sexta-feira, 11 de fevereiro de 2022

Testamento vital pode ser uma boa opção

O testamento vital é uma disposição de última vontade em que o testador declara como deseja que seja o fim da sua vida, no caso de não ter mais capacidade para decidir em face de quadro terminal.

Um amigo me convidou para participar de um grupo em uma rede social em que o seu foco é a discussão sobre a eutanásia. Então, na mesma rede social, enviei a ele a seguinte mensagem:

[nome], promovi uma ação para consertar a certidão de nascimento da Meire, uma pessoa que está conosco desde Jan2001. Com isso, usei uma central de certidões para pedir a nova certidão de nascimento retificada.

Veja, o que recebi hoje - pulou na tela do meu computador - um chamamento ao testamento vital. (Inseri então o link: aqui)

Acerca da vida e da morte, tenho a perspectiva que está inserida na Bíblia, livro de Eclesiastes, Capítulo 9, in verbis:

9. Desfrute a vida com a mulher a quem você ama, todos os dias desta vida sem sentido que Deus dá a você debaixo do sol; todos os seus dias sem sentido! Pois essa é a sua recompensa na vida pelo seu árduo trabalho debaixo do sol.

10. O que as suas mãos tiverem que fazer, que o façam com toda a sua força, pois na sepultura, para onde você vai, não há atividade nem planejamento, não há conhecimento nem sabedoria.

Por acreditar que durante a morte o que há é nada, isso no sentido de contrário ao de existir alguma coisa, entendo que ela pode ser menos pior que uma vida completamente infeliz. No entanto, neste blog já publiquei contra o suicídio, por entender que ele é uma violência contra quem ama o suicida, onde escrevi:

O suicídio é um ato irresponsável contra aqueles que amam o suicida. Faz muitas pessoas sofrerem por sua coragem (ou fraqueza), mas é sempre contrário ao destino do homem:

- Uma luta pela vida!

Embora defenda a luta pela vida, na defesa da dignidade da pessoa humana, sou defensor do suicídio assistido, da vida digna até mesmo quando a escolha é pelo fim de si mesmo. (aqui)

Retorno ao testamento vital porque sou até mesmo a favor da eutanásia, sendo oportuno tratar previamente de alguns conceitos:

EUTANÁSIA. Derivado do grego eu (bom) e thanatos (morte) quer significar, vulgarmente, a boa morte, a morte calma, a morte doce e tranquila.

Juridicamente, entende-se o direito de matar ou o direito de morrer, em virtude de razão que possa justificar semelhante morte, em regra, provocada para o término de sofrimentos, ou por motivo de seleção, ou de eugenia.[1]

Embora a cultura judaico-cristã seja contrária ao suicídio e à eutanásia, o Rei Saul tentou suicídio (Samuel I: 31:4) e Amalequita completou a sua morte em eutanásia (Samuel II: 1:9-10). Assim, vê-se que nem mesmo a Bíblia reprova plenamente o suicídio e a eutanásia.

DISTANÁSIA. É o prolongamento da vida por meio de tratamento e aparelhos ineficazes à recuperação da pessoa.[2]

O que percebo da distanásia é o sentimento torpe de quem não pode perder a vida do moribundo, seja por dependência afetiva ou econômica. Um sentimento de amor não pode ser assim. Mas, a distanásia prevalece em nosso meio.

ORTOTANÁSIA. Será a interrupção de tratamentos inúteis para manutenção de uma vida inviável.

Eu, que vou muito além, certamente defendo a ortotanásia. Para quê serve manter o sofrimento da pessoa amada?

Defendo a ausência de egoísmo nesse momento. Pior, muitos são mantidos por interesses diversos, especialmente financeiros. É o sofrimento como produto de lucro. Odeio isso!

Digo que a ortotanásia parece bonitinha, a distanásia é sofrimento egoístico de quem não entende que a vida exige dignidade mínima (ou quer se aproveitar do moribundo), enquanto a eutanásia é bíblica e deve ser aceita como elogiável ao contrário de ser crime.

A supremacia da vontade do testador é importante porque o Direito das Sucessões se orienta pelos seguintes princípios básicos: (a) prevalece a vontade do testador; (b) supletividade da sucessão legítima; (c) igualdade das legítimas. No entanto, quando assim nos referimos estamos pensando apenas em sucessão mortis causa patrimonial. Nesse aspecto, o nosso Código Civil foi adiante ao dispor:

Art. 1.857. Toda pessoa capaz pode dispor, por testamento, da totalidade dos seus bens, ou de parte deles, para depois de sua morte.

§ 1o A legítima dos herdeiros necessários não poderá ser incluída no testamento.

§ 2o São válidas as disposições testamentárias de caráter não patrimonial, ainda que o testador somente a elas se tenha limitado.

É nesse sentido que digo que devemos retomar o Direito Romano antigo para o qual só existia sucessão mortis causa testamentária, eis que deveria prevalecer a última vontade do autor da herança. Assim deve ser com os sentimentos, com os valores personalíssimos, os quais não devem ser transferidos à família.

Algumas famílias, por sentimento religioso ultrapassado, são contra a cremação, quando o crematório é muito mais higiênico e preservador do meio ambiente do que os cemitérios. Ademais, mesmo a Bíblia já informa que eventual vida-pós-vida será dos puros transformados.[3] Portanto, nem mesmo biblicamente encontramos objeção a cremar.

Concluo dizendo que o testamento vital é oportuno e o testador pode declarar o desejo de que não seja prolongada a vida de sofrimento em estado terminal, bem como a forma do velório ou a sua proibição, devendo prevalecer a sua vontade.


[1] E SILVA, De Plácido. Vocabulário jurídico. 20. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p. 328.

[2] HUNGRIA, Nelson. Ortotanásia ou eutanásia por omissão. Rio de Janeiro: Revista Forense, v. 150. p. 516, nov-dez 1953. Apud SOUSA, Deusdedith. Eutanásia, Orototanásia e distanásia. Fortaleza: Revista Pensar, v. 3, 1995. p. 150-159. Disponível em: <https://periodicos.unifor.br/rpen/article/viewFile/495/1919>. Acesso em: 10.2.2022, às 17h38.

[3] Filipenses 3: “21. Pelo poder que o capacita a colocar todas as coisas debaixo do seu domínio, ele transformará os nossos corpos humilhados, tornando-os semelhantes ao seu corpo glorioso”.

sábado, 5 de fevereiro de 2022

ESQUERDA-DIREITA, UMA VISÃO REDUCIONISTA DA SOCIEDADE. COISA DE IDIOTAS?

 1. INTRODUÇÃO

O presente texto visa a demonstrar o quanto é necessário de conhecimento para não ser um completo idiota.

Será apenas uma provocação ao estudo, visto que é impossível, em poucas linhas, fazer tal análise com a profundidade que merece. De todo modo, espero que pessoas entendam um pouco da nossa proposta, contrária a reduzir o mundo a uma bipolaridade inaceitável.

2. UMA SOCIEDADE DOTADA DE INÚMEROS (SUB)SISTEMAS

Na minha tese de doutorado, procurei demonstrar que a sociedade é complexa, dotada de inúmeros (sub)sistemas intercomunicantes. Tal posição está presente, desde Émile Durkheim (1868-1917) a Max Weber (1864-1920), passando pelo grande economista/sociólogo Vilfredo Pareto (1848-1923). Jürgen Habermas (nascido em 1939) e Niklas Lumann (1927-1998), discorreram profundamente sobre a sociedade complexa, a qual tem intensa comunicação entre os seus (sub) sistemas.

Talcott Parsons (1902-1979) foi Professor de Habermas e de Luhmann, embora este último tenha migrado para outra forma de comunicação sistêmica, advinda da Biologia e desenvolvida pelos chilenos Humberto Maturana (1928-2021) e Francisco Varela (1946-2001).

Seja por comunicação por um processo de input-output, ou seja pela produção da autopoesis, toda comunicação é sistêmica, envolvendo inúmeros (sub)sistemas sociais (religioso, econômico, desportista, educacional etc.), o que torna nula a bipolaridade esquerda-direita.

3. ERRO CULTURAL DE MUITOS BRASILEIROS

Eu me preocupo com o momento porque polarizamos o Brasil, por influência do trumpismo e olvidamos a visão sistêmica da sociedade para agasalhar o discurso bipolar, calcado na oposição esquerda-direita. Muito do que temos decorre da propagação das ideias de um homem, inicialmente astrólogo, depois autoproclamado repórter e, por fim, filósofo, um ninguém que sequer cursou o ensino fundamental.

Esse ninguém, que sequer soube que Antonio Sebastiano Francesco Gramsci (1891-1937), membro do Partido Socialista Italiano, pouco produziu academicamente. Gramsci escrevia para jornais com forte vertente política, sendo que produziu mais enquanto estava preso (1926-1934), cujos escritos políticos foram publicados postumamente. Ele idealizou a hegemonia cultural em um momento conturbado da história, em que o fascismo predominava na Itália.

Após a revolução francesa (1789-1799), os parlamentares eram organizados de forma que os representantes da aristocracia se sentavam à direita e os comuns à esquerda do orador. Enquanto os aristocratas defendiam os privilégios da aristocracia, da igreja e a sociedade de classe daquele momento (eram conservadores), a esquerda representava os interesses da burguesia (aquela que pagava a conta dos aristocratas), defendendo o republicanismo, o secularismo e o livre mercado. Ora, não há nada mais ultrapassado do que esse modelo. Conforme Glauco dizia a Sócrates: “só está presente em nossos discursos”. [1]

Após ter inserido esse texto aqui, um grande amigo – um intelectual -, via WhatsApp, fez a seguinte provocação:

Meu amigo, a dicotomia esquerda-direita obviamente não esgota a complexidade da política, e isso é trivial por demais. Nem precisa invocar Luhmann para demostrar isso. A propósito, acho que a teoria de Luhmann muitas vezes resvala em falácia naturalista, embora também tenha o mérito de fazer a mesma coisa que a dicotomia direitaXesquerda faz: a proposição de um modelo epistemológico que auxilia na compreensão do intrincado fenômeno social. Já conversamos sobre isso, e a minha única conclusão absolutamente definitiva é que precisamos retomar esse assunto de um modo academicamente adequado, ou seja, com um bom chope de companhia, algo que estou morrendo de saudade de fazer com o amigo, mas que só me atreverei a fazer após livrarmo-nos de pelo menos uma das duas pragas que estão destruindo nosso povo. Agora, com todo o respeito, a defesa da inexistência de direita e esquerda é discurso de direitista envergonhado.

E, após alguns contatos curtos, isso aos 45 minutos de hoje, 6.2.2022, ele prosseguiu:

Todo bolsonarista é fanático, não propriamente idiota (pois idiota é, por definição, quem procura se alhear da política). Fanáticos recusam a realidade; apenas reproduzem e obedecem cega e acriticamente o que algum messias, pastor ou congênere dita. A subsistência dessa seita bolsonarista será um entre tantos prejuízos que esse período maldito legará. Vou dar a você uma pista de que a sua tese está equivocada: aposto o que você quiser que os que concordarão com ela serão todos do que eu insisto em chamar de direita.

Repare: noves fora os fanáticos, em qualquer debate político haverá quem defenda uma maior intervenção estatal para planejar esforços para distribuir o mais igualitariamente os recursos produzidos pela sociedade, e outros que acreditam que isso é bobagem, que o melhor estado é o que menos governa, e que o desenvolvimento econômico acaba por gerar melhorias para toda a sociedade, sendo a desigualdade algo até desejável, por representar uma justa distribuição de riquezas conforme o mérito e esforço pessoal de cada um.

Claro que estou simplificando e que há uma infinidade de nuances entre esses pontos de vista, mas reconheça que são visões de mundo que, de um modo ou outro, prevalecem nas variadas concepções.

Se você não gosta de chamar de direita e esquerda, chame, sei lá, de azul e rosa, ou de Flamengo e Fluminense, (...), mas, convenhamos, que essa dicotomia existe, existe. E você a nega porque tem vergonha - justificada - do lado a que está filiado.

Por favor, não se ofenda, pois este não é o meu propósito. Estava com uma saudade de debater política; ninguém mais o faz. Gosto particularmente de fazê-lo com você, que tem minha admiração intelectual, não obstante divergirmos (por eu ser de esquerda, e você de direita kkkkkkk).

Essa é uma discussão um tanto complexa. Estou, mais ou menos, como Norberto Bobbio (1909-2004), ele escreveu que sempre se colocou como sendo de esquerda, conforme se vê:

Sempre me considerei um homem de esquerda, portanto sempre atribuí ao termo “esquerda” uma conotação positiva, mesmo agora em que a esquerda é cada vez mais hostilizada, e o termo “direita”, uma conotação negativa, mesmo hoje em que a direita está sendo amplamente valorizada. A razão fundamental pela qual em algumas épocas da minha vida tive algum interesse pela política, ou, com outras palavras, senti, senão o dever, palavra ambiciosa demais, ao menos a exigência de me ocupar da política  e algumas vezes, embora raramente, de desenvolver atividade política, sempre foi o desconforto diante do espetáculo das enormes desigualdades, tão desproporcionais quanto injustificadas, entre ricos e pobres, entre quem está em cima e quem está embaixo na escala social, entre tem quem poder, vale dizer, capacidade de determinar o comportamento dos outros, seja na esfera econômica, seja na esfera política e ideológica, e quem não tem.[2]

Não tenho a experiência infantil de Bobbio, que continua tratando da sua infância burguesa e da distinção da realidade entre seus colegas de colégio e os pobres que conhecia. Não gosto também de engessar o pensamento e cair em “falácia jusnaturalista”, conforme o meu amigo afirmou sobre o pensamento de Luhmann. Pensando assim, a ação comunicativa de Habermas também cai em uma falácia jusnaturalista ao estabelecer um consenso pressuposto.

O fato é que é muito complicado defender que em política haja uma posição intervencionista no mercado. Mas, também, é preocupante simplesmente abandonar as pessoas e deixar que as desigualdades cheguem ao extremo.

CONCLUSÃO

Não farei aqui uma conclusão plena porque o texto é muito sucinto para a sua ampla complexidade. Somente se eu fosse bipolar poderia ver uma sociedade sem múltiplos (sub)sistemas.

Não podemos reduzir o mundo a dois modelos de mercado (socialismo e capitalismo). Não podemos ver o mundo como idiotas, que não percebem a sua complexidade em múltiplos (sub)sistemas que se comunicam.

Assim como Platão sabia que a república ideal, da qual conversava com os seus amigos não estava destinada a existir, também sei que não conseguiremos construir o Brasil ideal. Mas, espero que observemos todos os sistemas da sociedade complexa, não apenas os (sub)sistemas econômico e social para estabelecermos a nossa democracia.

Brasília, 6 de fevereiro de 2022



[1] BOBBIO, Norberto. Direita e esquerda: razões e significados de uma distinção política. 3. ed. São Paulo: Unesp, 2011. p. 139.

[2] Ibidem. p. 140-141. É interessante notar que o amigo que cito e que me provocou foi quem me presentou com o livro de Bobbio.