terça-feira, 12 de abril de 2022

A INSEGURANÇA JURÍDICA ANTE O HPV E A IMPUTAÇÃO ALTERNATIVA

 

1. Introdução

Tratarei aqui de um caso concreto que ainda não está concluído. Como é um caso de suposta violência doméstica contra a mulher, procurarei respeitar ao necessário sigilo imposto por lei (Código Penal, art. 234-B).

Um estudo bibliográfico e acompanhado de pesquisas em meios cibernéticos, apresentado em primeira pessoa do singular, no qual procurarei, mediante método indutivo, demonstrar que o aparecimento de lesões em uma ex-namorada por HPV carece de outras provas além de anterior confissão do ex-namorado de que já teve lesões por HPV.

No caso concreto, o juízo de origem rejeitou a denúncia porque ela incorporou a denominada imputação alternativa. No entanto, o tribunal de justiça recebeu a denúncia e, pior, em sede de habeas corpus, o STJ denegou a ordem por entender que não se trata de imputação alternativa acusar pessoa, por um único ato, por crime de perigo e crime de dano, eis que a acusação pediu a condenação do réu como “incurso no art. 130 (perigo de contágio venéreo) e art. 129, § 9º (lesão corporal), do Código Penal, c/c o art. 5º, inciso III, da Lei 11.340/2006”.

2. Imputação alternativa ou acusação indeterminada

A imputação alternativa ou acusação indeterminada está em confronto direto com o art. 5º, inc. LV, da CF, bem como art. 5º, inc. XXXIX, da CF e art. 1º do CP.

Tive um aluno que pretendeu defender a imputação alternativa em trabalho de conclusão de curso e o dissuadi porque ela não tem fundamentos jurídicos aceitáveis, muito embora seja defendida por Afrânio Silva Jardim, in litteris:

Diz-se alternativa a imputação quando a peça acusatória vestibular atribui ao réu mais de uma conduta penalmente relevante, asseverando que apenas uma delas efetivamente terá sido praticada pelo imputado, embora todas se apresentem como prováveis, em face da prova do inquérito. Dessa forma, fica expresso, na denúncia ou queixa, que a pretensão punitiva se lastreia nesta ou naquela ação narrada.[1]

Nas conclusões da exposição do tema, defendendo a possibilidade da imputação alternativa na processualística criminal, Afrânio Silva Jardim arremata: “9) a imputação alternativa não prejudica o regular exercício do direito de defesa e nem viola o princípio da correlação entre a acusação e a sentença”.[2] Não obstante essa douta posição, a imputação alternativa é incerta, confunde e minimiza o contraditório e a ampla defesa.

Guilherme Dezem comentando a posição de Afrânio Silva Jardim, em sentido contrário, sustenta:

De nossa parte, discordamos da posição apresentada por Afrânio Silva Jardim. Não é possível, dentro do processo penal pautado pelo respeito ao devido processo legal, que seja admissível tal modalidade de acusação.

Ora, se durante a investigação preliminar não se conseguiu apurar o crime cometido ou a sua autoria, não se pode admitir que a acusação impute duas condutas ou a duas pessoas na esperança de que em juízo a situação se acerte.[3]

No caso concreto em discussão, o namoro se estendeu de, aproximadamente, Mai2017 a Nov2018 (ela afirmou em delegacia de polícia que o namoro foi de aproximadamente um ano, terminando em Nov2018), tendo o MPDFT feito a imputação de 2 crimes incompatíveis. Porém, o TJDFT e o STJ não vislumbraram problema nisso porque o Juiz deve ficar adstrito apenas a fatos, podendo dar capitulação jurídica diversa a eles.

Em 30.4.2019, ela registrou ocorrência policial junto à Delegacia Especial de Atendimento à Mulher da Polícia Civil do Distrito Federal, narrando:

Compareceu a esta Especializada a COMUNICANTE/OFENDIDA (...), informando-nos que namorou (...), ora AGRESSOR, por aproximadamente 1 (um) ano, esclarecendo que as partes não chegaram a residir sob o mesmo teto e não possuem filhos em comum, colocando fim ao relacionamento em novembro de 2018. Segundo a DECLARANTE, [fulano] não possui perfil agressivo ou violento, não tendo agredido física ou moralmente [a declarante] em ocasiões anteriores. Relata que o AGRESSOR não faz uso de álcool ou substâncias entorpecentes. Informa que durante o relacionamento, ficou sabendo, por "fofocas", que o AGRESSOR possuía HPV, mas todas as vezes em que confrontava [...], ele negava possuir a doença, chegando a dizer que se tivesse HPV, a OFENDIDA já teria contraído. Afirma que, confiando no então namorado, teve, por diversas vezes, relações sexuais com o AGRESSOR sem o uso de preservativo; Ocorre que, assim que as partes colocaram fim à relação, começaram a aparecer algumas verrugas em sua região genital, de forma que, tão logo percebeu a situação, entrou em contato com [...], que acabou por confirmar que possuía HPV, pedindo desculpas para a OFENDIDA e dizendo que a ajudaria a arcar financeiramente com o tratamento. Aduz que em 10 de janeiro de 2019, procurou atendimento na Clínica Acesso Saúde, em Taguatinga/DF, quando a médica declarou que [ela] estava com os sintomas de HPV, prescrevendo medicação específica devido a coceira no órgão sexual; esclarece que precisou entrar em contato com o AGRESSOR em diversas ocasiões para que ele a ajudasse a pagar a consulta, informando que o ex-namorado de fato acabou arcando com os pagamentos de uma consulta e algumas medicações. Narra que na data de hoje, 30.4.2019, por volta das 12h, [...], através de mensagem pelo aplicativo WhatsApp, durante diálogo em que a OFENDIDA informava que não tinha o dinheiro para pagar a vacina contra o HPV, [...] a ofendeu moralmente, chamando-a de "VINGATIVA". A DECLARANTE ressalta que após o fim do namoro com o AGRESSOR, somente manteve relação sexual com preservativo, esclarecendo que somente com [...] o ato sexual fora sem "camisinha". A VÍTIMA informa que possui algumas gravações de diálogos telefônicos que teve com o ex-namorado, nos quais ele confirma que tem HPV e concorda em auxiliá-la com o tratamento necessário, chegando a descrever os sintomas que [ela] passaria a ter a partir de então. Informada quanto à importância de apresentar o aparelho celular para apreensão e encaminhamento à perícia, declarou não poder dispor do referido objeto, sendo orientada a preservá-los; Neste ato, deseja representar e requerer pela apuração criminal dos fatos, ficando ciente do prazo decadencial de seis meses para entrar com a queixa-crime junto no judiciário, em sendo o caso. Foi informada da impossibilidade do arquivamento do presente procedimento na esfera policial. Quanto às Medidas Protetivas de Urgência, previstas na Lei n. 11.340/2006, desejou requerê-las, conforme termo anexo. Devidamente ORIENTADA e ACONSELHADA sobre a possibilidade de ser acolhida na Casa Abrigo, manifestou não ter interesse em tal proteção. Desde já, a OFENDIDA autoriza sua intimação pessoal sobre os atos processuais relativos ao AGRESSOR por telefone, e-mail, WhatsApp ou outro meio tecnológico sério e idôneo. Foi cientificada sobre o grupo de empoderamento para mulheres, manifestando interesse em participar. (id. xxxx).

O homem prestou declarações no dia 17.5.2019, informando ter mantido relações sexuais frequentes com a ex-namorada sem camisinha mesmo depois que ela foi informada ser ele portador de HPV e que, após o namoro, a ajudou financeiramente. Ocorre que no dia do registro da ocorrência policial, a informou não ter dinheiro para pagar a vacina contra HPV, exigida por ela.

No dia 1.5.2019 foi instaurado processo cautelar, eis que ela representou por medidas protetivas de urgência, o que ensejou a decisão indeferitória do pedido pelo 2º Juizado de Violência Doméstica e Familiar de Brasília.

No dia 30.7.2019, o MPDFT ofereceu denúncia contra o paciente, expressando:

No ano de 2018, em Brasília/DF, o denunciado, com vontade livre e consciente, por meio de relações sexuais, expôs sua namorada [...] a contágio de moléstia venérea de que sabia ou deveria saber de que estava contaminado. No mesmo contexto, assumindo o risco de produzir o resultado, o denunciado ofendeu a saúde da vítima, transmitindo-lhe doença venérea por meio de relações sexuais.

Consta que o casal namorou no ano de 2018, o denunciado fez sexo com a vítima sem usar preservativos e omitiu que era portador do vírus HPV.

Durante o namoro, a vítima ouviu “fofocas” de que o denunciado teria tal doença, perguntou a ele, mas o denunciado negou. E continuaram a se relacionar sem camisinha.

O relacionamento terminou em novembro de 2018.

Após o término, a vítima descobriu ser portadora do vírus do HPV, teve lesões na genitália e precisou se submeter a tratamento.

Assim, por estar incurso no art. 130 (perigo de contágio venéreo) e art. 129, § 9º (lesão corporal), do Código Penal, c/c o art. 5º, inciso III, da Lei 11.340/06, requer o Ministério Público:...

Nestor Távora e Rosmar Alencar citam Afrânio Silva Jardim para tratar da imputação alternativa (objetiva e subjetiva) e, ao exemplo da decisão que rejeitou a denúncia, aduzem que ela “torna fluida e variável a acusação, em flagrante instabilidade a prejudicar a atuação da defesa”.[4] No caso que deu bases ao estudo, não sendo considerado o caso de imputação alternativa objetiva, estaremos diante de mais grave violação do direito à ampla defesa, eis que se confunde o acusado, não se esclarecendo se ele é denunciado por crime de dano ou de perigo, quando evidentemente, os crimes dos quais é acusado são incompatíveis.

Demercian e Maluly corroboram expondo:

A descrição alternativa ou deficiente do fato delituoso representa, por si, lesão ao contraditório. O acusado não pode exercer na sua amplitude o seu direito de defesa se a própria acusação não é clara e bem definida. A ação penal iniciada nesses moldes é nula de pleno direito e o defeito insanável e improrrogável da peça acusatória pode ser reconhecido, a qualquer tempo, através de pedido de ordem de habeas corpus, acarretando a nulidade de todos os atos subsequentes que com ela guardem relação (art. 573, §§ 1º e 2º, do Código de Processo Penal).[5]

Atendendo ao pedido de um amigo, Prof. Dr. Fábio Libório, ingressei no feito para a defesa pro bono publica do rapaz e impetrei habeas corpus perante o STJ. No entanto, ali a ordem foi denegada sob o argumento de que foram imputadas as duas condutas e que o Juiz não deve ficar preso à classificação jurídica dos fatos, feita pela acusação, e sim aos fatos narrados na denúncia.

Feita a pesquisa e constatado que o paciente tem bons antecedentes criminais e é primário, em 2.8.2019, Juizado de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher, decidiu rejeitar a denúncia nos seguintes termos:

......................................................................................................................

Contudo, a despeito de imputada ao denunciando a prática de duas infrações constato que estas são evidentemente incompatíveis, pois ao mesmo tempo em que é narrado que [...] expôs sua então namorada [...] a contágio de moléstia venérea que sabia ou deveria saber de que estava contaminado há registro de que no mesmo contexto, assumindo o risco de produzir o resultado, o agente ofendeu a saúde da vítima transmitindo-lhe doença venérea por meio de relações sexuais, conquanto ausente demonstração dessa contaminação.

Tal situação impõe reconhecer a figura da denominada “denúncia alternativa” que ocorre quando a peça vestibular atribui mais de uma conduta penalmente relevante e que, embora prováveis, apenas uma delas pode resultar em efetiva responsabilização tal como ocorre no caso submetido à análise, em que o perigo de contágio e a lesão à saúde decorrente de contágio são incompatíveis e excludentes uma em relação à outra, pois ou o agente causou com sua conduta o risco de contaminação – crime de perigo –, ou produziu o resultado – dano à saúde -, sem possibilidade da aplicação das regras de concurso, o que redunda na inépcia da denúncia por inobservância do disposto no artigo 41 do Código de Processo Penal pelo prejuízo ao exercício do direito de defesa que deve ser assegurado ao réu conforme escólio de Renato Brasileiro de Lima em sua obra “Código de Processo Penal Comentado”, Ed. JusPODIVM, 3ª edição, pág. 202:

.....................................................................................................................

(...). A despeito da construção doutrinária em torno da imputação alternativa, é bom destacar que a maioria da doutrina se posiciona contrariamente a ela, já que, ainda quando houver compatibilidade entre os fatos imputados, seu oferecimento quase sempre acarreta dificuldades ao exercício do direito de defesa. Uma imputação penal alternativa, além de constituir transgressão do dever jurídico que se impõe ao Estado de expor o fato criminoso com todas as suas circunstâncias, qualifica-se como causa de nulidade absoluta por inviabilizar o exercício da ampla defesa.”

Nesse mesmo sentido preleciona Guilherme Nucci in “Código de Processo Penal Comentado” Ed. RT, 10ª edição, pág. 163:

Denúncia ou queixa alternativa: entendemos ser inviável essa modalidade de denúncia ou queixa. Se o órgão acusatório está em dúvida quanto a determinado fato ou quanto à classificação que mereça, deve fazer sua opção antes do oferecimento, mas jamais apresentar ao juiz duas versões contra o mesmo réu, deixando que uma delas prevaleça ao final. Tal medida impossibilita a ideal e ampla defesa pelo acusado, que seria obrigado a apresentar argumentos em vários sentidos, sem saber, afinal, contra qual conduta efetivamente se volta o Estado-acusação. É, também, o magistério de José Henrique Rodrigues Torres: ‘O fato imputado deve ser certo e determinado, exatamente para que o acusado possa defender-se com segurança. Não se pode transformar a denúncia em uma metralhadora giratória, cujo gatilho é acionado pela álea do conjunto probatório’.”

Tal entendimento é, ademais, endossado pelo Superior Tribunal de Justiça, pois em análise de semelhante questão relacionada a ação penal na qual era imputada concomitantemente a um indivíduo a prática de roubo e de receptação do único objeto reconheceu a existência de prejuízo ao exercício do direito de defesa do réu por entender não ser viável, em havendo descrição de condutas flagrantemente incompatíveis entre si, o processamento da ação penal para que apenas uma prevaleça a depender da prova obtida durante a instrução:

(...)(STJ, HC 179927/RJ, 5ª Turma, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, j. 11.4.2013)

Por tal fundamento REJEITO A DENÚNCIA de id [...] com fundamento no artigo 395, inciso I, do Código de Processo Penal.

Dê-se ciência ao Ministério Público. (id. ...)

Não obstante ser impecável a decisão que rejeitou a denúncia (transcrita), o MPDFT interpôs recurso em sentido estrito, com fulcro no art. 581, inc. I, do CPP, fazendo emergir a decisão assim ementada:

EMENTA: PROCESSO PENAL. RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. INÉPCIA DA DENÚNCIA. ART. 41 DO CPP. REJEIÇÃO DENÚNCIA. NÃO CABIMENTO. RECURSO PROVIDO.

(...)

3. No processo penal o acusado defende-se dos fatos que lhe são imputados, pouco importando a classificação que lhes seja atribuída, até mesmo porque o magistrado não fica vinculado à classificação do crime feita na denúncia (narra mihi factum dabo tibi jus).

4. Na presente hipótese, não é cabível a rejeição da denúncia sob exame, pois presentes os requisitos do art. 41 do CPP, os pressupostos processuais, as condições da ação, bem como o lastro probatório mínimo a evidenciar a presença de justa causa que autorize o prosseguimento do processo criminal.

5. Recurso provido.[6]

A imputação alternativa restringe o contraditório e viola a ampla defesa. Outrossim, a decisão ilegal se olvida da disposição expressa no CPP, in verbis:

Art. 41. A denúncia ou queixa conterá a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias, a qualificação do acusado ou esclarecimentos pelos quais se possa identificá-lo, a classificação do crime e, quando necessário, o rol das testemunhas.

A norma, especialmente a de conteúdo criminal, não contém palavras vãs. O dolo e a negligência devem ser provados, sendo que a denúncia não demonstra isso confundindo a defesa ao imputar 2 crimes incompatíveis, eis que o crime de perigo é subsidiário. Na imputação, dolo de dano no crime de perigo o qualificará, a saber:

Perigo de contágio venéreo

Art. 130 - Expor alguém, por meio de relações sexuais ou qualquer ato libidinoso, a contágio de moléstia venérea, de que sabe ou deve saber que está contaminado:

Pena - detenção, de três meses a um ano, ou multa.

§ 1º - Se é intenção do agente transmitir a moléstia:

Pena - reclusão, de um a quatro anos, e multa.

§ 2º - Somente se procede mediante representação.

O dolo de perigo leva ao crime do art. 130 do Código Penal. Ainda que o paciente tivesse a intenção de transmitir o HPV, caso a sua ex-namorada não tivesse contraído o vírus, poderia se pensar no crime qualificado (Nelson Hungria propôs doutrinariamente que a hipótese deveria ser a de lesão corporal), eis que se trata de crime de consumação precipitada (formal).[7] No entanto, algumas correções merecem ser feitas.

É necessário o dolo de perigo para caracterização do crime do art. 130 do Código Penal, ainda que seja a intenção do agente transmitir a doença. Só que a transmissão não é automática, dependendo de muitos fatores. De todo modo, mais adiante, deixarei evidente que a transmissão de HPV jamais poderá ser classificada como doença venérea.

Pedir para que o ex-namorado seja condenado pelo crime de lesão corporal leve (crime de dano) e contágio de doença venérea (crime de perigo) é inaplicável porque o princípio da subsidiariedade impõe o afastamento deste em privilégio àquele. Com efeito, incorre-se in contradictio in terminis que deveria inviabilizar o recebimento da denúncia, isso por força do art. 395, inc. I, do CPP, o que foi corretamente efetivado na origem. No entanto, a Turma Criminal do TJDFT alterou a situação ao receber a denúncia, impedindo que o ex-namorado possa saber efetivamente de qual crime é efetivamente acusado, uma vez que o concurso de crimes, na espécie, é impossível.

3. Transmitir HPV (o vírus da discórdia) não é transmitir doença venérea

O Human Papiloma Virus (HPV) é extremamente comum e contagioso, não apresentando sintomas na maioria dos casos. “Nem mesmo o uso da camisinha pode prevenir totalmente o contágio, que pode acontecer durante a relação sexual ou sexo oral”.[8] Em face do elevado percentual de adultos contaminados, é notório – e o que é notório prescinde de provas – que a Medicina informa que o contágio é praticamente impossível em algumas variantes do vírus e quando a pessoa está assintomática, situação que perdurou com o paciente durante todo namoro que resultou na indevida acusação criminal.

O Ministério da Saúde publicou um Guia prático sobre o HPV, no qual se verifica que existem mais de 150 tipos diferentes de HPV, sendo que “Na maioria dos casos, o HPV não apresenta sintomas e é eliminado pelo organismo espontaneamente”. E, observe-se que o HPV não é transmitido unicamente por via sexual:

6. Como o HPV é transmitido?

O vírus HPV é altamente contagioso, sendo possível contaminar-se com uma única exposição, e a sua transmissão acontece por contato direto com a pele ou mucosa infectada. A principal forma é pela via sexual, que inclui contato oral-genital, genital-genital ou mesmo manual-genital. Portanto, o contágio com o HPV pode ocorrer mesmo na ausência de penetração vaginal ou anal. Também pode haver transmissão durante o parto. Embora seja raro, o vírus pode propagar-se também por meio de contato com a mão.

Como muitas pessoas portadoras do HPV não apresentam nenhum sinal ou sintoma, elas não sabem que são portadoras do vírus, mas podem transmiti-lo.[9]

Tratar o HPV como doença sexualmente transmissível é equivalente a tratar, também a transmissão do HIV (Human Immunodeficiency Virus) como crime do art. 130 do Código Penal. No entanto, conforme ensina a Família Delmanto:

A SIDA (Síndrome de Imunodeficiência Adquirida) não pode ser considerada, rigorosamente, moléstia venérea. A sua transmissão pode se dar por inúmeras formas, tanto por pessoas contaminadas quanto não contaminadas; além da via sexual, pela própria gravidez, pelo uso de material cirúrgico e odontológico contaminados, pelo emprego de seringas usadas, por transfusão sanguínea, pelo ato de efetuar tatuagem ou acupuntura com agulhas infectadas, por agressões com objetos cortantes ou perfurantes contaminados etc.[10]

Veja-se que o Decreto n. 16.300, de 31.12.1923, dispunha: “Art. 185. Para os effeitos deste regulamento serão consideradas doenças venereas a syphilis, a gonorrhéa e o cancro molle ou cancro venereo simples”. Revogado pelo Decreto [s/n.] de 5.9.1991, causa espanto que possamos ampliar o rol pela lacônica expressão: doença sexualmente transmissível.[11] Não é sem propósito que Alberto Silva Franco et al. informam: “Perante nossa lei, na falta de texto expresso, não cremos que seja possível ampliar o catálogo das moléstias venéreas”.[12]

Ainda que deixemos a classificação de doenças venéreas ou sexualmente transmissíveis para as ciências médicas, o HPV, em face das múltiplas possibilidades de transmissão não pode ser assim tratado.

Em busca à Classificação Internacional de Doenças de 2022 (CID-11), verifica-se a CID-A50 Sífilis congênita, CID-A51 Sífilis precoce, CID-A52 Sífilis Tardia, CID-A53 Outras formas e as não especificadas da sífilis, CID-A54 Infecção gonocócica, CID-A55 Linfogranuloma (venéreo) por clamídia, CID-A56 Outras infecções causadas por clamídias transmitidas por via sexual, CID-A57 Cancro mole, CID-A58 Granuloma inguinal, CID-A59 Tricomoníase, CID-A60 Infecções anogenitais pelo vírus do herpes [herpes simples], CID-A63 Outras doenças de transmissão predominante sexuais, não classificadas em outra parte, CID-B20 Doença pelo vírus da imunodeficiência humana [HIV], resultando em doenças parasitárias.[13]

Veja-se que as doenças sexualmente transmissíveis integram o CID-A (de A50 a A63). Depois de muitas outras doenças de pele e de outros órgãos é que localizamos o HIV. Com diversas subclassificações que não indicarei, continuei a verificar o CID-11, encontrando: CID-B21 Doença pelo vírus da imunodeficiência humana [HIV], resultando em neoplasias malignas, CID-B22 Doença pelo vírus da imunodeficiência humana [HIV] resultando em outras doenças especificadas.[14]

O HPV surge muito adiante dentre outros vírus, a saber: “B97 Vírus como causa de doenças classificadas em outros capítulos (...) B97.7 Papilomavírus, como causa de doenças classificadas em outros capítulos”.[15] Resta, portanto, evidente ser incabível classificar a transmissão do HPV, ainda que dolosa, como figura típica do art. 130 do Código Penal.

Quando o ex-namorado conheceu a mulher, ela já poderia ser portadora de HPV, o que faria incidir o crime impossível,[16] eis que o Ministério da Saúde informa:

3. Como o HPV se manifesta?

Na maioria dos casos, o HPV não apresenta sintomas e é eliminado pelo organismo espontaneamente.

O HPV pode ficar no organismo durante anos sem a manifestação de sinais e sintomas. Em uma pequena porcentagem de pessoas, determinados tipos de HPV podem persistir durante um período mais longo, permitindo o desenvolvimento de alterações das células, que podem evoluir para as doenças relacionadas ao vírus. Essas alterações nas células podem causar verrugas genitais, lesão pré-maligna de câncer (também chamada de lesão precursora), vários tipos de cânceres, como os do colo de útero, vagina, vulva, ânus, pênis e orofaringe, bem como a Papilomatose Respiratória Recorrente (PRR).[17]

Exacerbada é a construção do órgão acusador, uma vez que, sem perícia, imputa a transmissão de um vírus sem qualquer elemento que o homem e a mulher portem a mesma variante dele. Também, como os crimes de dano e de perigo são incompatíveis, a imputação dos 2 crimes, em concurso formal, só pode demonstrar apego exagerado do parquet à condenação.

4. Descabimento da verdade sabida, baseada em inacreditável versão da mulher, e crime impossível

O órgão acusador não arrola testemunha. Tem-se apenas a vítima e a certeza de que ela contraiu HPV. No entanto, dizer que o ex-namorado eleito para responder pelos danos por ela sofridos é exagerado.

Não se pode pretender uma suposta verdade sabida, visto que Di Pietro, sobre a processualística administrativa disciplinar, que se orienta pelos princípios da processualística criminal, ensina:

Verdade sabida é o conhecimento pessoal e direto da falta pela autoridade competente para aplicar a pena. É o conceito que consta do art. 271, parágrafo único, do Estatuto Paulista...

Esse dispositivo estatutário não mais prevalece, diante da norma do art. 5º, inc. LV, da Constituição, que exige o contraditório e ampla defesa nos processos administrativos. Mesmo antes da atual Constituição, já se entendia que o princípio da ampla defesa, previsto no artigo 153, § 16, para o processo penal, era aplicável às esferas civil e administrativa.[18]

Veja-se que relações sexuais consentidas se transformam em violência doméstica e familiar, invocando o MPDFT, o seguinte preceito legal:

Art. 5º Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial:

(...)

III - em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação.

O acusado, à ocasião dos fatos, estava apaixonado pela sua ex-namorada. Não tinha qualquer sintoma de ser portador de HPV, portanto, pensava estar curado, fazendo incidir o erro de tipo, haja vista que não tinha dolo. Nesse sentido, Damásio E. de Jesus ensinava:

E se o sujeito, infeccionado, julga-se curado por afirmação médica e pratica relações sexuais, responde por algum crime?

Existe erro de tipo escusável, excludente do dolo e da tipicidade do fato (CP, art. 20, caput). [19]

Feito o tratamento, não tendo qualquer lesão, o paciente acredita não ter transmitido HPV à ex-namorada. Mais ainda, ela informou à autoridade policial que teve relações sexuais após o término do relacionamento com o ex-namorado a quem imputou os danos (entre Nov2018 e Abr2019), segundo ela, utilizando camisinha. No entanto, conforme anteriormente transcrito, o Ministério da Saúde informa que o contágio pode se dar até mesmo na relação sexual com uso de preservativo. Também, não podemos negar a possibilidade da mentira e de estar a mulher anteriormente infectada.

O pior de tudo é que, em seu ímpeto de vingança, ela iniciou tratamento psicológico em Fev2018, por ocasião do início do namoro e após o seu término pediu laudo psicológico em que só se evidencia que ela tem problemas psicológicos graves porque a mãe também é problemática e praticou abandono material ao ponto de ter ela passado fome na infância.

Ainda nos primeiros contatos com a Psicóloga, no início de 2018, [ela] manifestava “preocupação e angústia em relação ao histórico de situações de abuso familiar”. (id. ...) É com base unicamente na palavra dessa pessoa que o MPDFT deseja a condenação do acusado por dois crimes, um de perigo – crime-meio – e um de dano – crime-fim.

Se imputa o crime de perigo doloso e o de dano também doloso, o que esbarra no princípio da subsidiariedade, até porque não havendo dolo para a transmissão, haveria lesão corporal negligente (CP, art. 129, § 6º). No caso, nem isso, visto que o acusado pensava não poder transmitir.

Os relatos contidos no laudo se comparados com os do boletim de ocorrência transcrito, evidenciam que a ex-namorada faz referência ao aparecimento dos sintomas de lesões por HPV após o término do namoro, tendo registrado a ocorrência policial, em efetiva vingança privada, remontando instituição criminal anterior à escrita, no dia que o paciente lhe informou não poder pagar a vacina contra HPV, 30.4.2019.

Sequer há como afirmar que o acusado infectou sua ex-namorada. Por oportuno, é conveniente expor caso análogo:

"Quando recebi a carta com o diagnóstico de HPV, eu não sabia o que era, então procurei na internet e descobri que era uma doença sexualmente transmissível. Pensei imediatamente então que meu parceiro tinha me traído", disse Laura Flaherty, de 31 anos, cuja história é muito parecida com a de muitas entrevistadas.

"Eu não sabia nada sobre o assunto. Me senti suja. Levei um tempo para entender que o vírus pode ficar inativo por muito tempo e que é bastante comum. Ninguém próximo a mim sabia disso", acrescentou Flaherty, que foi diagnosticada com câncer do colo do útero em 2016.[20]

O HPV é um parente próximo do HIV, o qual pode causar câncer de útero. De todo modo, no caso concreto, a ex-namorada poderia estar contaminada antes do início do relacionamento, situação em que haverá crime impossível. Nesse sentido:

Na mesma esteira, haverá crime impossível se a pessoa com a qual o agente mantém a relação sexual ou pratica ato libidinoso já estiver contaminada, situação em que o perigo de contágio não existirá.[21]

Não há como se afirmar ser o ex-namorado o transmissor se não é possível saber quando a sua mulher contraiu o HPV. Mais ainda, a imputação é alternativa ao requerer a condenação por dois crimes incompatíveis (art. 129 e art. 130 do CP), eis que um excluirá o outro. Nesse sentido:

Os crimes de perigo são sempre subsidiários em relação aos correspondentes crimes de dano. Consequência haverá concurso aparente de normas, que se resolve pela subsidiariedade, sempre que, da exposição de perigo, resultar efetivo dano, ou seja a transmissão da moléstia. Se do ponto de vista subjetivo houve apenas dolo de perigo ou culpa, o agente responderá por lesões corporais culposas tão somente, se o contágio se opera.[22]

Rogério Sanches e Ronaldo Batista, embora repudiando a imputação alternativa subjetiva, admitem a imputação alternativa objetiva.[23] Porém, no caso vertente, se há dolo é de perigo. Pior, nem isso porque o paciente pensava estar – e está – assintomático e o crime de perigo exige dolo. Assim, evidente a atipicidade da conduta.

A decisão ilegal sustentar que o fato está determinado, sem expor se há dolo de dano ou dolo de perigo, transforma-se em incabível. Sequer se indica que o HPV contraído pela mulher é o mesmo que o ex-namorado foi acometido no passado (o vírus continua no corpo dele, estando temporariamente inativo), até porque “é necessário exame do acusado para a comprovação de que foi ele o causador da transmissão da moléstia à vítima que se positivou infectada”.[24]

5. Inexistência de violência doméstica

André Estevam esclarece que os crimes dos arts. 130-136 do CP, em regra, são subsidiários.[25] Ora, se o dano é negligente (ausência do dever de cuidado), não há dolo para o crime de dano, inexistindo violência doméstica a exigir a iniciativa pública incondicionada.

A denúncia, na origem, foi inicialmente rejeitada pela incompatibilidade, em face da incidência cumulativa dos arts. 130 e 129 do CP. Essa incompatibilidade resta extreme de dúvidas. De outro modo, não demonstrado o dolo de dano e sim o dolo de perigo com dano negligente, evidentemente se afastarão os rigores da Lei n. 11.340, de 7.8.2006.

Não se pode determinar quando a ex-namorada do acusado foi contaminada, uma vez que ela tinha vida sexual ativa desde muitos anos antes da primeira relação sexual com ele. Mais, ainda, sequer se sabe se os 2 foram contaminados pela mesma variante do HPV.

Conclusão

No caso concreto, nada há que justifique o pedido da ex-namorada do acusado a manter o sigilo, senão o seu próprio desequilíbrio: não conseguindo superar o término de um relacionamento, o transformou na guerra da própria vida, o que é lamentável. Desse modo, o pedido de sigilo não encontra qualquer amparo legal, eis que não há violência doméstica em discussão. Basta ela confessar que agiu por paixão e acabará com tudo. Apenas o íntimo desejo de vingança da mulher pode trazer essa luta infame por condenação.

Nos crimes contra a dignidade social, bem como nos crimes de violência doméstica, a palavra da vítima tem maior prestígio na jurisprudência. No entanto, o livre convencimento do julgador deve se dar mediante persuasão racional.

Uma pessoa atuar com dignidade ao confessar para a namorada ser portador de HIV ou HPV, em caso de contágio dela, não é suficiente para se afirmar que essa pessoa foi que transmitiu o vírus a ela.

Por fim, não tendo sido realizada perícia, eventual condenação será absolutamente nula por faltar exame de corpo de delito no crime que deixa vestígio (Código de Processo Penal, art. 564, inc. III, alínea “b”).



[1] JARDIM, Afrânio Silva. Direito processual penal. 11. ed. Rio de Janeiro, Forense, 2003. p. 149.

[2] Ibidem. p. 158.

[3] DEZEM, Guilherme Madeira. Curso de processo penal. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017. p. 282.

[4] TÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de direito processual penal. 11. ed. Salvador: JusPODIVM, 2016. p. 286.

[5] DEMERCIAN, Pedro Henrique; MALULY, Jorge Assaf. Curso de processo penal. 5. ed. Rio de Janeiro: 2009. p. p. 112.

[6] Estou evitando a identificação dos envolvidos, razão de suprimir alguns dados essenciais à pesquisa científica.

[7] HUNGRIA, Nelson. Comentários ao código penal. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1958. v. 5, p. 406.

[8] BBC NEWS. Brasil. 5 coisas que você deveria saber sobre o vírus sexualmente transmissível que afeta 80% dos adultos. 15.2.2017. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/geral-38959399>. Acesso em: 25.8.2021, às 22h45.

[9] BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Guia prático sobre o HPV: guia de perguntas e respostas para profissional de saúde. Brasília: MS, 2014. Disponível em: <https://portalarquivos2.saude.gov.br/images/pdf/2014/marco/07/guia-perguntas-repostas-MS-HPV-profissionais-saude2.pdf>. Acesso em: 26.8.2021, às 14h32.

[10] DELMANTO, Celso et al. Código penal comentado. 6. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 282.

[11] COSTA, Álvaro Mayrink da. Direito penal: parte especial. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001. p. 272.

[12] FRANCO, Alberto Silva et al. Código penal e sua interpretação jurisprudencial: parte especial. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1197. c. 1, t. 2, p. 2185.

[14] Disponível em: <qualcid.com.br/pesquisa/16/18/>. Acesso em: 12.4.2022, das 11h45 às 12h.

[15] Disponível em: <https://www.qualcid.com.br/pesquisa/26/29/>. Acesso em: 12.4.2022, às 13h45.

[16] JESUS, Damásio Evangelista de. Direito penal: parte especial. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 1997. v. 2, p. 151.

[17] BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Guia prático sobre o HPV: guia de perguntas e respostas para profissional de saúde. Brasília: MS, 2014. Disponível em: <https://portalarquivos2.saude.gov.br/images/pdf/2014/marco/07/guia-perguntas-repostas-MS-HPV-profissionais-saude2.pdf>. Acesso em: 26.8.2021, às 14h32.

[18] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 17. ed. São Paulo: Atlas, 2004. p. 546.

[19] JESUS, Damásio Evangelista de. Direito penal: parte especial. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 1997. v. 2, p. 150.

[20] IVES, Laurel. 4 mitos sobre o HPV, vírus de transmissão sexual que afeta maioria das pessoas. BBC News, 23.9.2018. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/geral-45546135>. Acesso em: 26.8.2021, às 18h48.

[21] CUNHA, Rogério Sanches. Manual de direito penal: parte especial. 12. ed. Salvador: JusPODIVM, 2020. p. 149.

[22] FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal: parte especial.  3. ed. São Paulo: José Bushatsky, 196. v. 1, p. 165.

[23] CUNHA, Rogério Sanches; PINTO, Ronaldo Batista. Código de processo penal e lei de execução penal comentados: artigo por artigo. 4. ed. Salvador: JusPODVIM, 2020. p. 223.

[24] MIRABETE, Júlio Fabbrini; FABBRINI, Renato Nascimento. Manual de direito penal: parte especial. 30. ed. São Paulo: Atlas, 2013. p. 93.

[25] ESTEFAM, André. Direito penal: parte especial (arts. 121 a 234-B). 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 240.