
d) deixar o Juiz de ordenar o relaxamento de prisão ou detenção ilegal que lhe seja comunicada;
Ronald Dworkin deu bases teóricas ao denominado ativismo judicial. No entanto, o poder de criar normas em nome do ativismo judicial foi desenvolvido para defesa de direitos fundamentais, não para romper com garantias constitucionais. Embora Dworkin abra uma sessão, no seu livro Levando os Direitos a Sério, intitulada “Nenhum direito à liberdade” ele conclui que os “direitos a outras liberdades” são existentes.[4]
O fato é que as lições de Dworkin, em prol do ativismo judicial e com críticas ao passivismo, não podem se distanciar da ideia de respeito à legalidade estrita, especialmente em matéria criminal senão daremos margem ao arbítrio. Com isso, surge a dúvida, até que ponto o STF não violou a lei ao determinar e manter a prisão do Senador da República Delcídio do Amaral?
No âmbito da operação mãos limpas à brasileira, o STF afastou o Presidente da Câmara dos Deputados Eduardo Cunha, isso em sede de ação cautelar criminal, decisão proferida à unanimidade. Mas, será que não houve um arbítrio?
Até que ponto o STF tem poderes para afastar o Presidente da Câmara dos Deputados se ele próprio reconheceu no voto do relator, Min. Teori Zavascki, que não existem poderes explícitos na Constituição Federal para tal?
Nem mesmo poderes implícito a Constituição Federal confere ao STF para cassar mandato de parlamentar por ato atentatório à disciplina. Foi uma interpretação forçada que levou a decisão cautelar, sendo que publiquei, em 5.5.2016, em uma rede social que a decisão não fazia sentido porque a liminar foi proferida nos autos da Ação Cautelar 4.070, cujos autos foram conclusos ao relator no dia 16.12.2016 e, para a data da decisão, havia sido pautada a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 402, ou seja, não havia periculum in mora, uma vez que o Plenário do STF enfrentaria a matéria naquele dia.[5]
Até que ponto o STF pode invadir a seara disciplinar interna corporis da Câmara dos Deputados?
Direito não é tão-somente aquilo que o Supremo Tribunal Federal diz que ele é, razão de ser necessário enfrentar com seriedade a legalidade como instrumento para limitar a atuação de órgãos e agentes do Estado, a fim de evitar o arbítrio.
4. DOS RISCOS FINANCEIROS
O sigilo empresarial tem validade jurídica, uma vez que integra os usos e costumes do mercado. Desvendar o “risco Brasil”, dar publicidade às práticas mercadológicas das nossas estatais e sociedades de economia mista incrementam os riscos de danos financeiros sem precedentes.
Não é bom que a Caixa Econômica Federal, o Banco do Brasil S.A. e a Petróleo Brasileiro S.A. – PETROBRÁS, sejam submetidos à indesejada transparência de práticas que só interessam ao mercado e, portanto, gerarmos o incremento de risco nesses setores da economia, sob o manto da utilidade da investigação criminal é cegar-se ao sistema complexo que nos traz à sociedade.
Visões fragmentárias, lineares, certamente não poderão atender às complexas demandas que o Direito Econômico nos traz. Daí ser necessária uma visão mais sólida e madura sobre os fatos.
Desde Epicuro podemos concluir que as soluções imediatistas, as primeiras ideias que nos vêm à mente para solução dos nossos problemas, não são as mais sensatas, sendo necessária a reflexão.[6] É por isso que me preocupo com uma “operação mãos limpas à brasileira” que tende a trazer maiores prejuízos do que benefícios.
Manifestei-me em favor do impedimento da Presidente da República afastada Dilma Vana Rousseff. Espero que ele ocorra em definitivo, mas isso não quer dizer que eu vá às ruas para elogiar as práticas criminais advindas da mencionada operação. Aliás, vejo muitos complicadores de ordem processual porque a competência do Juiz Federal Sérgio Fernando Moro vem sendo prorrogada por intermédio de delações premiadas,[7] algumas delas visivelmente imorais,[8] o que, também, gera a incerteza e o risco de novos crimes, perpetrados sob o manto de se estar cumprindo a lei.
5. EM DEFESA DO ESTADO DE DIREITO
Em minha tese de doutoramento defendi a necessária relação entre funcionalismo e garantismo na defesa de direitos fundamentais no processo criminal, isso porque não gosto de visões fragmentárias e do desrespeito à legalidade estrita. Um Estado de Direito está ligado ao respeito hierarquia das normas e à proteção dos direitos fundamentais, sendo necessária uma abordagem complexa sobre o assunto.
Com Dworkin, digo que os efetivos juristas são sempre filósofos, pois a doutrina faz parte da análise de cada jurista sobre a natureza do Direito.[9] E, é nessa visão mais abstrata e mais generalista que espero ver a abordagem dos complicados problemas pátrios, especialmente a corrupção, não os reduzindo apenas às posturas policialescas.



[1] MORO, Sérgio Fernando. Considerações sobre a operação mani pulite. In MESQUITA JÚNIOR, Sidio Rosa de. O artigo de autoria do Juiz Federal Sérgio Fernando Moro, de 2004, sobre a Operação Mãos Limpas, "Mani Pulite", evidenciando suas práticas na Operação Lava Jato. Estudos jurídicos e filosóficos. 15.9.2015. Disponível em: <http://sidiojunior.blogspot.com.br/2015/09/o-artigo-de-autoria-do-juiz-federal.html>. Acesso em: 22.7.2016, às 9h58.
[2] Maquiavel uma vez expressou que “toda ação é designada em termos do fim que procura atingir”, o que tem ganhado conotação equivocada, sendo que os incultos a traduzem como sendo “os fins justificam os meios”, o que é equivocado porque “a razão para Maquiavel não dizer isso se torna muito clara. Ele não está de forma alguma interessado em justificar os meios, pois considera-os como os racionalmente destinados a chegar a um fim”. FRIEDRICH, Cel. J. Uma introdução à teoria política. CASTRO, José Duarte T. de. (org.) Maquivel: vida e pensamentos . São Paulo: Martin Claret, 1.997. p. 84-85. In MESQUITA JÚNIOR, Sidio Rosa de.  O Caso "Mânica" Autoriza a Duvidar e Enojar, isso em Relação ao Sistema Jurídico-Criminal. Juiz de Fora: Nova Prolink: Universo Jurídico, ISSN 2177-028X. 29.8.2008. Disponível em: <http://uj.novaprolink.com.br/doutrina/5752/o_caso_manica_autoriza_a_duvidar_e_enojar_isso_em_relacao_ao_sistema_juridicocriminal>. Acesso em: 21.7.2016, às 10h08.
[3] SILVA, Wecsley Paes da. A inconstitucionalidade da prisão do Senador da República Delcídio do Amaral. Brasília: UDF, defendida em 13.6.2016.
[4] DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 409-427.
[5] Disponível em: <https://www.facebook.com/mesquitajunior/posts/1196592370375515>. Acesso em: 21.7.2016, às 11h45.
[6] Conf. BOTTON, Alain de. As consolações da filosofia. Porto Alegre: L&PM; Rio de Janeiro: Rocco, 2014. p. 75-76.
[7] A Lei n. 12.850, de 2.8.2013, modificou a denominação para colaboração premiada (art. 4º), o que não alterou a sua natureza.
[8] Vejo toda delação premiada como imoral (MESQUITA JÚNIOR, Sidio Rosa de. Comentários à lei antidrogas: Lei n. 11.343, de 23.8.2006. São Paulo: Atlas, 2007. p. 114-116). Porém, a de José Sérgio de Oliveira Machado fundamenta-se em “prova preparada”, em que o delator foi à casa do Presidente do Senado Federal e gravou conversas de terceiros, além de ter telefonado para políticos e autoridades para tentar obter elementos para a acusação, o que constitui um absurdo. (Sob a chancela “procedimento sob segredo de justiça”, nos autos dos Inquéritos n. 3.989/DF e 4.215/DF, foi proposta a homologação da delação premiada, cujo inteiro teor é público. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/poder/2016/06/1782014-veja-integra-da-delacao-de-sergio-machado-que-cita-mais-de-20-politicos.shtml>. Acesso em: 21.7.2016, às 14h.
[9] DWORKIN, Ronald. O império do direito. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 454.