segunda-feira, 26 de março de 2018

Nos crimes contra a dignidade sexual, especialmente de pessoas vulneráveis, a palavra da vítima ganha destaque. Mas, isso é bom?


Nos crimes contra a dignidade sexual, especialmente nos crimes contra pessoas vulneráveis, a palavra da vítima ganha destaque. Ocorre que é impossível extrair a verdade real valendo-se exclusivamente de provas pessoais, visto que as pessoas não relatam os fatos, mas o que puderem apreender deles, inserindo uma carga valorativa pessoal.
O Superior Tribunal de Justiça tem jurisprudência remansosa no sentido de que a palavra da vítima ganha especial relevo para o esclarecimento dos fatos em crimes de violência doméstica contra mulher e crimes contra a liberdade sexual, mormente porque quase sempre ocorrem na clandestinidade.[1] É necessário cuidado para que não se condenem pessoas inocentes sem o devido lastro probatório, visto que a vítima pode errar.
Vítima não é testemunha, o que fica bem destacado no Código Processo Penal, sendo que crianças e adolescentes podem ser acometidas por um transtorno psicológico denominado Síndrome de Münchhausen. Tal síndrome me foi apresentada pelo Prof. Dr. Fábio Libório e, em face da repercussão dela nos meus estudos e casos práticos, resolvi pesquisar.
O transtorno pode se iniciar aos 5 anos de idade e perdura, mais frequentemente, até os 21 anos de idade. No entanto, há quem diga que a síndrome é mais frequente entre adultos. Não podemos nos esquecer, no entanto, que muitas vezes, a síndrome do adulto é transferida às crianças.
Em apertada síntese, o nome da síndrome decorre de Karl Friedrich Hieronymus von Münchhausen (1720-1979), um barão conhecido pelas mentiras que contava. É daí decorre o reconhecimento do “transtorno da mentira”, in verbis:
A síndrome de Munchausen é, portanto, uma doença psiquiátrica em que o paciente, de forma compulsiva e deliberada, inventa, simula ou causa sintomas de doenças sem que haja uma vantagem óbvia para tal atitude que não a de obter cuidados médicos e de enfermagem. Meadow, em 1977, observou que alguns pais adotavam a mesma postura, porém utilizavam crianças para atingir aquele objetivo. Foi, então, acrescentado o termo “por transferência” (ou “por procuração” ou “by proxy”) ao nome da síndrome, quando o mentiroso não é o próprio paciente, mas um parente, quase sempre a mãe (85% a 95%), que persistente ou intermitentemente produz (inventa, simula ou provoca), de forma intencional, sintomas em seu filho, fazendo com que seja considerado doente, podendo eventualmente causar-lhe uma doença, colocando-o em risco e em situação que requeira investigação e tratamento.[2]
Como podemos acreditar em vítimas que poderão estar fantasiando, acometidas por um transtorno psicológico e, às vezes, especialmente nos supostos crimes em que há separação dos pais, o transtorno pode se dar por transferência.
O Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT), sob o título “Conhecendo as faces da violência”, publicou:
2.4 Síndrome de Munchausen por procuração: é definida como a situação na qual a criança é levada para cuidados médicos devido a sintomas e/ou sinais inventados ou provocados pelos responsáveis, que podem ser caracterizados como violências físicas (exames complementares desnecessários, uso de medicamentos, ingestão forçada de líquidos etc.) e psicológicas (inúmeras consultas e internações, por exemplo).[3]
O TJDFT reconhece que a Síndrome de Münchhausen não se restringe a isso que expôs, tanto é que retorna à referência à Síndrome de Münchhausen por procuração, evidenciando existir uma que não depende da transferência de outrem.[4] Ademais, síndrome poderá se iniciar quando a pessoa ainda for criança e ela poderá fantasiar, especialmente se for mulher. Mas, essa síndrome, descoberta por Richard Aln John Asher (1912-1969), transcende aos pequenos apontamentos feitos, sendo importantes os sintomas, a saber:
A Síndrome de Müchhausen é mais comum em mulheres, pode começar em qualquer idade, geralmente ocorre na vida adulta, esses em seu histórico também relatam terem sofrido abusos na infância, ou terem sofrido uma doença grave ou mesmo ter uma dinâmica familiar seriamente disfuncional, terem sido testemunha de violência doméstica praticada contra a mãe, terem sofrido rejeição dos pais ou familiares, terem sido abandonadas em instituições ou abrigos. Apresentam problemas com sua identidade, em manter relacionamentos estáveis, podem ter transtorno de personalidade associada à síndrome. Na Classificação de Transtornos Mentais e de Comportamento da CID-10, a Síndrome de Münchhausen está classificada dentro dos transtornos factícios (F68.1). Simulação de estado doentio deliberado para obtenção de cuidados, exames, procedimentos, internações e cirurgias desnecessárias infligir a si ou a outrem sofrimento e até mesmo exposição à perda da vida.[5]
Veja-se que há insuficiência de estudos no Brasil acerca da Síndrome de Münchhausen, mas “há pesquisa e divulgação significativa de relato de caso e aprofundamento de estudos sobre o tema”.[6] O fato é que uma pessoa desequilibrada pode prejudicar significativamente a vida de alguém, ao marcá-lo como estuprador, tudo fruto do “transtorno da mentira”. Por isso, nenhuma condenação poderá pautar-se exclusivamente na palavra da vítima.
Podemos afirmar com José Osterno que, no “processo penal, a verdade real ou material, antes de ser um dogma, é um mito”.[7] Ou, ainda, com Pacelli, no sentido de que a verdade judicial é sempre uma verdade processual, eis que é uma certeza de natureza exclusivamente jurídica.[8] De qualquer modo, a prova consistente na palavra da vítima não poderá ser isolada, senão a certeza jurídica estará mitigada, autorizando aplicar o princípio favor rei para absolver o réu, especialmente em caso de negativa veemente dele.




[1] BRASIL. STJ. 5ª Turma. Agravo Regimental no Recurso Especial n. 578515-PR. Rel. Jorge Mussi. 18.11.2014. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/doc.jsp?livre=578515&b=ACOR&p=true&l=10&i=8>. Acesso em: 25.3.2018, às 15h55. Veja-se a ementa:
REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. ESTUPRO DE VULNERÁVEL. PALAVRA DA VÍTIMA. RELEVANTE IMPORTÂNCIA. ABSOLVIÇÃO OU DECOTE DO RECONHECIMENTO DA CONTINUIDADE DELITIVA. IMPOSSIBILIDADE. SÚMULA N. 7/STJ. INCIDÊNCIA.
1. O Tribunal local, ao analisar os elementos constantes nos autos, entendeu pela ratificação da decisão de primeira instância que condenou o ora agravante pelo crime de estupro de vulnerável em continuidade delitiva.
2. A pretensão de desconstituir o julgado por suposta contrariedade à lei federal, pugnando pela absolvição ou o mero redimensionamento da pena referente à continuidade delitiva não encontra campo na via eleita, dada a necessidade de revolvimento do material probante, procedimento de análise vedado a esta Corte Superior de Justiça, a teor da Súmula 7/STJ.
3. Este Sodalício há muito firmou jurisprudência no sentido de que, nos crimes contra a dignidade sexual, a palavra da vítima adquire especial importância, mormente porque quase sempre ocorrem na clandestinidade.
4. Agravo regimental improvido. (Grifei)
[2] CARDOSO, Antônio Carlos Alves; HIRSCHHEIMER, Mário Roberto. Síndrome de Munchausen por transferência. In WAKSMAN, Renata Dejtiar; HIRSCHHEIMER, Mário Roberto (Coord.). Manual de atendimento às crianças e adolescentes. Brasília: Ideal, 2011. p. 63. Disponível em: <https://portal.cfm.org.br/images/stories/biblioteca/manual%20atendimento%20crianca%20adolescente.pdf>. Acesso em: 25.3.2018, às 16h22.
[3] BRASIL. Protocolo de atenção integral a crianças e adolescentes vítimas de violência: uma abordagem interdisciplinar na saúde. Brasília: TJDFT, [2010?]. p. 23. Disponível em: <http://www.tjdft.jus.br/cidadaos/infancia-e-juventude/publicacoes/publicacoes-1/ProtocoloAtenIntegralCriancasAdolecentesVitimasViol.pdf>. Acesso em: 25.3.2018, às 17h03.
[4] Ibidem. p. 29.
[5] BARRETO, Alexandra Gomes. Síndrome de Müchhausen e a a sua variação. Campinas: RHS, 25.9.2017. Disponível em: <http://redehumanizasus.net/sindrome-de-muchhausen-e-sua-variacao/>. Acesso em: 25.3.2018, às 17h18.
[6] Ibidem.
[7] ARAÚJO, José Osterno Campos de. Verdade processual penal: limitações à prova. Curitiba: Juruá, 2.005. p. 155.
[8] OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de processo penal. 11. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 294.

sexta-feira, 16 de março de 2018

Sustentação oral em apelação que não esperava obter sucesso. Mas, a luta continua!


Estou lutando para tentar adequar o fundamento legal do dispositivo de uma sentença à sua motivação, mas isso não será fácil porque poderá criar riscos aos Juízes e tribunais que determinarem ou mantiverem prisões provisórias em descompasso com as provas dos autos, portanto, sem os requisitos legais.
Não foi conhecido o pedido para declaração da ilegalidade da prisão e conhecido, mas improvido, o pedido para mudar o fundamento legal da absolvição.
A luta continua porque exerceremos a ampla defesa com todos os recursos a ela inerentes. Segue o texto que serviu de base, foi quase o que está abaixo que eu disse à 2ª Turma Criminal do TJDFT:
Processo n. 2016.02.1.004409-9 (0018185-52.2016.8.07.0003)
Excelentíssima Juíza desse egrégio Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, Maria Ivatônia, MD.ª Relatora da apelação apregoada;
é com todo respeito, Senhor Presidente dessa colenda 2ª Turma Criminal, Exm.º Desembargador de Justiça Jair Soares, que inverto a ordem de cumprimentos, haja vista que se trata da única mulher nessa veneranda Turma Criminal, isso em tempos em que testemunhamos a luta por igualdade de gêneros;
Exmo. Desembargador de Justiça Roberval Belinati, um magistrado reconhecido pelo forte aspecto humanitário e uma fé inabalável em Deus. Também, um notável Professor;
Exm.º Sr. Desembargador de Justiça Silvânio Barbosa dos Santos, um Professor, ainda que afastado temporariamente, um grande Professor Universitário;
Exm.º Desembargador de Justiça João Timóteo de Oliveira;
e
Exm.ª Sr.ª Procuradora de Justiça Consuelita Valadares Coelho, Md.ª Representante do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios;
Colenda Turma, nestes autos o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, em contrarrazões e em seu parecer, opina pelo conhecimento integral, de todos os fundamentos do recurso, e pelo seu improvimento.
JEFERSON RAMOS BARBOSA BEZERRA, em 12.9.2016, tinha 18 anos, 3 meses e 1 dia. Naquele dia 12.9.2016 ele foi preso e se iniciou um processo kafikiano, em que aquele rapaz, ora apelante, não podia entender o porquê de não ser solto.
O apelante estava sendo assistido por um Advogado constituído quando uma aluna me pediu para continuar gratuitamente porque o pai do apelante não tinha condições financeiras de honrar o compromisso assumido com o causídico.
Colenda turma criminal, no dia 12.9.2016, às 19h, Marciana retornava do trabalho a pé, quando uma motocicleta de cor escura (azul ou preta) parou perto dela uma motocicleta e o rapaz desceu da garupa e lhe roubou um telefone, vales transportes e pouco dinheiro. Enquanto isso, o apelante fechava a borracharia em que era empregado, isso juntamente com o seu patrão.
O Advogado anterior impetrou habeas corpus e a ordem requerida, já com sustentação oral feita por mim, foi denegada. E, em 6.12.2016, foi realizada audiência de instrução (que era para ser de instrução e julgamento). Após a oitiva das testemunhas, as partes não requereram diligências e eu estava pronto para alegações finais orais, mas o Juízo, alegando atraso, determinou a apresentação por memoriais.
Estava provada a inocência do réu, então pensei nas características da prisão cautelar, especialmente, a provisoriedade, a revogabilidade, a urgência e a fungibilidade. Pensei então no porquê da resistência de mandar soltar o réu ou de substituir a medida cautelar por outra medida alternativa da prisão prevista no art. 319 do Código de Processo Penal.
Veneranda Turma, Enrico Ferri já afirmava que seria bom que os Juízes criminais fossem especializados nessa matéria. A Constituição Federal é compatível com essa ideia ao delimitar a jurisdição, dividindo-a em competências. Cria até justiças especializadas para matéria criminal, a eleitoral (arts. 118-121) e a militar (art. 124).
A prisão cautelar foi fixada nos autos do processo de conhecimento, não em processo autônomo. Assim, é sobre um vício do processo, de uma prisão de natureza processual criminal, que se requer a análise dessa colenda turma.
Nenhum pedido cível é aqui feito. Se houvesse condenação, existiriam efeito civis automáticos. Caso da decisão de Vossas Excelências possam decorrer eventuais efeitos civis, estes não serão aqui discutidos, pois, sabemos, essa respeitável turma não é competente para julgar eventual pedido de reparação de danos. Assim, não há como pretender afastar a competência dessa veneranda turma para julgamento de uma apelação que versa sobre vício do processo criminal, que foi a manutenção de uma medida cautelar, mesmo depois de cessado o indício de autoria que a autorizasse.
Nenhuma outra prova seria produzida, preclara relatora. Então, por que manter aquela prisão?
Senhora Relatora e Senhores Desembargadores, se negar a conhecer do presente pleito será negar ao apelante o princípio da inafastabilidade do Poder Judiciário (Constituição Federal, art. 5º, inc. XXXV), a ampla defesa, com todos recursos a ela inerentes (art. 5º, inc. LV, da Carta Magna) e o devido processo legal (art. 5º, inc. LIV, da Constituição Federal).
O fundamento legal para tratar das nulidades na apelação, quando ocorrerem após as alegações finais se extrai da dicção do art. 571 do Código de Processo Penal. Não nos olvidemos que no procedimento dos crimes dolosos contra a vida, as nulidades havidas após a pronúncia serão arguidas em plenário e as deste deverão constar de ata e poderão ser objeto de apelação. E, no caso que ora se examina, a soltura consta da sentença absolutória, ocultando o vício de ter a prisão ilegal se mantido injustificadamente entre a audiência de instrução (e que deveria ser de instrução e julgamento) e a absolvição, isso por 37 dias. Não podemos esquecer que o art. 3º do Código de Processo Penal admite a analogia e ainda que não estivesse implícito no art. 571 mencionado, o vício da cautelar se equivale a uma nulidade gravíssima, um vício equivalente ao cerceamento de defesa.
Por isso, com todo respeito que essa veneranda turma merece, eventual remessa da discussão ao juízo cível constituirá, negativa de prestação jurisdicional perante o juízo próprio, o criminal, eis que estamos diante de um processo criminal em que a prisão, por força dele, se concretizou.
Mudando de fundamento a ser discutido, quanto à incoerência de dizer que as provas eram insuficientes para a condenação... não gosto de ler textos durante a sustentação oral e não quero cansar Vossas Excelências, até porque distribui memoriais e deles consta uma parte da sentença, bem como conta das razões da apelação, mas peço vênia para ler um pequeno trecho da sentença absolutória:
...Marciana "reconheceu com precisão o réu como sendo um dos autores do roubo de seu celular, bem como reconheceu a motocicleta que estava em seu poder, como sendo aquela utilizada no roubo cometido contra a sua pessoa" Todavia, não consta dos autos o termo de reconhecimento com a descrição das características que levaram a vítima a chegar a tal conclusão. Somado a isso, a testemunha de Defesa, Antônio Carlos, confirmou que o acusado não estava no local do crime, haja vista que após iniciarem o fechamento da borracharia em que trabalham, por volta das 18h45, e encerrá-lo aproximadamente às 19h10, o réu logo adentrou no estabelecimento comercial vizinho, de propriedade da testemunha Josimar, que disse que o acusado lá permaneceu, mexendo no seu celular, só tendo saído para lanchar, por volta das 20h, oportunidade em que se deslocou a pé. (grifei)
Vê-se, pois, que é imperiosa a modificação do fundamento legal da absolvição, do art. 386, inc. VII, do CPP para, conforme fundamentos da própria sentença, art. 386, inc. IV, do Código de Processo Penal.
Volto ao fundamento da prisão ilegal, dizendo algo que consta das razões de apelação e o MPDFT não contestou nas suas contrarrazões:
- ao pedir para o juízo criminal de Brazlândia ao menos decidir sobre a liberdade, o Juiz reafirmou que estava atrasado e disse: “doutor só são mais 5 dias!”
Essa afirmação consta das razões da apelação, familiares do acusado e os alunos que me acompanhavam ouviram, e o MPDFT não contestou em suas contrarrazões.
Tentei minimizar o mal que era imposto ao apelante, mas no dia 19.12.2016, estive no fórum de Brazlândia e não consegui falar com o Juiz.
O apelante ficou preso até 12.1.2017!
Penso no sofrimento do apelante e dos seus familiares pela sua ausência nas festas natalinas. Pior ainda... é notório e prescinde de provas, a virada do ano 2016 para o 2017 foi de rebeliões em presídios que se iniciaram em Roraima e Manaus e chegaram a Natal. Rumores alardeavam a sua extensão para todo território nacional... milhares poderiam morrer, inclusive um inocente, o apelante.
Faço aqui um aparte para dizer que estou aqui buscando o bem de um negro pobre, o faço gratuitamente porque acredito que o bem pode ajudar a melhorar essa sociedade que, parafraseando o cacique do cachimbo da paz, ... “Essa tribo é violenta demais”.
Em face de todo o exposto, requeiro que entre a data da audiência de instrução, 6.12.2016, e a data da efetiva soltura, 12.1.2017, seja declarada a ilegalidade da prisão cautelar. E, com espeque no que está expresso na sentença recorrida, a modificação do fundamento legal da absolvição.