domingo, 27 de novembro de 2011

O caso dos exploradores de caverna

Hoje, depois de muitas leituras que fiz do livro intitulado “O Caso dos Exploradores de Caverna”,[1] o reli e decidi redigir o presente texto para emitir algumas opiniões sobre esse livro, o qual considero de leitura obrigatória para todos estudantes de Direito.
O texto constituirá uma resenha crítica tendente a apresentar uma perspectiva pessoal de um livro propedêutico ao Direito, o qual vale o seu peso em ouro, devido à riqueza de detalhes dos temas que aborda.
Uma criação fictícia (de um professor da Universidade de Harvard) trazendo fatos ocorridos no condado de Stowfield, ocorridos em Mai/4299, levou à condenação de 4 homens à forca. De tal condenação, houve recurso à Suprema Corte de Newgarth (local fictício). É do julgamento colegiado de tal recurso que trata o livro.
4 membros da Sociedade Espeleológica – organização amadorística de exploração de cavernas –, em Mai/4299 adentraram em uma caverna com um outro espeleólogo, chamado Roger Whetmore. Devido a um acidente, eles o mataram e comeram a sua carne, tendo saído da caverna no 32º dia em estado de desnutrição.
Ficou claro que o assassinato foi premeditado, pois, no 20º dia, Whetmore falou com o exterior, valendo-se de rádio transceptor, momento em que informou da ausência de suprimentos e, respondendo a uma pergunta de Whetmore, um médico disse ser possível sobreviverem se comessem a carne de um deles.
A escolha de qual deles morreria seria feita jogando dois dados de propriedade de Whetmore, mas este desistiu do sorteio. Os demais fizeram o sorteio com os mesmos dados inicialmente previstos e um deles jogou a rogo de Whetmore, mas este perdeu e foi sacrificado.
Os 4 recorrentes foram condenados à morte na primeira instância e os jurados, assim como o Juiz, pediram clemência ao Poder Executivo para comutar a pena, visando a convertê-la para 6 meses de prisão. Então, o livro prossegue tratando do julgamento proferido em grau de recurso, enquanto pendia o pedido de clemência.
O livro inverte muitos aspectos do Direito normativo vigente no mundo jurídico ocidental, sendo que devemos temperar alguns aspectos ali contidos. Por exemplo, quem vota primeiro é o Presidente do Tribunal, Truepenny, C., quando a praxe é diversa, visto que o relator vota primeiro, independentemente do lugar que ocupa no Tribunal, reservando-se ao Presidente o último voto (salvo se for o relator).
O voto de Truepenny (Presidente do Tribunal) apresenta relatório irretocável. Há uma riqueza de detalhes que esta resenha, pela própria natureza, não pode alcançar. Porém, ele descumpre o seu dever e não decide, transferindo para o Poder Executivo o dever de decidir sobre o caso, ou seja, tudo se resumiria na decisão do pedido de clemência, o qual ele acreditava que seria favorável aos recorrentes. Apenas em função disso, negou provimento ao recurso.[2]
O 2º voto foi proferido por Foster, J., o qual criticou o Presidente do Tribunal por fugir da sua responsabilidade. Então, discorre sobre o fato de estarem os recorrentes fora do mundo do Direito, o que exigiria ver os fins do Direito e o contrato dos espeleólogos.
Para Foster, cessante ratione legis, cessat et ipsa lex (cessando a razão da lei, cessa a própria lei), portanto, considerando os fins preventivos do Direito, os recorrentes não poderiam ser condenados. Também, eles tinham um contrato válido e, portanto, a pena de morte seria válida.
Observe-se que à luz do Direito pátrio o contrato não seria válido, uma vez que o seu objeto, vida, não seria lícito. É por isso que Foster os coloca em outro mundo jurídico, o da natureza, para validar o contrato, o qual faz lei entre as partes.
Com toda razão, afirma que o direito fundamental à vida não é absoluto. Isso é uma verdade que pode ser extraído dos diversos sistemas normativos. No Brasil, por exemplo, excepcionalmente, é admitida a pena de morte (Constituição Federal, art. 5º, inc. XLVII). Ora, se vida pode ser atingida pela pena, ela não constitui valor absoluto.
Foster não nega a aplicação da lei, mas invoca a interpretação e precedentes do próprio tribunal para sustentar a inexigibilidade de os 4 recorrentes atuarem conforme o Direito. Também, lembra que a legítima defesa não é conhecida no ordenamento legislado daquele País, mas que a jurisprudência a admite.
O magistrado apresenta exemplos para dizer que a lei contém lacunas, esperando uma fidelidade inteligente à lei, não apenas uma observância da legalidade formal. Com isso, dá provimento ao recurso.[3]
Igual ou pior ao voto do Presidente do Tribunal é o 3º voto, proferido por Tatting J. Digo isso porque aquele transferiu para o Poder Executivo uma decisão que deveria ser judicial e Tatting se nega à prestação jurisdicional, abstendo-se de votar.
Tatting inicia bem, combatendo os diversos pontos do voto de Foster, inclusive mencionando os elementos da legítima defesa, a fim de negá-la àquele caso. Discute os fins da lei, o que parece correto sob a ótica Kelsiana e Luhmmaniana porque Foster os coloca no plano da justiça, enquanto aqueles entendem que a justiça é anterior ao Direito. Do mesmo modo, Tatting entende que as questões valorativas não podem contaminar a decisão judicial.
Para Tatting faltam elementos da legítima defesa, o que é correto sob a ótica criminal hodierna, pois não houve reação a qualquer agressão injusta, mas agressão praticada pelos recorrentes. Ocorre que o Direito daquele País, nem mesmo na jurisprudência, conhecia o estado de necessidade.
No campo das especulações, Tatting chega a imaginar a hipótese de Whetmore estar armado e se defender da ação dos recorrentes. Com isso, procura evidenciar o absurdo da posição de Foster, construída no sentido de ter ocorrido legítima defesa.
Foster invocou os propósitos da lei, o que foi questionado por Tatting, dizendo que se a lei tem vários propósitos e não caberá ao tribunal escolher um deles e negar vigência aos demais.
Respeitando a legalidade estrita, Tatting lembrou que sequer o furto famélico foi admitido por aquele tribunal. Por outro lado, refutou a idéia de ter existido contrato válido, vindo a sugerir a hipótese de Whetmore não ter aceito, desde o início, a solução encontrada pelo grupo.
Tatting poderia até se dizer suspeito por razões de foro íntimo. Porém, preferiu colocar razões humanitárias para a sua dúvida sobre como decidir. Ao contrário de se declarar suspeito, optou por negar-se à prestação jurisdicional,[4] o que é equivocado à luz do Direito brasileiro.
O 4º voto é o de magistrado limitado, Keen J., ele inicia afastando as questões que entende não serem da competência do tribunal. Assim, critica a posição do Presidente do Tribunal porque ele não poderia se imiscuir em decisão que só caberia ao Poder Executivo. Também, questiona a justiça como fundamento das decisões judiciais, retornando, em linhas gerais, à ideia retrógrada de que “o Juiz é a boca da lei”.
Keen diz que Foster se recusa a se opor à lei, mas fica feliz em encontrar buracos na lei, afirmando: “Em resumo, não lhe agradam as leis”. E, ainda em oposição a Foster, sustenta não estarem presentes os elementos da legítima defesa.
Dizer, como Keen, que “Uma decisão rigorosa não é popular”, é tão equivocado quanto contrário ao sentimento de vingança popular. Mas Keen prossegue em suas falácias ao supor que se os homens não tivessem sacrificado Whetmore e comido a sua carne eles teriam gerado a discussão e provocado a alteração da legislação (como se eles fossem obrigados ao heroísmo). Tudo isso serviu para justificar o seu voto pelo improvimento do recurso.[5]
O 5º e último voto foi o de Handy J., um voto que se afasta da Ciência do Direito. Sobre ele, inicio transcrevendo seu primeiro parágrafo:
“Ouvi com estupefação os angustiados raciocínios  que este caso trouxe à tona. Nunca deixo de admirar a habilidade com que meus colegas lançam uma obscura cortina de legalismos sobre qualquer problema que lhes seja apresentado a decidir. Nesta tarde ouvimos arrazoados sobre distinções entre direito positivo e direito natural , a letra e o propósito da lei, funções judiciais e executivas, legislação oriunda do judiciário e do legislativo. Minha única decepção foi que ninguém levantou a questão da natureza jurídica do contrato celebrado na caverna – se era unilateral ou bilateral, e se não se poderia considerar que Whetmore revogou a sua anuência antes que se tivesse atuado com fundamento nela”.[6]
Handy diz que o governo é exercido por homens, encaixando nesse conceito de governo o tribunal, para dizer que o bom governo é aquele exercido por homens que conseguem apreender os sentimentos do povo, propondo uma racionalidade calcada em métodos e princípios a serem adaptados aos casos concretos, mediante seleção dos meios de que dispõe para alcançar o resultado objetivado.
A lei da natureza de Foster e a fidelidade à lei escrita de Keen, segundo Handy, nada significarão, diante de alguns aspectos que devem ser evidenciados. Destarte, diz que o “pudico decoro” dos colegas fez com que eles omitissem o clamor público que influenciou as suas manifestações. Como 90% do povo desejava a absolvição, disse que deveria levar em conta esse desejo.
Handy diz que o Ministério Público poderia ter deixado de acusar, o Júri poderia ter absolvido e, ainda, seria possível o indulto. Mas, o fato de ser o porta-voz do Júri um advogado, prejudicou a decisão, levando os demais a condenar os recorrentes. Outrossim, critica Tatting porque ele gostaria que a decisão tivesse sido tomada pelo Ministério Público. Tal crítica tem lugar no Brasil porque muitos Juízes preferem que o membro do Ministério Público decida por eles.
Disse que 90% do povo desejava o provimento do recurso, mas o mesmo povo, em pesquisa acadêmica, demonstrou pensar que a palavra “espeleólogo” significava “canibal” e que “antropofagia” constituía um princípio a ser adotado pela sociedade.
O voto prossegue com razões metajurídicas para informar que o Chefe do Poder Executivo não tinha a intenção de indultar os recorrentes, momento em que critica o Presidente do Tribunal por transferido a ele a solução do caso. Mais ainda, acreditou que o voto de Foster teve por motivação a posição do Presidente do Tribunal.
Handy concluiu dizendo que é necessário respeitar ao senso comum, utilizando um caso de um sacerdote espancado como paradigma. Em tal caso, o sacerdote teria sido expulso de uma seita e compareceu a uma reunião do grupo, quando rebateu os argumentos da expulsão e foi espancado. Ele pediu indenização e, baseado no senso comum, Handy absolveu o grupo promotor da reunião por ausências de provas e foi ovacionado pela imprensa.
Não consigo aceitar tal posição porque a análise deve ser científica, visto que as teorias científicas nem sempre estarão corretas, mas a probabilidade das teorias não-científicas estarem erradas será maior do que a das teorias científicas. O censo comum de vingança de um povo não deve ser o fundamento de validade de uma decisão judicial.
Handy votou pela absolvição. Com isso, o julgamento resultou em empate. Então, o Presidente do Tribunal perguntou a Tatting se ele não gostaria de rever a sua posição, o qual a manteve. Desse modo, foi considerada mantida a decisão recorrida e os 4 recorrentes foram executados.
Para finalizar, devo dizer que a solução da lei brasileira, em regra, é mais sábia. Pateticamente, defende-se que a decisão do TSE, em caso de empate de decisão em sede de recurso no STF, será mantida. Ora, a dúvida leva à incerteza. Assim, havendo empate, deve prevalecer a decisão mais favorável ao recorrente. Essa é a solução do Código Processo Penal (art. 615, § 1º).



[1] FULLER, Lon L. O caso dos exploradores de cavernas. Porto Alegre: Fabris, 1976.
[2] Ibidem. p. 1-10.
[3]  Ibidem. p. 10-25.
[4]  Ibidem. p. 25-40.
[5]  Ibidem. p. 40-54.  
[6] Ibidem. p. 54.

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