quinta-feira, 27 de outubro de 2016

Greve não é férias. A administração pública deve cortar pontos e decidir ao final da greve sobre as faltas ao trabalho.



Hoje, no julgamento do Recurso Extraordinário n. 693456, o Supremo Tribunal Federal aprovou a seguinte tese de repercussão geral:
A administração pública deve proceder ao desconto dos dias de paralisação decorrentes do exercício do direito de greve pelos servidores públicos, em virtude da suspensão do vínculo funcional que dela decorre, permitida a compensação em caso de acordo. O desconto será, contudo, incabível se ficar demonstrado que a greve foi provocada por conduta ilícita do Poder Público.[1]
Quem tiver interesse em ver a íntegra do voto do Relator, Min. Dias Toffoli, pode acessá-la facilmente.[2] Fiquei feliz porque, em 25.11.2008, proferi parecer em processo administrativo em noutra autarquia, no qual afirmei:
9. Greve é direito constitucionalmente assegurado, sendo que a inércia do Poder Legislativo exigiu a atividade legislativa criadora dos Juizes, mencionada por Canotilho como presente, indiscutivelmente existente, e necessária[3]. Com efeito, foi em sede dos Mandados de Injunção n. 670, 708 e 712, que o STF decidiu ser aplicável a Lei n. 7.783, de 28.6.1989.[4]
10. Esta autarquia não pode declarar a invalidade do Decreto n. 1.480. de 3.5.1995. Entretanto, ele parece desafiar o disposto no art. 5º, §, 2º da Lei n. 7.783/1989 que dispõe: “É vedado às empresas adotar meios para constranger o empregado ao comparecimento ao trabalho, bem como capazes de frustrar a divulgação do movimento”. E, ainda que fosse para aplicar o preceito do art. 1º do decreto nupercitado, ante a determinação para efetivação da mencionada lei, sua incidência só poderá compreender o período posterior à intimação da confederação representante da categoria da decisão que declarou a ilegalidade da greve (tendo sido expedido telegrama no dia 16.10.2008, ela deverá ser considerada intimada em 17.10.2008, e, portanto, os efeitos só se produzirão a partir de 18.10.2008). Ademais, a decisão monocrática pende de julgamento de recurso, sendo oportuno aguardar o trânsito em julgado da decisão colegiada a ser proferida nos autos da ação cautelar em discussão.
11. No dia 9.10.2008 fui verbalmente agredido pelo comando de greve porque me neguei a me identificar a ele. Por isso, chamei a Polícia Militar do Distrito Federal, a qual encaminhou duas viaturas à autarquia. No entanto, é notório a todos do órgão que o piquete estabelecido estava a impedir a entrada de servidores, sendo que foi fechada, com a anuência do órgão, a entrada sul do prédio. Com isso, quem não quisesse se sujeitar ao movimento tinha que passar pela entrada, identificar-se ao comando de greve e provar que não era servidor da autarquia. Todavia, não verifico qualquer documento pedindo a intervenção policial para apuração de eventual crime contra a organização do trabalho que estivesse sendo perpetrado, o que verifico é um apoio tácito ao movimento, na medida em que os servidores tiveram a entrada dificultada ao prédio pelo fechamento de um dos seus acessos.
12. Não vi a presença de qualquer outro policial nas imediações do prédio, além dos que chamei quando fui importunado em minha liberdade de ir e vir e em minha honra, e posso afirmar que o piquete foi mantido até o dia 24.10.2008. Ora, tendo uma decisão judicial que declarava a ilegalidade da greve, era dever da diretoria da autarquia criar mecanismos para favorecer a entrada daqueles que pretendessem retornar ao trabalho. Por isso, entendo que, havendo negligência da administração pública, mesmo após a intimação [do sindicato], é necessário instaurar procedimento investigatório para saber se é o caso de exigir do movimento de greve o valor da multa diária pelo descumprimento da decisão ou se houve negligência dos servidores que não retornaram ao serviço antes de 28.10.2008. De qualquer modo, entendo precipitado qualquer desconto de valores neste momento.
13. Sou uma pessoa de postura intransigente na defesa dos meus direitos subjetivos. No entanto, nem todos fazem aquilo que recomenda Jhering em sua célebre Luta pelo Direito[5]. E, mesmo eu, tenho consignado em minhas manifestações que essa é uma luta inglória [nesta autarquia]. Destarte, é por considerar que houve negligência da administração pública na condução de suas atividades durante a greve deflagrada, que entendo ser inoportuno o desconto de valores dos vencimentos de servidores.
14. Não tenho notícia de ocupante de cargo comissionado que tenha aderido à greve, mas não me assustaria se recebesse a notícia de que alguns faltaram nos dias de greve, o que seria natural porque um acesso foi interditado, bem como o comando de greve fez piquete na entrada do estacionamento que fica localizado no subsolo do prédio.
15. É por entender que ninguém pode ser responsabilizado por ato de terceiro, salvo se ocupar a posição de garante, que falo da impossibilidade de descontar valores no momento, bem como opino para que isso só venha ocorrer após análises particularizadas.
16. Pode ser que se argumente que a determinação para fechar um dos acessos decorreu da necessidade de oferecer segurança a quem não aderisse ao movimento, propiciando maior número de vigilantes na entrada livre. Ocorre que, nem ali o acesso era livre.
17. Fui vaiado porque acionei a Polícia Militar do Distrito Federal, porque exigi passagem ao meu local de trabalho, mesmo não integrando o quadro de servidores da autarquia. Pior seria se eu fosse um servidor [da autarquia], sendo plenamente compreensível a posição daqueles que não se sentiram em condições de enfrentar as ameaças do comando de greve, até porque não se podia vislumbrar qualquer medida da administração pública para proteção da liberdade e da honra daqueles que pretendessem trabalhar normalmente durante aquele período.
18. Mesmo quem pretendia lutar como eu para reduzir a notoriedade conquistada [pela autarquia], em função da atuação do lobby da empreiteiras, pode ver durante os dias de greve, lobistas parados no lado exterior do prédio, impedidos de entrar pelo comando de greve. Até eu desisti e estou vivendo meus últimos dias aqui, apenas lamentando porque tudo continuará como antes. De qualquer modo, não posso compactuar com o desconto de dias não trabalhados quando a administração pública concorreu significativamente para isso.
19. Estagiários lotados neta PFE, durante o período da greve, não conseguiam adentrar no prédio todos os dias, conforme recebi a informação de alguns. Tal fato é notório em nosso meio, o que prescinde de provas.
20. Aqueles que faltaram durante os dias de greve podem ter aderido ao movimento, bem como podem ter sido impedidos de trabalhar com a participação da administração pública, em face da sua postura negligente, o que torna imperiosa a análise individualizada de cada caso.[6]
Interessante notar que a inércia da administração pública se faz presente frequentemente, necessitando de um basta, sendo que a decisão proferida hoje pelo STF, tende a moralizar um pouco a situação. Nesse contexto de falsa greve, sem descontos de salários por participação da chefia, em 2012, proferi outro parecer, do qual transcrevo parte:
14. Estou convencido de que o exposto se aplica integralmente ao caso vertente porque os problemas que seriam causadores das recentes greves dos servidores da [autarquia] decorrem de fomento dela própria...
15. Na ocasião de uma das greves registrei a minha insatisfação por não ter podido trabalhar devido à longa greve que perturbou as atividades da [autarquia], tendo publicado:
Hoje, 7.4.2010, os grevistas bloquearam os acessos ao prédio da [autarquia]. Telefonei para a Polícia Militar, às 7h52, esperei até às 8h40 e não apareceu nenhuma viatura, nenhum policial, mesmo sendo certa a prática de crime contra a organização de trabalho (sobre tal crime já tratei anteriormente neste blog). Voltei para a minha casa consciente de que vivo em país anômico.
Anomia é ausência de regras e na criminologia, bem como na Sociologia, é tratada como o sentimento que a pessoa tem de que não precisa cumprir as normas. A [autarquia], institucionalmente, por meio da sua direção superior, fomenta a greve publicando matérias tendenciosas, incita a radicalização para manter pagamento decorrente de ato administrativo inconstitucional e eu, na minha fragilidade, sou obrigado a me quedar impotente perante o sistema.
(...)
Fui Oficial da Polícia Militar do Distrito Federal e entendo porque não foi enviada nenhuma viatura quando solicitei. Os crimes contra a organização do trabalho são de menor potencial ofensivo. Ainda que não fossem, apenas daria notoriedade aos grevistas e os policiais ainda seriam os vilões. Essa é a cultura que os movimentos dos "Vamos à Luta Companheiros!" estabeleceu.
Tudo isso, só poderia resultar em anomia.
16. Assim como [na outra autarquia], o meu acesso ao local de trabalho foi impedido, mas também não se cortou ponto de qualquer servidor, não se cumpriu o dever-ser (preconizado por Kant) e o Presidente da [autarquia] confessou apoiar a greve, in verbis:
Desde 16 de março, data do início da paralisação, a Administração [da autarquia]... reconheceu a justiça da greve e não poupou esforços para mediar, junto a interlocutores internos e externos, o atendimento ao pleito de docentes e técnicos, buscando assim o tratamento isonômico de todos os servidores da [instituição].
17. A Excelentíssima Presidente da República Dilma Roussef, enquanto candidata, esteve [no setor fechado e as suas portas] foram excepcionalmente abertas a ela, o que foi largamente divulgado na mídia, o que evidencia que todos sabiam da greve concretizada na [autarquia], bem como do fechamento [daquele setor], sendo que não se pode atribuir ao [sindicato] a responsabilidade pelos danos causados ao erário, mas ao conjunto de causas que passam até mesmo pelo fomento institucional da paralização.
18. A greve não pode ser considerada caso fortuito ou força maior, pois estes significam:
O caso fortuito é, no sentido exato de sua derivação (acaso, imprevisão, acidente), o caso em que não se poderia prever e se mostra superior às forças ou à vontade ou ação do homem. O caso de força maior é o fato que se prevê ou é previsível, mas não se pode igualmente evitar, visto que é mais forte que a vontade ou a ação do homem. Assim, ambos se caracterizam pela irrestibilidade. E se distinguem pela previsibilidade ou imprevisibilidade.[7]
19. Ainda que eu considerasse a distinção simplista dos manuais, em que a força maior provém de ação humana e o caso fortuito da natureza, a hipótese de greve não seria de caso fortuito capaz de isentar a [autarquia] da responsabilidade. Com efeito, a greve de servidores é ato de agente público, fazendo incidir a responsabilidade administrativa pelos atos dos seus agentes. Destarte, descontar os dias não utilizados porque o acesso à lanchonete era impossível, uma vez que [aquele setor da instituição estava fechado], seria o mínimo que se poderia fazer.
20. Não se olvide que a greve foi, antes de tudo, fomentada pela [diretoria da autarquia], o que afasta a possibilidade de se pretender, pela participação do [sindicato], a propositura de ação regressiva contra tal sindicato. Este, ao meu sentir, sequer é legítimo para representar qualquer categoria de pessoa, em face de abrigar interesses notadamente colidentes.
(...)
22. Depois de apresentar as diversas razões pelas quais entendo que não se pode pretender responsabilizar terceiros por eventuais danos decorrentes da greve, resta apenas desejar utopicamente com Montesquieu:
Se eu pudesse fazer com que todo mundo tivesse novas razões para estimar seus deveres, seu príncipe, sua pátria, suas leis; com que todos pudessem se sentir melhor sua felicidade em cada país, em cada governo, em cada posto onde cada qual se achasse, julgar-me-ia o mais feliz dos mortais.
Se eu pudesse fazer com que aqueles que governam aumentassem seus conhecimentos acerca daquilo que devem prescrever, e aqueles que obedecem encontrassem um novo prazer em obedecer, julgar-me-ia o mais feliz dos mortais.[8]
23. Não estou a sugerir a obediência cega à norma, eis que concordo com Durkheim, no sentido de que o delito é normal, útil e necessário ao desenvolvimento social. Porém, não posso admitir que a situação de anomia tenha reflexos para prejudicar imotivadamente administrados.
Concluo reafirmando a minha felicidade porque parto do pressuposto de que a Administração Pública tem sido conivente com o abuso do direito de greve, devendo ficar claro que a suspensão do contrato de trabalho produz consequências práticas, não devendo a greve ser tratada como férias prolongadas em prejuízo do povo que deveria ser atendido pelos servidores parados.


[1] BRASIL. STF. Notícias do STF. Dias parados por greve de servidor devem ser descontados, exceto se houver acordo de compensação. 27.10.2016. Disponível em: <http://stf.jus.br/portal/cms/ verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=328294>. Acesso em: 27.10.2017, às 21h17.
[2] BRASIL. STF. Plenário. Voto do relator no RE n. 693456/RJ. 27.10.2016. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/RE693456.pdf>. Acesso em: 27.10.2017, às 21h24.
[3] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 4. ed. Coimbra: Almedina, 2.000. p. 682.
[4] STF, Informativo n. 485:
“Mandado de Injunção e Direito de Greve – 7 : O Tribunal concluiu julgamento de três mandados de injunção impetrados, respectivamente, pelo Sindicato dos Servidores Policiais Civis do Espírito Santo - SINDIPOL, pelo Sindicato dos Trabalhadores em Educação do Município de João Pessoa - SINTEM, e pelo Sindicato dos Trabalhadores do Poder Judiciário do Estado do Pará - SINJEP, em que se pretendia fosse garantido aos seus associados o exercício do direito de greve previsto no art. 37, VII, da CF ("Art. 37. ... VII - o direito de greve será exercido nos termos e nos limites definidos em lei específica;") - v. Informativos 308, 430, 462, 468, 480 e 484. O Tribunal, por maioria, conheceu dos mandados de injunção e propôs a solução para a omissão legislativa com a aplicação, no que couber, da Lei 7.783/89, que dispõe sobre o exercício do direito de greve na iniciativa privada. MI 670/ES, rel. orig. Min. Maurício Corrêa, rel. p/ o acórdão Min. Gilmar Mendes, 25.10.2007. (MI-670) MI 708/DF, rel. Min. Gilmar Mendes, 25.10.2007. (MI-708) MI 712/PA, rel. Min. Eros Grau, 25.10.2007. (MI-712)
Mandado de Injunção e Direito de Greve – 8: No MI 670/ES e no MI 708/DF prevaleceu o voto do Min. Gilmar Mendes. Nele, inicialmente, teceram-se considerações a respeito da questão da conformação constitucional do mandado de injunção no Direito Brasileiro e da evolução da interpretação que o Supremo lhe tem conferido. Ressaltou-se que a Corte, afastando-se da orientação inicialmente perfilhada no sentido de estar limitada à declaração da existência da mora legislativa para a edição de norma regulamentadora específica, passou, sem assumir compromisso com o exercício de uma típica função legislativa, a aceitar a possibilidade de uma regulação provisória pelo próprio Judiciário. Registrou-se, ademais, o quadro de omissão que se desenhou, não obstante as sucessivas decisões proferidas nos mandados de injunção. Entendeu-se que, diante disso, talvez se devesse refletir sobre a adoção, como alternativa provisória, para esse impasse, de uma moderada sentença de perfil aditivo. Aduziu-se, no ponto, no que concerne à aceitação das sentenças aditivas ou modificativas, que elas são em geral aceitas quando integram ou completam um regime previamente adotado pelo legislador ou, ainda, quando a solução adotada pelo Tribunal incorpora "solução constitucionalmente obrigatória". Salientou-se que a disciplina do direito de greve para os trabalhadores em geral, no que tange às denominadas atividades essenciais, é especificamente delineada nos artigos 9 a 11 da Lei 7.783/89 e que, no caso de aplicação dessa legislação à hipótese do direito de greve dos servidores públicos, afigurar-se-ia inegável o conflito existente entre as necessidades mínimas de legislação para o exercício do direito de greve dos servidores públicos, de um lado, com o direito a serviços públicos adequados e prestados de forma contínua, de outro. Assim, tendo em conta que ao legislador não seria dado escolher se concede ou não o direito de greve, podendo tão-somente dispor sobre a adequada configuração da sua disciplina, reconheceu-se a necessidade de uma solução obrigatória da perspectiva constitucional. MI 670/ES, rel. orig. Min. Maurício Corrêa, rel. p/ o acórdão Min. Gilmar Mendes, 25.10.2007. (MI-670). MI 708/DF, rel. Min. Gilmar Mendes, 25.10.2007. (MI-708). MI 712/PA, rel. Min. Eros Grau, 25.10.2007. (MI-712).
Mandado de Injunção e Direito de Greve – 9: Por fim, concluiu-se que, sob pena de injustificada e inadmissível negativa de prestação jurisdicional nos âmbitos federal, estadual e municipal, seria mister que, na decisão do writ, fossem fixados, também, os parâmetros institucionais e constitucionais de definição de competência, provisória e ampliativa, para apreciação de dissídios de greve instaurados entre o Poder Público e os servidores com vínculo estatutário. Dessa forma, no plano procedimental, vislumbrou-se a possibilidade de aplicação da Lei 7.701/88, que cuida da especialização das turmas dos Tribunais do Trabalho em processos coletivos. No MI 712/PA, prevaleceu o voto do Min. Eros Grau, relator, nessa mesma linha. Ficaram vencidos, em parte, nos três mandados de injunção, os Ministros Ricardo Lewandowski, Joaquim Barbosa e Marco Aurélio, que limitavam a decisão à categoria representada pelos respectivos sindicatos e estabeleciam condições específicas para o exercício das paralisações. Também ficou vencido, parcialmente, no MI 670/ES, o Min. Maurício Corrêa, relator, que conhecia do writ apenas para certificar a mora do Congresso Nacional. MI 670/ES, rel. orig. Min. Maurício Corrêa, rel. p/ o acórdão Min. Gilmar Mendes, 25.10.2007. (MI-670). MI 708/DF. Rel. Min. Gilmar Mendes, 25.10.2007. (MI-708). MI 712/PA, Rel. Min. Eros Grau, 25.10.2007. (MI-712).
[5] VON IHERING, Rudolf. A luta pelo direito. 21. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002.
[6] Em razão do necessário sigilo profissional, deixo de apresentar dados concretos da autarquia e de informações internas.
[7] SILVA, De Plácido e. Vocabulário jurídico. 20. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p. 159.
[8] MONTESQUIEU. Do espírito das leis. São Paulo: Martin Claret, 2002. p. 14.

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