quinta-feira, 16 de março de 2023

Sistema de cotas para oriundos de colégios militares: um erro

Recebi um processo em que a Secretaria de Administração Acadêmica da Universidade de Brasília se manifestou no sentido de não poder informar porque a candidata não constou no rol de aprovados no vestibular. Então apresentei as informações com a seguinte petição:

AO JUÍZO DA xxª VARA FEDERAL CÍVEL DA SEÇÃO JUDICIÁRIA DO DISTRITO FEDERAL

Processo n. xxx

Impetrante: xxx

xxx, brasileira, maior, capaz, Secretária Executiva da Secretaria de Administração Acadêmica, vem, à presença desse douto juízo, por intermédio do Procurador Federal designado, para apresentar as informações anexas (SEI, id. 9449286), e documentos comprobatórios da impossibilidade de conhecer a situação fática eis que é o CEBRASPE o executor do certame.

Síntese do procedimento

1. Petição inicial certificada digitalmente no dia 25.2.2023, aduzindo a impetrante que foi aprovada no vestibular para o de Arquitetura e Urbanismo da UnB como aluna cotista originária de escola pública, com renda superior a 1,5 salário, que obteve nota para convocação e não foi convocada, pedindo para ser determinado “à impetrada que homologue a inscrição da impetrante dentro da cota de escola pública” (id. xxx).

2. Foi colacionada vasta documentação, tendente a fazer a necessária prova pré-constituída da ação mandamental. Depois, em 27.2.2023, foi certificada negativamente a prevenção (id. xxx). E, no dia seguinte, esse douto juízo resolveu ouvir as autoridades impetradas, antes de decidir sobre o pedido de liminar. Também, não se manifestou sobre o incabível pedido de gratuidade de justiça (id. xxx).

3. No dia 2.3.2023 foi certificada a notificação e intimação da autoridade impetrada que ora presta informações (id. xxx). E, em 4.3.2023, foi certificada a notificação/intimação da Diretora-Geral do CEBRASPE (id. xxx). Por fim, intimada, por intermédio da PRF1, a FUB pedi seu ingresso no feito na forma do art. 7º, inc. II, da Lei n. 12.016, de 7.8.2009.

Da falta de justificativa para eventual gratuidade de justiça

4. Conforme se pode extrair da Carteira de Identidade da impetrante, é filha de Oficial Superior do Exército Brasileiro, o qual notoriamente pode suportar os ínfimos valores das custas judiciais.

Impossibilidade fática de prestar informações sobre fase inicial do certame e da impossibilidade em tese de a impetrante deter direito líquido e certo

5. Preliminarmente, esclarece não ser oportuno ter vários agentes públicos da mesma instituição prestando informações sobre os mesmos fatos. O que se impõe é a oitiva da Diretora-Geral do CEBRASPE porque ele foi o contratado para realização do certame.

6. O CESPE-Centro de Seleção e Promoção de Eventos foi criado pela FUB. Mas, tal centro não mais promove concursos públicos porque houve uma dificuldade administrativa que levou à criação do Centro Brasileiro de Pesquisa em Avaliação e Seleção e de Promoção de Eventos – CEBRASPE.

7. O CEBRASPE é empresa de direito privado, eis que, com fundamento no art. 1º da Lei n. 9.637, de 15.5.1998, o Poder Executivo editou o Decreto n. 8.078, de 19.8.2013, qualificando o CESPE, sob a denominação de CEBRASPE, como organização social, dispondo:

Art. 1o É qualificado como Organização Social o Centro Brasileiro de Pesquisa em Avaliação e Seleção e de Promoção de Eventos – CEBRASPE, associação civil com sede em Brasília, Distrito Federal, inscrito no Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas – CNPJ sob o número 18.284.407/0001-53, registrado no 2o Ofício de Registro de Pessoas Jurídicas de Brasília, Distrito Federal, sob o n. 000082415, de 13 de maio de 2013, que tem como objetivo realizar atividades de gestão de programas, projetos, apoio técnico e logístico para subsidiar sistemas de avaliação educacional, mediante a celebração de contrato de gestão a ser firmado com o Ministério da Educação.

8. Sem dizer qual será a nova categoria do CEBRASPE, em um arroubo inconsequente, o Decreto n. 11.062, de 4.5.2022, o desqualificou de organização social, mantendo-se a sua existência como ente privado. Isso faz com que a FUB só possa exigir do CEBRASPE o que consta do contrato.

9. Embora a Secretaria de Administração Acadêmica (SAA) seja a encarregada de apreciar os documentos para registro acadêmico e matrícula dos candidatos aprovados no vestibular, o pedido da impetrante versa sobre fase anterior, ou seja, a da inscrição. Ela, certamente, não impugnou atempadamente o indeferimento da sua inscrição para o sistema de cotas, lançando-a ao sistema universal.

10. A aluna é egressa de colégio militar, não se enquadrando no sistema de cotas sociais, até porque estudou em colégio que lhe permite disputar em níveis igualitários aos alunos egressos de escolas particulares. Nesse sentido, informa o TJDFT:

A 3ª Turma Cível do TJDFT negou provimento a recurso de aluno do Colégio Militar Dom Pedro II, que visava assegurar sua participação em vestibular para medicina por meio do sistema de cotas. A decisão foi unânime.

O autor alega possuir todos os requisitos para o ingresso na faculdade como cotista, haja vista ter estudado todo o ensino fundamental e médio em escolas públicas do Distrito Federal. Sustenta que o pagamento de uma taxa de ajuda ao Colégio Militar Dom Pedro II não afasta o caráter público da instituição de ensino, e aventa o preceito constitucional acerca do direito à educação, cujo acesso deverá ser propiciado aos hipossuficientes por meio de uma política compensatória de condições em razão da desigualdade social.

No entanto, o julgador originário explica que não assiste razão ao autor, pois a referida instituição possui um regime híbrido, não pertencendo, de fato, ao ensino público do Distrito Federal. Outro motivo, diz o juiz, "é que em tais instituições de ensino, a qualidade do serviço prestado é excelente, ao contrário das escolas públicas do Distrito Federal, que sofrem com ausência de tudo, professores, merenda, greves sucessivas, etc. e que "a concessão do pedido implicaria em verdadeira burla à finalidade da medida afirmativa estabelecida pela Administração Pública".

Em sede recursal, o Colegiado lembrou que, nos termos da Lei n. 3.361/2004, regulamentada pelo Decreto n. 25.394/2004, a inscrição do candidato no vestibular pelo sistema de cotas requer o cumprimento de requisitos objetivos pelo interessado. Um desses requisitos é o de que o aluno tenha cursado integralmente os cursos de ensino fundamental e médio nas escolas públicas do Distrito Federal.

Assim, a Turma entendeu que o fato de o interessado ter estudado da 1ª à 5ª série no Colégio Militar Dom Pedro II o impede de concorrer ao vestibular como cotista. Isto porque, apesar de ter sido instituída por lei distrital, a instituição de ensino em questão possui natureza híbrida, ou seja, reúne características públicas e privadas. Como os alunos pagam taxa mensal de manutenção e aprimoramento das atividades escolares e os professores civis não são remunerados pelo Distrito Federal, não pode ser equiparada às instituições de ensino da rede pública.[1]

11. Embora a Lei n. 12.711, de 29.8.2012, seja silente quanto aos colégios militares, é indubitável a sua teleologia afirmativa, a qual, notoriamente, não pode incluir oriundos de escolas padrões pois senão restaria violada a isonomia. Nesse sentido é lúcida a matéria jornalística que lembra o privilégio de filho de militares e a desigualdade em incluir até a filha do ex-Presidente da República como suposta merecedora do sistema de cotas de escolas públicas.[2] De todo modo, não se pode afirmar se foi esse o motivo que levou o CEBRASPE a não a considerar como tal, sendo essencial ouvir sua Diretora-Geral.

Pedido

Ante o exposto, requer, após a oitiva da representante do CEBRASPE (indicada como autoridade impetrada) e a regular tramitação do feito, a denegação da segurança.[3]

O que temos é uma tentativa que me faz repensar a proposta de Ronald Dworkin (1931-2013) acerca das ações afirmativas (discriminações compensatórias) necessárias para proteção das minorias. Este é um assunto que me preocupa, pois, conforme alertava Dworkin, por preconceito, posso me deixar influenciar por preferências pessoais que interfiram em preferências externas.[4]

Alhures já me debrucei sobre o assunto porque sou acadêmico e atuo na Procuradoria Federal junto à Fundação Universidade de Brasília, esta última de caráter autárquico, instituída pela Lei n. 3.998, de 15.12.1998, para gerir os recursos humanos e materiais da Universidade de Brasília. Assim, tratando do acesso à universidade pública escrevi:

É fundamental que se observe a igualdade de acesso, a fim de se preservar a universalidade do ensino público. Sem atender aos critérios orientadores da educação (denominados pela Constituição Federal de princípios), será impossível a consecução prática dos seus objetivos.[5] Por isso, é fundamental que se esclareça como tais alunos serão selecionados. Nesse ponto, é oportuna a crítica feita por José Afonso da Silva, no sentido de que pobres pagam seus cursos e ricos estão em universidades públicas[6]. Entretanto, não se pode atender à pretensão de violar a Constituição Federal, a qual estabelece ser a educação direito de todos e dever do Estado (art. 205).[7]

Já me manifestei contra a existência de sistema de cota puramente racial, preferindo a sócio racial. De todo modo, esclareça-se, o STF considerou constitucional o sistema de cotas puramente racial, avaliada por traços fenotípicos dos candidatos. Observe-se:

EMENTA: ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL. ATOS QUE INSTITUÍRAM SISTEMA DE RESERVA DE VAGAS COM BASE EM CRITÉRIO ÉTNICO-RACIAL (COTAS) NO PROCESSO DE SELEÇÃO PARA INGRESSO EM INSTITUIÇÃO PÚBLICA DE ENSINO SUPERIOR. ALEGADA OFENSA AOS ARTS. 1º, CAPUT, III; 3º, IV; 4º, VIII; 5º, I, II XXXIII, XLI, LIV; 37, CAPUT; 205; 206, CAPUT, I; 207, CAPUT; E 208, V; TODOS DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. AÇÃO JULGADA IMPROCEDENTE.

I – Não contraria - ao contrário, prestigia – o princípio da igualdade material, previsto no caput do art. 5º da Carta da República, a possibilidade de o Estado lançar mão seja de políticas de cunho universalista, que abrangem um número indeterminados de indivíduos, mediante ações de natureza estrutural, seja de ações afirmativas, que atingem grupos sociais determinados, de maneira pontual, atribuindo a estes certas vantagens, por um tempo limitado, de modo a permitir-lhes a superação de desigualdades decorrentes de situações históricas particulares.

II – O modelo constitucional brasileiro incorporou diversos mecanismos institucionais para corrigir as distorções resultantes de uma aplicação puramente formal do princípio da igualdade.

III – Esta Corte, em diversos precedentes, assentou a constitucionalidade das políticas de ação afirmativa.

IV – Medidas que buscam reverter, no âmbito universitário, o quadro histórico de desigualdade que caracteriza as relações étnico-raciais e sociais em nosso País, não podem ser examinadas apenas sob a ótica de sua compatibilidade com determinados preceitos constitucionais, isoladamente considerados, ou a partir da eventual vantagem de certos critérios sobre outros, devendo, ao revés, ser analisadas à luz do arcabouço principiológico sobre o qual se assenta o próprio Estado brasileiro.

V - Metodologia de seleção diferenciada pode perfeitamente levar em consideração critérios étnico-raciais ou socioeconômicos, de modo a assegurar que a comunidade acadêmica e a própria sociedade sejam beneficiadas pelo pluralismo de ideias, de resto, um dos fundamentos do Estado brasileiro, conforme dispõe o art. 1º, V, da Constituição.

VI - Justiça social, hoje, mais do que simplesmente redistribuir riquezas criadas pelo esforço coletivo, significa distinguir, reconhecer e incorporar à sociedade mais ampla valores culturais diversificados, muitas vezes considerados inferiores àqueles reputados dominantes.

VII – No entanto, as políticas de ação afirmativa fundadas na discriminação reversa apenas são legítimas se a sua manutenção estiver condicionada à persistência, no tempo, do quadro de exclusão social que lhes deu origem. Caso contrário, tais políticas poderiam converter-se benesses permanentes, instituídas em prol de determinado grupo social, mas em detrimento da coletividade como um todo, situação – é escusado dizer – incompatível com o espírito de qualquer Constituição que se pretenda democrática, devendo, outrossim, respeitar a proporcionalidade entre os meios empregados e os fins perseguidos.

VIII – Arguição de descumprimento de preceito fundamental julgada improcedente.[8]

A Lei n. 12.288, de 20.7.2010, institui o Estatuto da Igualdade Racial, o que é positivo. No entanto, existiam outras categorias a serem alcançadas, especialmente, de pessoas pobres. Daí a mencionada Lei n. 12.711/2012. Da sua justificativa extraio:

Nossa intenção é a de gestar os fundamentos de uma verdadeira elite acadêmica (com "e" maiúsculo e não no sentido pejorativo dos que excluem a maioria da cidadania, mas, ao contrário, dos que apostam decisivamente na sua integração efetiva da sociedade com vista a alcançar o bem-estar social), vale dizer, de professores e pesquisadores capacitados para enfrentarem os desafios da revolução científico-tecnológica do terceiro milênio.[9]

Sabemos que a interpretação teleológica, segundo a vontade, deve ser a objetiva, ou seja, segundo a vontade da lei. A interpretação segundo a vontade do legislador é a subjetiva, a qual converge para a vontade da lei, no sentido de criar uma sociedade mais igualitária. Também, o Decreto n. 7.824, de 11.10.2012, que regulamenta a Lei n. 12.711/2012, evidencia essa pretensão de uma sociedade mais igualitária.

Não se olvide de que a igualdade à qual se refere o art. 5º, caput, da Constituição Federal é relativa, os seja, as pessoas deverão ser tratadas igualmente ou igualmente ou desigualmente, respectivamente, na medida das suas igualdades ou diferenças.

Os colégios militares têm vagas reservadas aos filhos de militares e são, notoriamente, melhores equipados com recursos materiais e humanos que as demais escolas públicas. Assim, não podem ser equiparados às demais escolas públicas para efeitos de seleções em vestibulares de universidades públicas.

Sob a égide de um governo híbrido, de natureza civil-militar, foi emitido parecer vinculante, pelo qual toda AGU e órgãos jurídicos vinculados são obrigados a obedecer, no sentido que os egressos de colégios militares são originários de escolas públicas para os efeitos dos sistemas de cotas das universidades públicas.[10]

Academicamente, não posso concordar com essa posição, embora, profissionalmente, nos termos do cargo que ocupo, seja obrigado cumprir (Lei Complementar n. 73, de 10.2.1993, art. 40, § 1º), esperando que a nova gestão da AGU e o atual Presidente da República altere essa situação. Caso o Parecer n. JL-5 prevaleça inalterado serão mantidos invertidos os fins da Lei n. 12.711/2012 e de seu regulamento, ferindo os princípios da isonomia e da impessoalidade.[11]



[1] TJDFT. Imprensa. Colégio militar não preenche requisitos para o atendimento pelo sistema das. Disponível em: <https://www.tjdft.jus.br/institucional/imprensa/noticias/2014/junho/colegio-militar-nao-preenche-requisitos-para-atendimento-pelo-sistema-de-cotas>. Acesso em: 16.3.2023, às 11h08.

[2] AMADO, Guilherme. Filhos de militares usam cota de universidade para escola pública: Colégios militares têm maioria das vagas reservadas para filhos de militares, que enfrentam concorrência menor no acesso à universidade. Brasília: Metrópolis, 14.11,2021. Disponível em: <https://www.metropoles.com/colunas/guilherme-amado/filhos-de-militares-usam-cota-de-universidade-para-escola-publica>.

[3] Em respeito à dignidade das pessoas e, também, ao necessário sigilo profissional, deixo de indicar dados do caso concreto.

[4] DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 364.

[5] SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 18. ed. São Paulo: Malheiros, 2.000. p. 814.

[6] Idem. p. 816-818.

[7] MESQUITA JÚNIOR, Sidio Rosa de. Universalidade do acesso e gratuidade do ensino superior.  Teresina: Jus Naigandi, ISSN 1518-4862, ano 14, n. 2105, 6.4.2009. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/12580/universalidade-do-acesso-e-gratuidade-do-ensino-superior>. Acesso em: 16.3.23, às 13h51.

[8] STF. Tribunal Pleno. ADPF n. 186. Ricardo Lewandowski. Julgamento, em 26.4.2012. Acesso em: <https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=6984693>. Acesso em: 16.3.2023, às 14h18.

[9] LOBÃO, Nice (PFL/MA). Justificativa. Projeto de Lei n. 73, de 1999. Apresentado, em 24.2.1999. Publicado no Diário da Câmara dos Deputados, de 16.3.1999. p. 9546-9547. Disponível em: <http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf/DCD16MAR1999.pdf>. Acesso em 16.3.2023, às 14h54.

[10] AGU. Parecer n. JL-5. José Levi Mello do Amaral Júnior, Processo Administrativo n. 00731.000566/2019-03. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/AGU/Pareceres/2019-2022/PRC-JL-05-2020.htm>. Acesso em: 16.3.2023, às 15h35.

[11] Não se olvide que o ex-Presidente da República é Oficial do Exército na reserva não remunerada e que a sua filha estudava no Colégio Militar de Brasília (BASSI, Fernanda; FAGUNDES, Murilo. Filha de Bolsonaro é admitida em colégio militar sem processo seletivo: segundo o Exército, regulamento da instituição de ensino permite a matrícula de alunos em "casos considerados especiais". Poder 360, 28.10.2021. Disponível em: <https://www.poder360.com.br/brasil/filha-de-bolsonaro-e-admitida-em-colegio-militar-sem-processo-seletivo/>. Acesso em: 16.3.2023, às 15h45.

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