quinta-feira, 8 de abril de 2021

A fé enquanto droga: análise jurídica de sustentação oral "terrivelmente evangélica"

1. FÉ E DROGA

Erasmo de Rotterdam critica Paulo de Tarso (5 a 67), quanto a imprecisão do seu conceito de fé, quando expressou: “A fé é a substância da coisa esperada e o argumento da que não aparece”.[1]

No vernáculo, fé é “crença religiosa; conjunto de dogmas e doutrina que constituem um culto; a primeira virtude teologal; firmeza na execução de uma promessa ou de um compromisso”.

Já a palavra droga é “qualquer substância ou ingrediente que se usa em farmácia, em tinturaria etc.”, o que não deve ser confundido com o conceito da Lei n. 11.343, de 23.8.2006, que estabelece em seu art. 1º:

Parágrafo único. Para fins desta Lei, consideram-se como drogas as substâncias ou os produtos capazes de causar dependência, assim especificados em lei ou relacionados em listas atualizadas periodicamente pelo Poder Executivo da União.

Vê-se que a lei de combate a psicotrópicos restringe o conceito de drogas, daí eu ter escrito academicamente alhures:

Em sentido amplo, droga é tudo aquilo que tem pouco valor, é desagradável, todo medicamento, substância entorpecente, alucinante, excitante etc. ou, finalmente, qualquer produto que se usa em farmácia ou tinturaria. É com essa perspectiva que os psicólogos dizem que até a comida pode constituir a droga de uma pessoa que esteja em conflito e que busque de uma fuga.

Em meus estudos cheguei à conclusão de que o homem depende de mecanismos para fugir de seus problemas e, às vezes, sua droga pode ser a religiosidade, a prática de atividades físicas, esportes radicais, o trabalho etc. O importante é que ele esteja fugindo de seus problemas. Desse modo, a primeira dúvida em que me coloco é a concernente ao objetivo de ressocialização do drogado, eis que, na maioria das vezes, ele estará socialmente adaptado.[2][3]

A inspiração para escrever o presente artigo foram os discursos de ontem dos “terrivelmente evangélicos”, André Mendonça, acompanhado pelo seu concorrente, Augusto Aras, sendo que o primeiro afirmou:

Sobre essas medidas que estão sendo adotadas regionalmente. Não há cristianismo sem vida em comunidade, sem a casa de Deus e sem o “dia do Senhor”. Por isso, os verdadeiros cristãos não estão dispostos jamais a matar por sua fé, mas estão sempre dispostos a morrer para garantir a liberdade de religião e de culto.[4]

No referendo de medida cautelar na Arguição de Descumprimento a Preceito Fundamental (ADPF) n. 811, ajuizada pelo Partido Social Democrático (PSD), foi proferida a frase “terrivelmente evangélica” de um dos concorrentes à vaga do Min. Marco Aurélio Mello que se aposentará compulsoriamente em 5.7.2021.[5]

2. VAGA “TERRIVELMENTE EVANGÉLICA”

A Corte Constitucional brasileira, Supremo Tribunal Federal, tem estrutura diversa da maioria dos países civilizados, visto que os seus Juízes são vitalícios e nomeados pelo Presidente da República, com simples referendo do Senado Federal, ainda que com maioria qualificada deste (maioria absoluta dos seus membros). Alhures, o mandato é a regra e, ainda que de forma indireta, a escolha é a eletiva.

O nosso Presidente da República, eleito em uma onda complicada, com forte apoio das bancadas parlamentares “da bala”, “ruralista” e “da Bíblia” afirmou, em 10.7.2019, que o próximo Ministro do STF será “terrivelmente evangélico”. Não cumpriu a promessa, como é o seu costume, visto que nomeou o Ministro Kassio Nunes Marques (nascido em Teresina, em 16.5.1972) para o cargo, investido em 5.11.2020, o que desperta a concorrência entre o Procurador-Geral da República e o Advogado-Geral da União para a próxima vaga do STF, que se abrirá em 5.7.2021.

3. PROCURADOR-GERAL DA REPÚBLICA E ADVOGADO-GERAL DA UNIÃO TEM STATUS DE MINISTROS, MAS NÃO OS SÃO

O Procurador-Geral da República e o Advogado-Geral da União estão concorrendo a uma vaga de Ministro do STF porque não o são. Com efeito, sequer integram o Poder Executivo.

Sobre o Ministério Público, academicamente, já afirmei alhures sobre diversas posições que existem sobre a sua natureza jurídica, a saber: (a) parte no processo penal; (b) representante do Poder Executivo; (c) Poder de Justiça; (d) 4º Poder. Então, afirmei:

...Todavia, o que realmente interessa é sua independência, visto que deve estar subordinado unicamente ao Estado de Direito.[6] Não obstante isso, da forma que está na Constituição Federal, o Ministério Público é um órgão sui generis, pois não está classificado em nenhum dos poderes, mas com atividades de natureza administrativa.[7]

A Constituição Federal é clara ao distinguir, dentre as atribuições privativas do Presidente da República delegáveis, os seus Ministros do Procurador-Geral da República e do Advogado-Geral da União, em seu art. 84, in verbis:

Parágrafo único. O Presidente da República poderá delegar as atribuições mencionadas nos incisos VI, XII e XXV, primeira parte, aos Ministros de Estado, ao Procurador-Geral da República ou ao Advogado-Geral da União, que observarão os limites traçados nas respectivas delegações.

Observe-se que a Constituição Federal distingue o Ministro de Estado dos ocupantes dos cargos que concorrem a Ministros do STF. Eles pretendem ser Ministros porque sabem que não os são.

O intérprete não pode equiparar o que a lei distinguiu, nem a legislação infraconstitucional pode igualar o que a Constituição diferenciou. Por isso, é claramente inconstitucional o art. 2º, inc. IV, da Medida Provisória n. 870, de 1.1.2019, que inclui o Advogado-Geral da União como integrante da Presidência da República. Mas, a norma ressalvou:

Art. 20. São Ministros de Estado: (...) VI - o Advogado-Geral da União, até que seja aprovada emenda constitucional para incluí-lo no rol das alíneas “c” e “d” do inciso I do caput do art. 102 da Constituição; e

Essa medida provisória foi convertida na Lei n. 13.844, de 18.6.2019, que mantem a referida disposição o que é manifestamente inconstitucional. Isso será demonstrado a seguir.

4. INCONSTITUCIONALIDADE POR AUSÊNCIA DE LEI COMPLEMENTAR

A lei ordinária não pode organizar a AGU, nem o Ministério Público, matéria reservada à lei complementar (Constituição Federal, art. 68, § 1º, inc. I). A AGU foi criada pela LC n. 73, de 10.2.1993, e o MP pela LC n. 75, de 20.5.1993.

Organizar qualquer das duas instituições por lei ordinária será inconstitucional. A atribuição do Advogado-Geral da União e a Atribuição do Procurador-Geral da República não poderá impor a eles serem pelegos do Presidente da República. Ontem, 7.4.2021, o dois se mostraram lacaios do Presidente da República.

Temos que demonstrar a nossa independência institucional, ao contrário de sermos falsos defensores de direitos fundamentais, quando sabemos que aquilo que defendemos são interesses particulares. Na discussão vertente, defendem o cargo de Ministro.

CONCLUSÃO

O Min. Nunes Marques estar pagando uma dívida ao Presidente da República me envergonha. Pior é o Procurador-Geral da República e o Advogado-Geral da União serem tão venais quanto demonstram as suas sustentações orais. Tudo para alçarem ao cargo de Ministro. Caso não sejam venais, são estranhos!



[1] ROTERDAM, Erasmo. Elogio da loucura. Rio de Janeiro: Ediouro, Coleção Universidade de Bolso, [1985?]. p. 102. Isso é uma outra tradução de Hebreus 11:1: “Ora, a fé é o firme fundamento das coisas que se esperam, e a prova das coisas que se não veem”.

[2] Só a título de exemplo, ..., um ator famoso, foi encontrado com psicotrópico ilícito no dia 17.4.2004. Ele continuou sendo considerado um ídolo e representando papéis expressivos em telenovelas da maior emissora de televisão do Brasil, o que demonstra estar ele integrado ao sistema social e não ter se desviado dele, não obstante o caso policial que o envolveu. [Retirei o nome do ator porque todos têm direito ao esquecimento]

[3] MESQUITA JÚNIOR, Sidio Rosa de. Comentários à lei antidrogas: Lei n. 11.343, de 23.8.2006. São Paulo: Atlas, 2007. p. 1-2.

[4] BENITES, Afonso. Procurador-Geral e chefe da AGU fazem pregação no STF em busca de vaga “terrivelmente evangélica” prometida por Bolsonaro: em julgamento, Augusto Aras e André Mendonça, cotados pelo Planalto para posto no Supremo, fazem defesa da liberação de cultos e missas em pleno auge da pandemia. Gilmar Mendes diz que a Constituição não tutela direito à morte. Análise será retomada nesta quinta. Madrid: El Pais, Pandemia de Coronavírus, 7.4.2021, 22h13. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2021-04-08/procurador-geral-e-chefe-da-agu-fazem-pregacao-no-stf-em-busca-da-vaga-terrivelmente-evangelica-prometida-por-bolsonaro.html>.

[5] BRASIL. STF. Notícias STF. Ministro Marco Aurélio Mello informa ao STF que vai se aposentar em 5 de julho. 30.3.2021. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=463228>. Acesso em: 8.4.2021, às 17h.

[6] MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 5. ed. São Paulo: Atlas, 1999. p. 447.

[7] MESQUITA JÚNIOR, Sidio Rosa de. Execução Criminal: teoria e prática. 7. ed. São Paulo: Atlas, 2014. p. 218.