quarta-feira, 22 de junho de 2022

Meninas vítimas do sistema de justiça

 

1. FINALIDADE

Tratarei aqui muito rapidamente de algo que venho afirmando nas defesas criminais: “mulheres são muito duras, prefiro os homens decidindo”.

Esse rótulo antipático à ideologia de gênero está me atingindo profundamente, especialmente porque o expresso involuntariamente, embora o problema seja pontual.

Aqui estamos diante de mais um deles: uma Juíza de Direito violando direitos de uma menina.

Segue uma pequena introdução:

A Justiça autorizou, na manhã desta terça-feira (21), que a criança de 11 anos grávida em decorrência de um estupro, em Santa Catarina, retorne a sua casa, segundo informações da advogada da família, Daniela Felix. As autoridades aguardam o posicionamento da Vara da Infância encaminhado pelo Tribunal de Justiça.

Ainda de acordo com Felix, o desacolhimento da menina foi autorizado por ter sido identificado que o agressor não está na casa onde vive.[1]

É curioso que a matéria chegue logo após eu ter sido notificado pelo Google de que “um aviso para os leitores foi incorporado à sua postagem com o título: O Poder Judiciário mais uma vez envergonha! Uma análise a partir do Caso de Abaetetuba”.[2]

Só para lembrar, a menina de Abaetetuba ficou presa por vários dias em cela para homens na região metropolitana de Belém-PA. De outro lado, agora, temos uma menina sob medida protetiva porque foi vítima de estupro.

2. CUIDADOS QUE PRECISAMOS TER AO TRATAMOS DOS DOIS CASOS

Sou defensor do direito ao esquecimento. No entanto, amparado pela doutrina de Virgílio Afonso da Silva, sustento que todos os direitos fundamentais são ponderáveis, ou seja, nenhum é absoluto, sendo oportuno transcrever a conclusão:

A partir da consolidação da ideia de que todo direito fundamental é restringível, colocou-se em xeque a tradicional distinção das normas constitucionais, quanto à sua eficácia, em normas de eficácia plena, normas de eficácia contida e normas de eficácia limitada.

A distinção entre normas de eficácia plena e normas de eficácia contida foi colocada em xeque porque se baseia justamente na possibilidade ou impossibilidade de restrições. Normas de eficácia plena não seriam restringíveis, enquanto as normas de eficácia contida seriam. Contudo, se todos os direitos fundamentais são restringíveis, a distinção perde a razão de ser.[3]

Ao falar de casos sensíveis como os presentes, não podemos nos olvidar de que a própria Constituição Federal nos alerta para o fato de que crianças e adolescentes são pessoas em desenvolvimento (art. 227, § 3º, inc. V). De outro lado, temos a dignidade de autoridades.

Ocorre que, em princípio, as Juízas de Direito violaram direitos humanos fundamentais, sendo que o caso de Abaetetuba resultou em processos e o atual, segundo consta, já tem opiniões de Conselheiros do Conselho Nacional de Justiça em favor do processamento da magistrada.[4]

Não podemos apagar a história, em nome da dignidade das magistradas envolvidas nos 2 casos, bem como em favor do direito ao esquecimento. Nesse aspecto, em 2016, quando a 33ª Vara Criminal da Comarca do Rio de Janeiro proibiu a venda do livro Minha Luta (no original, Mein Kampf), de Adolf Hitler, fui convidado pela TV Justiça para participar, com Sidney Aguilar Filho[5], sobre programa que discutiria o tema do nazismo no Brasil. Uma das perguntas do entrevistador foi:

– Podemos apagar a história?[6]

A minha resposta foi a de que o livro Minha Luta já existia, em português e gratuito, na rede mundial de computadores e que a discussão era interessante porque naqueles dias a demolição da casa onde Hitler nasceu era discutida na Áustria.

Enquanto muitos defendem que os erros devem ser lembrados para evitar repetições e provocar avanços, outros creem que ignorar os fatos desonra os seus autores. Estes últimos entendem que lembrar os fatos nos deixa vulneráveis a repeti-los.[7]

Aqui no Brasil, ante o pedido de indenização por irmãos de uma vítima, em face de divulgação não autorizada da imagem desta no Programa Linha Direta da TV Globo, tivemos um litígio que resultou na Tese n. 786 do Supremo Tribunal Federal, in verbis:

É incompatível com a Constituição a ideia de um direito ao esquecimento, assim entendido como o poder de obstar, em razão da passagem do tempo, a divulgação de fatos ou dados verídicos e licitamente obtidos e publicados em meios de comunicação social analógicos ou digitais. Eventuais excessos ou abusos no exercício da liberdade de expressão e de informação devem ser analisados caso a caso, a partir dos parâmetros constitucionais - especialmente os relativos à proteção da honra, da imagem, da privacidade e da personalidade em geral - e as expressas e específicas previsões legais nos âmbitos penal e cível.[8]

Assim como no caso de Abaetetuba, a minha maior preocupação será com a imagem da vítima, não das autoridades envolvidas nos casos que tenho por delituosos.

3. COMPARAÇÕES NECESSÁRIAS

Em 2013 tivemos uma adolescente apreendida em flagrante, tendo o Ministério Público do Estado do Pará, por intermédio de uma Promotora Justiça pedido a conversão em prisão, deferida por uma Juíza que conhecia a superpopulação da cadeia pública em que se encontrava presa com vários homens, a qual era estuprada várias vezes por dia. Após o STF ter cassado a decisão do CNJ que aposentou compulsoriamente a Juíza, o TJPA a promoveu por merecimento.

No dia 20.6.2022 veio à imprensa o fato de uma Juíza ter mandado para um abrigo, uma menina grávida, isso para evitar o abortamento, notícia que foi intensificada no dia 21.6.2022,[9] isso porque a magistrada encorajou a criança a não abortar, como se a vítima tivesse capacidade jurídica plena para decidir sobre a matéria.[10] Curiosamente, a criança fragilizada pela transformação hormonal foi afastada da mãe e, coincidentemente – ao exemplo de Abaetetuba -, a magistrada foi promovida por merecimento, mediante decisão do TJSC, de 15.6.2022.[11]

O abortamento é a interrupção da gravidez com a morte do feto e, pior, a medida protetiva à vítima de estupro, sob o pretexto de que a mãe que buscava amparo judicial representava um risco à criança, é um absurdo sem precedentes.

A Lei n. 8.069, de 13.7.1990, preceitua:

Art. 98. As medidas de proteção à criança e ao adolescente são aplicáveis sempre que os direitos reconhecidos nesta lei forem ameaçados ou violados:

I - por ação ou omissão da sociedade ou do Estado;

II - por falta, omissão ou abuso dos pais ou responsável;

III - em razão de sua conduta.

No caso, foi o Poder Judiciário quem violou o direito da criança “à convivência familiar”, em face de uma mãe que buscou a sua proteção, atingindo direito fundamental expresso no art. 227, caput, da Constituição Federal.

Ao contrário de abuso da mãe, o que ela pretendeu fazer valer foi a lei, uma vez que o art. 128, inc. II, do Código Penal. No caso, caso o estuprador fosse da família, que o agente fosse afastado do lar mediante medida protetiva ou até preso cautelarmente.

Criança de 10 anos que pratica conjunção carnal e engravida, juridicamente, não pratica crime. Ela é vítima de crime ou de ato infracional descrito no art. 217-A do Código Penal. Diz-se que a menina tinha conjunções carnais, autorizadas pela mãe, no interior da própria casa, com namorado de 13 anos. No caso, ainda assim, o abortamento seria legal porque - em tese - houve ato infracional do adolescente.

O exposto evidencia que a criança foi vítima de conduta abusiva do Poder Judiciário ao ser submetida a uma medida protetiva prevista no art. 101, inc. VII, da Lei n. 8.069/1990, sem a incidência de qualquer hipótese do art. 98 da mesma lei.

CONCLUSÃO

É triste tratar de fatos assim porque o que se pode constatar é uma mistura de Direito e moral, quando já está demonstrado que o julgamento não pode se dar por convencimento íntimos de um julgador. Mas, por uma persuasão racional, ante as provas que são implementadas.

Privar uma criança da convivência familiar, especialmente da mãe que buscava a proteger, sem qualquer indício de que a mãe tenha praticado crime, não tem amparo legal.

Não direi aqui que a Juíza praticou o crime do art. 9º ou do art. 15-A, inc. II, da Lei n. 13.869, de 5.9.2019. No entanto, ao exemplo do caso de Abaetetuba, a sua conduta é gravíssima, com sérias consequências à vítima e à sua genitora.



[1] ALECRIM, Giulia; SOUZA, Renata. Justiça autoriza que criança vítima de estupro em Santa Catarina volte para casa: menina de 11 anos estava em abrigo desde que foi impedida de realizar um aborto. 21.6.2022, às 14h10. Disponível em: <https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/justica-autoriza-que-crianca-vitima-de-estupro-em-santa-catarina-volte-para-casa/>. Acesso em: 21.6.2022, às 21h.

[2] O aviso chegou na minha caixa de mensagens, em <sidiojunior@gmail.com>, no 21.6.2022, às 23h34. Ao acessar o artigo, verifico que ele remete o leitor a <https://www.blogger.com/post-interstitial.g?blogspotURL=http://sidiojunior.blogspot.com/2013/10/o-poder-judiciario-mais-uma-vez.html>, onde se lê: “Aviso de conteúdo confidencial: Talvez esta postagem tenha conteúdo confidencial. Em geral, o Google não revisa nem endossa o conteúdo deste ou de qualquer outro blog. Para saber mais sobre nossas Políticas de conteúdo, acesse as diretrizes da comunidade do Blogger.” Pedi a revisão porque o texto se orientou apenas por dados públicos, o que será um pouco desenvolvido no que ora estou escrevendo.

[3] SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos fundamentais: conteúdo essencial, restrições e eficácia. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2010. p. 254.

[4] COELHO, Gabriela; HAHON, Eduardo. Sete conselheiros do CNJ pedem à corregedoria para investigar juíza de SC: Joana Ribeiro Zimmer é investigada por atuação no caso da menina de 11 anos impedida de fazer um aborto após ter sido estuprada, 21.6.2022, às 16h10. Disponível em: <https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/sete-conselheiros-do-cnj-pedem-a-corregedoria-para-investigar-juiza-de-sc/>. Acesso em: 21.6.2022, às 21h50.

[5] Historiador que escreveu a tese “Educação, autoritarismo e eugenia: exploração do trabalho e violência à infância desamparada no Brasil (1930-1945)”, na qual assegura ter havido nazismo no Brasil.

[6] STF. TV Justiça. 28.11.2016, as 12h30. Reapresentações em 29.11.2016, às 9h; 30.11.2016, às 20h; 2.12.2016, às 12h; 3.12.2016, às 12; e 4.1.2016, às 12h. Informações disponíveis em: <https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=330530&ori=1>. Acesso em: 21.6.2022, às 22h10.

[7] FIEDERER, Luke. Por que o plano da Áustria de demolir a casa onde nasceu Hitler é controverso.

[8] STF. Tribunal Pleno. RE 1010606. Min. Dias Toffoli, 11.2.2021. Disponível em: <https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=755910773>. Acesso em: 21.6.2022, às 23h.

[9] CARTA CAPITAL. Justiça de Santa Catarina ordena que menina de 11 anos, vítima de estupro, volte a morar com a mãe: Juíza havia encaminhado criança grávida para um abrigo com o objetivo de evitar a interrupção da gestação, 21.6.2022, às 13:37. Disponível em: <https://www.cartacapital.com.br/justica/justica-de-santa-catarina-ordena-que-menina-de-11-anos-vitima-de-estupro-volte-a-morar-com-a-mae/>. Acesso em: 21.6.2022, às 23h20.

Segue o inteiro teor da notícia:

A Justiça de Santa Catarina ordenou que uma menina de 11 anos, vítima de estupro, volte para a mãe após ter sido mantida em um abrigo para evitar que fosse submetida a um aborto.

A criança tinha permissão para realizar o procedimento abortivo sem a necessidade de autorização judicial, mas o direito lhe foi negado pela Juíza Joana Ribeiro Zimmer.

A mãe da menina havia descoberto a gravidez após 22 semanas de gestação. A criança, então, foi encaminhada a um hospital de Florianópolis para que a gravidez fosse interrompida, mas a equipe médica se recusou a realizar o procedimento, sob a alegação. de que as normas internas do hospital permitiam o ato apenas até a 20ª semana.

Ao portal G1, a advogada da família da criança declarou que há uma decisão judicial que autoriza a interrupção da gravidez da menina. Porém, a execução do procedimento estava impedida pelo fato de a criança ter sido colocada em um abrigo fazia mais de um mês.

[10] REDAÇÃO. Aborto: juíza de Santa Catarina encoraja criança de 11 anos a manter gravidez: a criança vítima de estupro foi pressionada durante uma audiência, por juíza e promotora, a manter gravidez resultante de um estupro. UOL: PARANÁPORTAL, 20.6.2022, às 16h01. Disponível em: <https://paranaportal.uol.com.br/geral/aborto-santa-catarina-crianca-vitima-estupro-11-anos>. Acesso em: 21.6.2022, às 23h30.

Leia-se o inteiro teor da matéria:

O crime foi descoberto pela mãe, dias antes do aniversário de 11 anos da vítima. Segundo informações que constam no processo, a criança sentia muitos enjoos. Além disso, o crescimento anormal da região abdominal denunciava a gravidez.

A mãe procurou o conselho Tutelar de Tijucas, cidade a 50 quilômetro da capital de Santa Catarina, Florianópolis. Elas foram encaminhadas ao Hospital Universitário da UFSC, referência para procedimentos de aborto legal.

A medida foi negada pelo hospital. Segundo o HU, as normas internas permitiam o aborto até 20ª semana. A criança de 11 anos, vítima de estupro, encontrava-se na 22ª semana de gravidez.

O caso, então, foi encaminhado à Justiça. O Ministério Público de Santa Catarina pediu o acolhimento institucional da criança, sob pretexto de protegê-la do agressor. No entanto, a juíza Joana Ribeiro Zimmer acolheu o pedido argumentando que era necessário proteger o feto.

“O risco é que a mãe efetue algum procedimento para operar a morte do bebê”, decidiu a magistrada, em decisão obtida pelo portal Catarinas, em reportagem com apoio do The Intercept Brasil.

A reportagem também teve acesso aos áudios da audiência, na qual a juíza Joana Ribeiro Zimmer tenta convencer a criança a manter a gravidez por mais uma ou duas semanas. “Você suportaria ficar mais um pouquinho?”, questiona a juíza, durante a audiência.

A pressão à criança de 11 anos vítima de estupro também acontece por parte do Ministério Público de Santa Catarina. Segundo a reportagem, durante a audiência, a promotora Mirela Dutra Alberton tenta dissuadir a criança do direito ao aborto legal.

“Em vez de deixar ele morrer – porque já é um bebê, já é uma criança –, em vez de a gente tirar da tua barriga e ver ele morrendo e agonizando, é isso que acontece, porque o Brasil não concorda com a eutanásia”, diz ela.

Juíza e promotora argumentam quem o aborto não poderia acontecer após a 20ª semana de gravidez, segundo o protocolo no Ministério da Saúde. No entanto, a legislação brasileira autoriza o procedimento sem restrições em caso de violência sexual.

Em nota ao The Intercept, a Joana Ribeiro Zimmer, por meio do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, informou que “não se manifestará sobre trechos da referida audiência, que foram vazados de forma criminosa. Não só por se tratar de um caso que tramita em segredo de justiça, mas, sobretudo para garantir a devida proteção integral à criança”.

Da mesma forma, a promotora Mirela Dutra Alberton, por meio do Ministério Público de Santa Catarina, respondeu que o aborto legal somente é viável até 22 semanas e peso inferior a 500g. “Dessa forma, diante dessa complexa situação, optou-se, por uma solução ponderada do caso concreto, viabilizando-se uma interrupção antecipada do parto, de modo a salvaguardar a vida da infante e do nascituro, a ser implementada a critério da equipe médica”.

[11] BATISTELA, Clarissa; MARTINS, Camila. Juíza deixa caso de menina estuprada que foi impedida de abortar em SC após receber promoção “por merecimento”: Tribunal de Justiça decidiu na última quarta-feira (15) por uma promoção "por merecimento" para a Magistrada Joana Ribeiro Zimmer. Ela disse que mudança para Brusque foi decidida antes da polêmica sobre o caso da menina de 11 anos. G1, 21.6.2022, às 14h25. Disponível em: <https://g1.globo.com/sc/santa-catarina/noticia/2022/06/21/juiza-deixa-caso-menina-estuprada-que-foi-impedida-de-abortar-em-sc.ghtml>. Acesso em: 21.6.2022, às 22h45.

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