sábado, 25 de junho de 2022

A prisão cautelar e o favorecimento pessoal no caso de Milton Ribeiro

Já me posicionei academicamente contra a execução provisória e entendo que a prisão cautelar deve ser reservada aos últimos casos. De todo modo, as prisões em flagrante e a preventiva são previstas no Código de Processo Penal (respectivamente, arts. 301-310; e arts. 311-316).

Durante a Operação Lava Jato, era corrente a condução coertiva, ao arrepio do Código de Processo Penal, como medida substitutiva à prisão. Nos temos do art. 260 do CPP a condução coercitiva do acusado só poderá ocorrer depois que ele deixar de atender à intimação. Todavia, no âmbito da Operação Lava Jato, sem intimar o acusado, expedia-se mandado para condução coertiva, sob o argumento de que assim se evitaria a fraude processual (Código Penal, art. 347) e que seria mais fácil cumprir a busca e a apreensão determinada para coleta de provas.

A prisão temporária, prevista na Lei n. 7.960, de 21 de dezembro de 1989, é altamente questionável porque está fundamentada em um utilitarismo exagerado, uma vez que largamente determinada para facilitar a investigação criminal, embora inexista qualquer fundamento da prisão preventiva - os fundamentos da prisão preventiva estão no art. 312 do CPP.

Recentemente foi determinada a prisão preventiva do ex-Ministro Milton Ribeiro, em face de supostas corrupções passivas (Código Penal, art. 317), havidas enquanto ele era o titular da Pasta. No entanto, ao que consta, preocupado com o que a Polícia Federal poderia encontrar, ou o que o preso pudesse declarar, o Presidente da República telefonou para o investigado (sem saber ao certo se era prisão ou busca e apreensão) para alertá-lo.

Ricardo Noblat tem sido extremamente cético ao Presidente da República, mas é correto ele afirmar que Flávio Bolsonaro acertou ao afirmar:

- Tá cheirando sacanagem, além de crime, é claro. [aqui]

Sim. Mesmo que o Presidente da República não tenha concorrido para a corrupção que é investigada, em tese praticou o crime de favorecimento pessoal (Código Penal: "Art. 348 - Auxiliar a subtrair-se à ação de autoridade pública autor de crime a que é cominada pena de reclusão: Pena - detenção, de um a seis meses, e multa. § 1º - Se ao crime não é cominada pena de reclusão: Pena - detenção, de quinze dias a três meses, e multa").

Como o crime do art. 317 do Código Penal é punido com reclusão, o favorecimento pessoal seria o qualificado do art. 348, § 1º, do CP. Também, em tese, há o crime de violação de sigilo funcional qualificado, assim descrito no Código Penal:

"Art. 325 - Revelar fato de que tem ciência em razão do cargo e que deva permanecer em segredo, ou facilitar-lhe a revelação:

Pena - detenção, de seis meses a dois anos, ou multa, se o fato não constitui crime mais grave.

§ 1o  Omissis.

§ 2o Se da ação ou omissão resulta dano à Administração Pública ou a outrem:

Pena – reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos, e multa."

O artigo mencionado, de Noblat, replica o vazamento de uma gravação ilegal pelo então Sérgio Moro. Aquilo foi um crime previsto na Lei n. 9.296, de 24.7.1996, a saber:

Art. 10.  Constitui crime realizar interceptação de comunicações telefônicas, de informática ou telemática, promover escuta ambiental ou quebrar segredo da Justiça, sem autorização judicial ou com objetivos não autorizados em lei:

Pena - reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa.

Parágrafo único.  Incorre na mesma pena a autoridade judicial que determina a execução de conduta prevista no caput deste artigo com objetivo não autorizado em lei.

Talvez esse crime tenha se repetido. No entanto, entendo que, ao exemplo da situação anterior, o novo vazamento de interceptação telefônica não deve gerar responsabilidade jurídico-criminal, até porque no primeiro caso foi muito pior, eis que a escuta foi feita depois de terminado o prazo da autorização judicial, ou seja, no primeiro caso a divulgação ilegal decorreu de uma interceptação também delituosa.

quarta-feira, 22 de junho de 2022

Meninas vítimas do sistema de justiça

 

1. FINALIDADE

Tratarei aqui muito rapidamente de algo que venho afirmando nas defesas criminais: “mulheres são muito duras, prefiro os homens decidindo”.

Esse rótulo antipático à ideologia de gênero está me atingindo profundamente, especialmente porque o expresso involuntariamente, embora o problema seja pontual.

Aqui estamos diante de mais um deles: uma Juíza de Direito violando direitos de uma menina.

Segue uma pequena introdução:

A Justiça autorizou, na manhã desta terça-feira (21), que a criança de 11 anos grávida em decorrência de um estupro, em Santa Catarina, retorne a sua casa, segundo informações da advogada da família, Daniela Felix. As autoridades aguardam o posicionamento da Vara da Infância encaminhado pelo Tribunal de Justiça.

Ainda de acordo com Felix, o desacolhimento da menina foi autorizado por ter sido identificado que o agressor não está na casa onde vive.[1]

É curioso que a matéria chegue logo após eu ter sido notificado pelo Google de que “um aviso para os leitores foi incorporado à sua postagem com o título: O Poder Judiciário mais uma vez envergonha! Uma análise a partir do Caso de Abaetetuba”.[2]

Só para lembrar, a menina de Abaetetuba ficou presa por vários dias em cela para homens na região metropolitana de Belém-PA. De outro lado, agora, temos uma menina sob medida protetiva porque foi vítima de estupro.

2. CUIDADOS QUE PRECISAMOS TER AO TRATAMOS DOS DOIS CASOS

Sou defensor do direito ao esquecimento. No entanto, amparado pela doutrina de Virgílio Afonso da Silva, sustento que todos os direitos fundamentais são ponderáveis, ou seja, nenhum é absoluto, sendo oportuno transcrever a conclusão:

A partir da consolidação da ideia de que todo direito fundamental é restringível, colocou-se em xeque a tradicional distinção das normas constitucionais, quanto à sua eficácia, em normas de eficácia plena, normas de eficácia contida e normas de eficácia limitada.

A distinção entre normas de eficácia plena e normas de eficácia contida foi colocada em xeque porque se baseia justamente na possibilidade ou impossibilidade de restrições. Normas de eficácia plena não seriam restringíveis, enquanto as normas de eficácia contida seriam. Contudo, se todos os direitos fundamentais são restringíveis, a distinção perde a razão de ser.[3]

Ao falar de casos sensíveis como os presentes, não podemos nos olvidar de que a própria Constituição Federal nos alerta para o fato de que crianças e adolescentes são pessoas em desenvolvimento (art. 227, § 3º, inc. V). De outro lado, temos a dignidade de autoridades.

Ocorre que, em princípio, as Juízas de Direito violaram direitos humanos fundamentais, sendo que o caso de Abaetetuba resultou em processos e o atual, segundo consta, já tem opiniões de Conselheiros do Conselho Nacional de Justiça em favor do processamento da magistrada.[4]

Não podemos apagar a história, em nome da dignidade das magistradas envolvidas nos 2 casos, bem como em favor do direito ao esquecimento. Nesse aspecto, em 2016, quando a 33ª Vara Criminal da Comarca do Rio de Janeiro proibiu a venda do livro Minha Luta (no original, Mein Kampf), de Adolf Hitler, fui convidado pela TV Justiça para participar, com Sidney Aguilar Filho[5], sobre programa que discutiria o tema do nazismo no Brasil. Uma das perguntas do entrevistador foi:

– Podemos apagar a história?[6]

A minha resposta foi a de que o livro Minha Luta já existia, em português e gratuito, na rede mundial de computadores e que a discussão era interessante porque naqueles dias a demolição da casa onde Hitler nasceu era discutida na Áustria.

Enquanto muitos defendem que os erros devem ser lembrados para evitar repetições e provocar avanços, outros creem que ignorar os fatos desonra os seus autores. Estes últimos entendem que lembrar os fatos nos deixa vulneráveis a repeti-los.[7]

Aqui no Brasil, ante o pedido de indenização por irmãos de uma vítima, em face de divulgação não autorizada da imagem desta no Programa Linha Direta da TV Globo, tivemos um litígio que resultou na Tese n. 786 do Supremo Tribunal Federal, in verbis:

É incompatível com a Constituição a ideia de um direito ao esquecimento, assim entendido como o poder de obstar, em razão da passagem do tempo, a divulgação de fatos ou dados verídicos e licitamente obtidos e publicados em meios de comunicação social analógicos ou digitais. Eventuais excessos ou abusos no exercício da liberdade de expressão e de informação devem ser analisados caso a caso, a partir dos parâmetros constitucionais - especialmente os relativos à proteção da honra, da imagem, da privacidade e da personalidade em geral - e as expressas e específicas previsões legais nos âmbitos penal e cível.[8]

Assim como no caso de Abaetetuba, a minha maior preocupação será com a imagem da vítima, não das autoridades envolvidas nos casos que tenho por delituosos.

3. COMPARAÇÕES NECESSÁRIAS

Em 2013 tivemos uma adolescente apreendida em flagrante, tendo o Ministério Público do Estado do Pará, por intermédio de uma Promotora Justiça pedido a conversão em prisão, deferida por uma Juíza que conhecia a superpopulação da cadeia pública em que se encontrava presa com vários homens, a qual era estuprada várias vezes por dia. Após o STF ter cassado a decisão do CNJ que aposentou compulsoriamente a Juíza, o TJPA a promoveu por merecimento.

No dia 20.6.2022 veio à imprensa o fato de uma Juíza ter mandado para um abrigo, uma menina grávida, isso para evitar o abortamento, notícia que foi intensificada no dia 21.6.2022,[9] isso porque a magistrada encorajou a criança a não abortar, como se a vítima tivesse capacidade jurídica plena para decidir sobre a matéria.[10] Curiosamente, a criança fragilizada pela transformação hormonal foi afastada da mãe e, coincidentemente – ao exemplo de Abaetetuba -, a magistrada foi promovida por merecimento, mediante decisão do TJSC, de 15.6.2022.[11]

O abortamento é a interrupção da gravidez com a morte do feto e, pior, a medida protetiva à vítima de estupro, sob o pretexto de que a mãe que buscava amparo judicial representava um risco à criança, é um absurdo sem precedentes.

A Lei n. 8.069, de 13.7.1990, preceitua:

Art. 98. As medidas de proteção à criança e ao adolescente são aplicáveis sempre que os direitos reconhecidos nesta lei forem ameaçados ou violados:

I - por ação ou omissão da sociedade ou do Estado;

II - por falta, omissão ou abuso dos pais ou responsável;

III - em razão de sua conduta.

No caso, foi o Poder Judiciário quem violou o direito da criança “à convivência familiar”, em face de uma mãe que buscou a sua proteção, atingindo direito fundamental expresso no art. 227, caput, da Constituição Federal.

Ao contrário de abuso da mãe, o que ela pretendeu fazer valer foi a lei, uma vez que o art. 128, inc. II, do Código Penal. No caso, caso o estuprador fosse da família, que o agente fosse afastado do lar mediante medida protetiva ou até preso cautelarmente.

Criança de 10 anos que pratica conjunção carnal e engravida, juridicamente, não pratica crime. Ela é vítima de crime ou de ato infracional descrito no art. 217-A do Código Penal. Diz-se que a menina tinha conjunções carnais, autorizadas pela mãe, no interior da própria casa, com namorado de 13 anos. No caso, ainda assim, o abortamento seria legal porque - em tese - houve ato infracional do adolescente.

O exposto evidencia que a criança foi vítima de conduta abusiva do Poder Judiciário ao ser submetida a uma medida protetiva prevista no art. 101, inc. VII, da Lei n. 8.069/1990, sem a incidência de qualquer hipótese do art. 98 da mesma lei.

CONCLUSÃO

É triste tratar de fatos assim porque o que se pode constatar é uma mistura de Direito e moral, quando já está demonstrado que o julgamento não pode se dar por convencimento íntimos de um julgador. Mas, por uma persuasão racional, ante as provas que são implementadas.

Privar uma criança da convivência familiar, especialmente da mãe que buscava a proteger, sem qualquer indício de que a mãe tenha praticado crime, não tem amparo legal.

Não direi aqui que a Juíza praticou o crime do art. 9º ou do art. 15-A, inc. II, da Lei n. 13.869, de 5.9.2019. No entanto, ao exemplo do caso de Abaetetuba, a sua conduta é gravíssima, com sérias consequências à vítima e à sua genitora.



[1] ALECRIM, Giulia; SOUZA, Renata. Justiça autoriza que criança vítima de estupro em Santa Catarina volte para casa: menina de 11 anos estava em abrigo desde que foi impedida de realizar um aborto. 21.6.2022, às 14h10. Disponível em: <https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/justica-autoriza-que-crianca-vitima-de-estupro-em-santa-catarina-volte-para-casa/>. Acesso em: 21.6.2022, às 21h.

[2] O aviso chegou na minha caixa de mensagens, em <sidiojunior@gmail.com>, no 21.6.2022, às 23h34. Ao acessar o artigo, verifico que ele remete o leitor a <https://www.blogger.com/post-interstitial.g?blogspotURL=http://sidiojunior.blogspot.com/2013/10/o-poder-judiciario-mais-uma-vez.html>, onde se lê: “Aviso de conteúdo confidencial: Talvez esta postagem tenha conteúdo confidencial. Em geral, o Google não revisa nem endossa o conteúdo deste ou de qualquer outro blog. Para saber mais sobre nossas Políticas de conteúdo, acesse as diretrizes da comunidade do Blogger.” Pedi a revisão porque o texto se orientou apenas por dados públicos, o que será um pouco desenvolvido no que ora estou escrevendo.

[3] SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos fundamentais: conteúdo essencial, restrições e eficácia. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2010. p. 254.

[4] COELHO, Gabriela; HAHON, Eduardo. Sete conselheiros do CNJ pedem à corregedoria para investigar juíza de SC: Joana Ribeiro Zimmer é investigada por atuação no caso da menina de 11 anos impedida de fazer um aborto após ter sido estuprada, 21.6.2022, às 16h10. Disponível em: <https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/sete-conselheiros-do-cnj-pedem-a-corregedoria-para-investigar-juiza-de-sc/>. Acesso em: 21.6.2022, às 21h50.

[5] Historiador que escreveu a tese “Educação, autoritarismo e eugenia: exploração do trabalho e violência à infância desamparada no Brasil (1930-1945)”, na qual assegura ter havido nazismo no Brasil.

[6] STF. TV Justiça. 28.11.2016, as 12h30. Reapresentações em 29.11.2016, às 9h; 30.11.2016, às 20h; 2.12.2016, às 12h; 3.12.2016, às 12; e 4.1.2016, às 12h. Informações disponíveis em: <https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=330530&ori=1>. Acesso em: 21.6.2022, às 22h10.

[7] FIEDERER, Luke. Por que o plano da Áustria de demolir a casa onde nasceu Hitler é controverso.

[8] STF. Tribunal Pleno. RE 1010606. Min. Dias Toffoli, 11.2.2021. Disponível em: <https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=755910773>. Acesso em: 21.6.2022, às 23h.

[9] CARTA CAPITAL. Justiça de Santa Catarina ordena que menina de 11 anos, vítima de estupro, volte a morar com a mãe: Juíza havia encaminhado criança grávida para um abrigo com o objetivo de evitar a interrupção da gestação, 21.6.2022, às 13:37. Disponível em: <https://www.cartacapital.com.br/justica/justica-de-santa-catarina-ordena-que-menina-de-11-anos-vitima-de-estupro-volte-a-morar-com-a-mae/>. Acesso em: 21.6.2022, às 23h20.

Segue o inteiro teor da notícia:

A Justiça de Santa Catarina ordenou que uma menina de 11 anos, vítima de estupro, volte para a mãe após ter sido mantida em um abrigo para evitar que fosse submetida a um aborto.

A criança tinha permissão para realizar o procedimento abortivo sem a necessidade de autorização judicial, mas o direito lhe foi negado pela Juíza Joana Ribeiro Zimmer.

A mãe da menina havia descoberto a gravidez após 22 semanas de gestação. A criança, então, foi encaminhada a um hospital de Florianópolis para que a gravidez fosse interrompida, mas a equipe médica se recusou a realizar o procedimento, sob a alegação. de que as normas internas do hospital permitiam o ato apenas até a 20ª semana.

Ao portal G1, a advogada da família da criança declarou que há uma decisão judicial que autoriza a interrupção da gravidez da menina. Porém, a execução do procedimento estava impedida pelo fato de a criança ter sido colocada em um abrigo fazia mais de um mês.

[10] REDAÇÃO. Aborto: juíza de Santa Catarina encoraja criança de 11 anos a manter gravidez: a criança vítima de estupro foi pressionada durante uma audiência, por juíza e promotora, a manter gravidez resultante de um estupro. UOL: PARANÁPORTAL, 20.6.2022, às 16h01. Disponível em: <https://paranaportal.uol.com.br/geral/aborto-santa-catarina-crianca-vitima-estupro-11-anos>. Acesso em: 21.6.2022, às 23h30.

Leia-se o inteiro teor da matéria:

O crime foi descoberto pela mãe, dias antes do aniversário de 11 anos da vítima. Segundo informações que constam no processo, a criança sentia muitos enjoos. Além disso, o crescimento anormal da região abdominal denunciava a gravidez.

A mãe procurou o conselho Tutelar de Tijucas, cidade a 50 quilômetro da capital de Santa Catarina, Florianópolis. Elas foram encaminhadas ao Hospital Universitário da UFSC, referência para procedimentos de aborto legal.

A medida foi negada pelo hospital. Segundo o HU, as normas internas permitiam o aborto até 20ª semana. A criança de 11 anos, vítima de estupro, encontrava-se na 22ª semana de gravidez.

O caso, então, foi encaminhado à Justiça. O Ministério Público de Santa Catarina pediu o acolhimento institucional da criança, sob pretexto de protegê-la do agressor. No entanto, a juíza Joana Ribeiro Zimmer acolheu o pedido argumentando que era necessário proteger o feto.

“O risco é que a mãe efetue algum procedimento para operar a morte do bebê”, decidiu a magistrada, em decisão obtida pelo portal Catarinas, em reportagem com apoio do The Intercept Brasil.

A reportagem também teve acesso aos áudios da audiência, na qual a juíza Joana Ribeiro Zimmer tenta convencer a criança a manter a gravidez por mais uma ou duas semanas. “Você suportaria ficar mais um pouquinho?”, questiona a juíza, durante a audiência.

A pressão à criança de 11 anos vítima de estupro também acontece por parte do Ministério Público de Santa Catarina. Segundo a reportagem, durante a audiência, a promotora Mirela Dutra Alberton tenta dissuadir a criança do direito ao aborto legal.

“Em vez de deixar ele morrer – porque já é um bebê, já é uma criança –, em vez de a gente tirar da tua barriga e ver ele morrendo e agonizando, é isso que acontece, porque o Brasil não concorda com a eutanásia”, diz ela.

Juíza e promotora argumentam quem o aborto não poderia acontecer após a 20ª semana de gravidez, segundo o protocolo no Ministério da Saúde. No entanto, a legislação brasileira autoriza o procedimento sem restrições em caso de violência sexual.

Em nota ao The Intercept, a Joana Ribeiro Zimmer, por meio do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, informou que “não se manifestará sobre trechos da referida audiência, que foram vazados de forma criminosa. Não só por se tratar de um caso que tramita em segredo de justiça, mas, sobretudo para garantir a devida proteção integral à criança”.

Da mesma forma, a promotora Mirela Dutra Alberton, por meio do Ministério Público de Santa Catarina, respondeu que o aborto legal somente é viável até 22 semanas e peso inferior a 500g. “Dessa forma, diante dessa complexa situação, optou-se, por uma solução ponderada do caso concreto, viabilizando-se uma interrupção antecipada do parto, de modo a salvaguardar a vida da infante e do nascituro, a ser implementada a critério da equipe médica”.

[11] BATISTELA, Clarissa; MARTINS, Camila. Juíza deixa caso de menina estuprada que foi impedida de abortar em SC após receber promoção “por merecimento”: Tribunal de Justiça decidiu na última quarta-feira (15) por uma promoção "por merecimento" para a Magistrada Joana Ribeiro Zimmer. Ela disse que mudança para Brusque foi decidida antes da polêmica sobre o caso da menina de 11 anos. G1, 21.6.2022, às 14h25. Disponível em: <https://g1.globo.com/sc/santa-catarina/noticia/2022/06/21/juiza-deixa-caso-menina-estuprada-que-foi-impedida-de-abortar-em-sc.ghtml>. Acesso em: 21.6.2022, às 22h45.

domingo, 19 de junho de 2022

Lava Jato: inglória notória

 1. FINALIDADE

Tratarei aqui academicamente sobre uma provocação de um amigo, um coordenador de uma graduação em Direito de uma faculdade privada que está situada no Distrito Federal. Ele é um intelectual que sabe da minha posição acadêmica sobre o Direito Criminal.

A provocação que me foi enviada tem o seguinte texto:

O ministro Luiz Fux, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), declarou, nesta sexta-feira (10), que "ninguém pode esquecer" que casos de corrupção ocorreram no Brasil e que "embora nas decisões da Lava Jato tenha havido anulações formais, aqueles R$ 50 milhões nas malas eram verdadeiros".

"Não eram notas americanas falsificadas. O gerente que trabalhava na Petrobras devolveu R$ 98 milhões de dólares, e confessou efetivamente que tinha assim agido", afirma.

Fux se referia, sem citar nomes, às malas do ex-ministro Geddel Vieira Lima, encontradas em um apartamento em Salvador, e aos R$ 98 milhões de dólares que o ex-gerente da Petrobras Pedro Barusco devolveu, após confessar desvios.

As declarações foram durante discurso em evento do Tribunal de Contas do Estado do Pará, em Belém, com a presença de autoridades, incluindo o governador Helder Barbalho (MDB) e o ministro do Tribunal de Contas da União (TCU), Bruno Dantas.[1]

Essa provocação à reflexão me levou a pensar sobre momentos anteriores em que me posicionei sobre a Operação Lava Jato e tenho por orientação a hipótese de que não se pode pretender combater a criminalidade praticando novos crimes, como os perpetrados pela equipe da Lava Jato. Pior, diárias, em média de R$ 3.000.000,00 anuais, por si só, representam elevado custo que não podemos esquecer.

2. UM POUCO DA OPERAÇÃO LAVA JATO

Em 2017 planejei e implementei um curso de extensão em que tratei especificamente sobre a Operação Lava Jato, seu orientador fático foi um livro de investigação jornalística.[2]

A operação lava jato já foi objeto de breve exposição crítica que fiz à visão de Moro sobre a Operação Mani Pulite (Operação Mãos Limpas). Nela escrevi:

Um Juiz imparcial, não adotaria as práticas que ele defendeu em 2004 e que evidencia estar concretizando 10 anos depois. Sua visão da Operação Mãos Limpas deixa à mostra o quanto é perigosa a condução por ele dos processos criminais da Operação Lava Jato, em que as semelhanças com a Operação Mani Pulite” não são meras coincidências.

O pior é que o seu artigo é concluído com a seguinte assertiva: “Daí, por evidente, o valor, com seus erros e acertos, do exemplo representado pela Operação Mani Pulite”. Porém, ele próprio reconhece que a referida operação projetou politicamente Berlusconi, um homem de histórico de (im)probidade complicado. E, não se pode afirmar que a operação foi benéfica se a Itália continua sendo um dos países mais corruptos da Europa, só empatando com a Romênia e a Grécia.[3]

A operação policial/judicial se iniciou em 17.3.2014, tendo esse nome em razão de que o Posto da Torre, localizado no Setor Hoteleiro Sul de Brasília, ter um lava jato que era usado para lavagem de dinheiro, por intermédio de Alberto Youssef.

A Lava Jato se tornou interminável operação policial/judicial, com quase uma centena de fases para apurar uma série de crimes continuados, tratados como crimes perpetrados em concurso material.[4] Um negacionismo a tudo, inclusive à lei, leva ao que temos, Juízes Substitutos negando a teoria objetivo-formal, adotada pelo Código Penal, para rejeitar a continuidade delitiva. Mas, o fazem com o aval do STJ. Com isso, o crime continuado não merece prestígio na jurisprudência pátria e a Lava Jato o desprezou.

3. A CRISE DA OPERAÇÃO LAVA JATO

A operação não teve uma crise porque ela foi inconstante do início ao fim. Seus primeiros problemas surgiram com o desrespeito aos direitos fundamentais e com a prática do seguinte crime:

Art. 10. Constitui crime realizar interceptação de comunicações telefônicas, de informática ou telemática, promover escuta ambiental ou quebrar segredo da Justiça, sem autorização judicial ou com objetivos não autorizados em lei:

Pena - reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa.

O Lula afirmou que tudo não passava de pirotecnia.[5] Pior, sempre foi isso. Como Moro alertou no seu pequeno artigo que citei, sempre considerou questionável o vazamento de informações, mas útil. Isso é inquestionável na famigerada operação, a partir do Tchau, querida, divulgação havida em 16.3.2016,[6] quando eu discursava em caminhão de som falando em prol da saída da então Presidente da República. Fiquei muito envergonhado.

Naquele dia conclui: MBL (Movimento Brasil Livre) nunca mais. No entanto, o STF demorou um pouco mais a acordar.

O STF veio sofrendo pressões desde muito antes. Pior, membros do STF da pior estirpe quiseram, a qualquer custo, validar a Lava Jato. Ministro fez chicana para acreditarmos que o louvável Ministro Celso de Mello criou oportunidade incabível de embargos infringentes contra decisão dele,[7] STF, o que já sabíamos ser contrário à legalidade e ao direito do réu.

As ilegalidades foram as mais diversas possíveis. E, somente depois de mais uma decisão absurda, Lula foi colocado em liberdade.[8]

Recuso-me a citar a decisão monocrática que anulou as diversas decisões plenárias do STF, embora indique a sua fonte neste texto (nota de rodapé n. 9) porque ela subverte toda ordem jurídica. De todo modo, todas anteriores que não percebiam, por maioria, os vícios de origem criticáveis.[9] Com efeito, é do garantismo e sempre alertou o Min. Gilmar Mendes que “não se combate crime cometendo crime”. Ele lembrou os fatos trazidos na mensagem do Professor Doutor que me provocou, rebatendo-o porque um erro não justifica outro.[10]

Conclusão

Talvez o conhecimento aqui trazido seja “zero” porque um relator parcial era de conhecimento público. A “vaza jato” era outra crise criminosa de vazamento de dados sigilosos do processo.

Pior, Albert Youssef, já indigno de nova delação por desonrar a anterior, foi preso no NE por determinação de um Juiz Federal do PR, em face de crime havido em Brasília. Ninguém conseguia ver isso porque a nossa democracia caminha ao lado da polícia e de maus sistemas repressivos.

O dano moral coletivo que nunca quisemos apurar, os danos morais a Lula e outros envolvidos, hoje inocentes, em face da anulação de processos, são, talvez, maiores do que os conhecidos danos aventados por Fux na matéria que inspirou este texto.

O Brasil sempre foi e será inconsequente enquanto não tivermos efetiva concepção democrática. Por enquanto, vivemos presos ao saudosismo do péssimo momento de totalitarismo militar.

Lamentável!



[1] G1 PARÁ. Ministro Fux diz que decisões sobre casos de corrupção foram anuladas na Lava Jato, mas dinheiro desviado era real: Luiz Fux declarou que, embora as anulações formais na Lava Jato, R$ 50 milhões em malas eram verdadeiros. Belém, 10.6.2022, às 17h50. Disponível em: <https://g1.globo.com/google/amp/pa/para/noticia/2022/06/10/ministro-fux-diz-que-decisoes-sobre-casos-de-corrupcao-foram-anuladas-na-lava-jato-mas-dinheiro-desviado-era-real.ghtml>. Acesso em: 17.6.2022, às 21h44.

[2] NETTO, Vladimir. Lava Jato: o Juiz Sérgio Moro e os bastidores da operação que abalou o Brasil. Rio de Janeiro: Primeira Pessoa, 2016.

[3] MESQUITA JÚNIOR, Sidio Rosa de. O artigo de autoria do Juiz Federal Sérgio Fernando Moro, de 2004, sobre a Operação Mãos Limpas, “Mani Pulite”, evidenciando suas práticas na Operação Lava Jato. Brasília: Estudos Jurídicos e Filosóficos, 15.9.2015. Disponível em: <http://sidiojunior.blogspot.com/2015/09/o-artigo-de-autoria-do-juiz-federal.html>. Acesso em: 17.6.2022, às 23h22.

[4] Veja-se os arts. 71 e 69 do Código Penal:

Crime continuado

Art. 71 - Quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes da mesma espécie e, pelas condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes, devem os subsequentes ser havidos como continuação do primeiro, aplica-se-lhe a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, aumentada, em qualquer caso, de um sexto a dois terços.

Parágrafo único - Nos crimes dolosos, contra vítimas diferentes, cometidos com violência ou grave ameaça à pessoa, poderá o juiz, considerando a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e a personalidade do agente, bem como os motivos e as circunstâncias, aumentar a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, até o triplo, observadas as regras do parágrafo único do art. 70 e do art. 75 deste Código.

Concurso material

Art. 69 - Quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes, idênticos ou não, aplicam-se cumulativamente as penas privativas de liberdade em que haja incorrido. No caso de aplicação cumulativa de penas de reclusão e de detenção, executa-se primeiro aquela.

§ 1º - Na hipótese deste artigo, quando ao agente tiver sido aplicada pena privativa de liberdade, não suspensa, por um dos crimes, para os demais será incabível a substituição de que trata o art. 44 deste Código.

§ 2º - Quando forem aplicadas penas restritivas de direitos, o condenado cumprirá simultaneamente as que forem compatíveis entre si e sucessivamente as demais.

[5] AGÊNCIA O GLOBO. Lula chama de “pirotecnia” denúncia do MP: ex-Presidente foi denunciado pelos crimes de corrupção e lavagem de dinheiro na Lava-Jato, 15.9.2016, às 13h51. Disponível em: <https://epocanegocios.globo.com/Brasil/noticia/2016/09/lula-chama-de-pirotecnia-denuncia-do-mp.html>. Acesso em: 17.6.2022, às 20h13.

[6] Estávamos em clima de derrubada da então Presidente da República, quando vazou o vídeo, totalmente irregular, do ex-Presidente com a então Presidente, a jogando por terra, em plena ilicitude, ato decorrente de Juiz absolutamente incompetente (In CASTRO, Fernando; NUNES, Samuel; NETTO, Vladimir. Moro derruba sigilo e divulga grampo de ligação entre Lula e Dilma: ligação foi feita às 13h32 desta quarta-feira (16). Em outra conversa, Lula diz que não iria para o governo para se proteger. 16.3.2016, às 18h38. Disponível em: <https://g1.globo.com/pr/parana/noticia/2016/03/pf-libera-documento-que-mostra-ligacao-entre-lula-e-dilma.html>. Acesso em: 17.6.2022, às 20h22.

[7] Em voto polido e muito bem fundamentado, o Ministro, em 18.9.2013, demonstrou o total cabimento dos embargos infringentes em favor de réus que, em ação criminal originária no STF, são condenados por maioria. (STF. Tribunal Pleno. Ação Penal n. 470-MG. Min. Celso de Mello. 18.9.2013. Disponível em: <https://www.migalhas.com.br/arquivos/2013/9/voto-celsomello-infringentes.pdf>. Acesso em 17.6.2022, às 20h42.

[8] STF. Tribunal pleno. Ag. Reg. No HC 193.726. Min. Edson Fachin, 14.4.2021. Disponível em: <https://stf.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/1273296176/agreg-no-agreg-no-habeas-corpus-hc-193726-pr/inteiro-teor-1273296181>. Acesso em: 17.6.2022, às 20h54.

[9] Era triste ver um grupo, formado precipuamente por Luiz Fux, Luís Roberto Barroso, Rosa Weber, Carmem Lúcia e Edson Fachin (e outros ex-Ministros), não perceberem os diversos vícios processuais, especialmente, que o crime não pode ser combatido mediante a prática de novos crimes

[10] CARTA EXPRESSA. Gilmar rebate Fux sobre Lava Jato: “não se combate crime cometendo crime: ninguém discute se houve, ou não, corrupção. O que se cobra é que isso seja feito seguindo o devido processo legal”. Disse o Ministro. Carta Capital, 13.6.2022, às 18h27. Disponível em: <https://www.cartacapital.com.br/cartaexpressa/gilmar-rebate-fux-sobre-lava-jato-nao-se-combate-crime-cometendo-crime/>. Acesso em: 17.6.2022, às 21h20.

sábado, 18 de junho de 2022

Podemos nos orgulhar da imoralidade.

Tratarei aqui de fatos que aconteceram e dos quais me orgulho, embora imorais.

Estudei na Academia Policial Militar do Guatupê, de 1987 a 1989. Fui “Xerife” de turma em uma semana que sequer recordo o ano e tínhamos uma visita para fazermos em Curitiba (algo cívico em algum lugar histórico). Então, 2 cadetes pretendiam parecer importantes, usando uniformes de gala (mais chiques). Ocorre que era um dia quente e determinei uniformes mais leves.

Foi uma tragédia porque os 2 se sentiram profundamente ofendidos. 1 deles buscou o Comandante da Turma afirmando que eu dizia saber mais Direito Penal do que ele – pior, sempre neguei a denominação Direito Penal – e instrutor exigiu prova, tendo o colega apresentado uma testemunha e, falsamente, disseram:

Nas aulas que o senhor falta e estamos limpando o pátio e jardim ele afirma que ser um absurdo as aulas de Direito Penal se tornarem em aulas de jardinagem.

O Senhor faz isso porque sabe menos Direito Penal do que ele.”

Fui punido com 6 dias de detenção devido a isso. Todavia, a minha reclamação era fazer horas-aulas acadêmicas em jardinagem.

Poucos meses depois fui procurado por alguns Cadetes porque era muito bom acadêmico e a “testemunha” do meu delator não tinha condições de ser aprovado em Estatística. Por isso, fiz a prova dele.[1]

Em certo momento, vi que o instrutor, um Coronel, percebeu que fiz a prova de outrem, “deixando passar”. Eu, muito nervoso, fiz a prova dele e a minha. Ele precisava de 9,0 e foi aprovado com essa nota.

Tirei 7,0 na prova e nunca me arrependerei do que fiz. Ajudei uma pessoa, independentemente de qualquer fato anterior.

Kant diria que errei porque a moral é superior ao interesse pessoal. No entanto, o interesse não era pessoal, mas o coletivo: ajudar uma turma a se formar.[2]

Esse é um caso em que a imoralidade (nunca “colei” e fiz a prova de outrem), creio, foi reconhecida como lícita pelo avaliador.

Pena que o colega se formou e poucos meses depois morreu em um acidente automobilístico....



[1] À época, pensava que estatística era preocupação de Oficiais Superiores, quando muito de Oficiais Intermediários. Depois, percebi o meu erro. Mas, nem todo mundo está no plano do planejamento, sendo meio bruto o operacional.

[2] Veja-se: KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes e outros escritos. São Paulo: Martin Claret, 2003. passim.