domingo, 9 de fevereiro de 2020

Lei n. 13.964/2019 e a lei hedionda

1. Introdução
Inicialmente, gostaria de destacar que, recentemente publiquei artigo jurídico que se iniciou com a seguinte afirmação:
Todo governo ditatorial busca legitimar o seu “poder” por meio do Direito, a maior ficção em favor do poder usurpador que se pode conhecer. Mas, no afã condenatório, erra exageradamente. Uma prova do que se afirma é a nova redação do novo art. 122 do Código Penal, instituído pela Lei n. 13.968, de 26.12.2019, in litteris:[1]
O mesmo artigo foi concluído com a seguinte afirmação:
Concluo afirmando que todo governo austero, tendente a uma ditadura, cuida primeiro de mudar a Constituição e as leis criminais. É o que se vê no presente governo.[2]
Em meio às afirmações de parlamentares, filhos do atual Presidente da República, também deste, exaltando a ditadura,[3] emergiu, durante a campanha Presidencial da atual legislatura, o Projeto de Lei n. 10.372/2018, de autoria de vários Deputados Federais.[4] É denominado Projeto Alexandre de Moraes e de Pacote Anticrimes, hoje, lei anticrimes.
Neste artigo, nos ocuparemos da parte da lei que, segundo a sua ementa, “Aperfeiçoa a legislação penal e processual penal” se ocupa da Lei n. 8.072, de 25.7.1990. Com Alberto Silva Franco, a denomino de lei hedionda, eis que é pior do que os crimes que enumera.[5]
2. Acordo de não persecução penal em crime hediondo ou assemelhado
No projeto de lei originário, o art. 2º altera o Código de Processo Penal para introduzir o art. 28-A, que agasalha o acordo de não persecução penal, vedando a sua incidência no caso crime hediondo ou assemelhado (§ 2º, inc. II). Na lei sancionada, tal vedação não é expressa. Tal acordo, de conteúdo material, por ser medida despenalizadora, será objeto de estudo em outro momento.
Talvez alguns venham entender que, ante delito hediondo ou assemelhado o acordo de não persecução penal não seja “necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime” (Lei n. 13.964/2019, art. 28-A, caput), mas outros poderão entender ser possível o acordo, especialmente, em favor de acusado de tráfico ilícito de psicotrópico.
3. Progressão de regimes e livramento condicional
Ainda no projeto originário, o art. 83, inc. V, do CP, passa a ter a seguinte redação:
V – cumpridos mais de dois terços da pena, nos casos de condenação por crime hediondo ou a ele equiparado (arts. 1º e 2º da Lei 8.072/1990), se o apenado não for reincidente específico em crimes desta natureza.
O referido inciso não consta da nova lei. Assim, aparentemente ficam mantidos os rigores ao livramento condicional a agente de crime que não é hediondo – tráfico de pessoas -, haja vista a previsão legal.
Faço aqui referência à discussão legislativa que levou ao silêncio da Lei n. 13.964/2019 sobre os aspectos já mencionados. Isso se deu porque no seu art. 4º, a nova lei alterou o Código de Execução Criminal (Lei n. 7.210, de 11.7.1984) e nessa alteração, trouxe significativos rigores aos crimes hediondos e assemelhados, mas manteve a regra anterior da Lei n. 8.072/1984, qual seja: primário em crime hediondo e assemelhado deverá cumprir 40% (2/5) para progredir de regime, enquanto o reincidente, deverá cumprir 60% (3/5). Daí a nova lei revogar o art. 2º da Lei n. 8.072/1990 (art. 19).
Com a nova lei, o art. 112, inc. VI, alínea “a”, da Lei n. 7.210/1984, o condenado primário que for condenado por crime hediondo ou assemelhado, terá o requisito temporal de 50% (metade) da pena para progressão de regime. O mesmo inc. VI, também, proíbe a concessão de livramento condicional a tal condenado.[6]
Observe-se o que dispõe, ante a alteração da Lei n. 13.964/2019, o art. 112 do Código de Execução Criminal:
Art. 112. Omissis.
(...)
VI - 50% (cinquenta por cento) da pena, se o apenado for:
a) condenado pela prática de crime hediondo ou equiparado, com resultado morte, se for primário, vedado o livramento condicional;
(...)
VII - 60% (sessenta por cento) da pena, se o apenado for reincidente na prática de crime hediondo ou equiparado;
VIII - 70% (setenta por cento) da pena, se o apenado for reincidente em crime hediondo ou equiparado com resultado morte, vedado o livramento condicional.
Se entendermos que o art. 83, inc. V, do Código Penal está tacitamente revogado porque a nova lei regulou inteiramente a matéria de forma diversa, estabeleceremos o absurdo de termos a proibição de concessão de livramento condicional a condenado primário, mas permitir o livramento condicional ao reincidente em crime hediondo ou assemelhado.
Dizer que a lei geral quis proibir, mas que a especial retirou a proibição, regulando inteiramente a matéria e que o esquecimento de revogar um dispositivo deverá ser entendido como revogação tácita, encontrará amparo na sólida doutrina de Carlos Maximiliano,[7] mas levará ao absurdo exposto no parágrafo anterior.
Uma postura garantista, como a de Paulo Queiroz, que pretende um “sistema integrado de direito, processo e execução penal”,[8] ao meu sentir, a consideração razoável será a de que se a lei não proíbe, não poderá haver restrição (Constituição Federal, art. 2º, inc. II). No entanto, até mesmo o Prof. Dr. Paulo Queiroz poderá vir a se posicionar de maneira diversa. É conveniente esperar o que os tribunais dirão. Acredito que os tribunais farão interpretação teleológica e, como a Lei n. 13.964/2019 visa ao rigor, entenderão que está mantido o inc. V do art. 83 do Código Penal.[9]
4. Novo rol de crimes hediondos: alguns complicadores
Voltando à exposição que é feita a partir do projeto de lei, a terceira referência à Lei n. 8.072/1990 que consta do projeto originário é a do art. 7º, que altera o artigo primeiro da lei hedionda, tornando-a ainda pior ao introduzir:
Art. 1º. (...)
I – homicídio (art. 121), quando praticado em atividade típica de grupo de extermínio, ainda que cometido por um só agente, e homicídio qualificado (art. 121, § 2º, I, II, III, IV, V, VI, VII e VIII).
(....)
II – roubo qualificado pelo emprego de arma de fogo (art. 157, § 2º-A, inciso I), quando o agente mantém a vítima em seu poder, restringindo sua liberdade (art. 157, § 2º, inciso V), quando da violência resulta lesão corporal grave ou morte (art. 157, § 3º) ou quando a violência ou grave ameaça é exercida com emprego de arma de fogo de uso restrito ou proibido (art. 157, §4º).
III – extorsão qualificada pela restrição da liberdade da vítima, ocorrência de lesão corporal ou morte (art. 158, §3º);
(...)
IX – furto qualificado pelo emprego de explosivo ou de artefato análogo que cause perigo comum (art. 155, § 4º-A).
Parágrafo único. Consideram-se também hediondos os crimes de: genocídio (arts. 1º., 2º e 3º da Lei n. 2.889, de 1º de outubro de 1956), tentado ou consumado; posse ou porte ilegal de arma de fogo de uso proibido, comércio ilegal de armas de fogo e tráfico internacional de arma de fogo, acessório ou munição (arts. 16, 17 e 18, respectivamente, da Lei 10.826, de 10 de dezembro de 2003), e organização criminosa voltada para a prática desses crimes (art. 2º da Lei 12.850, de 2 de agosto de 2013).
Art. 2º. Os crimes hediondos, a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, associação para o tráfico (art. 35 da Lei n. 11.343/2006) e o terrorismo são insuscetíveis de:
(....)
§ 2º A progressão de regime, no caso dos condenados aos crimes previstos neste artigo, dar-se-á após o cumprimento de metade da pena, se o apenado for primário, e de dois terços, se reincidente.[10][11]
A Lei n. 13.964, de 24.12.2019, publicada no mesmo dia, traz, no art. 5º, as seguintes alterações sobre a Lei n. 8.072/1990:
Art. 1º (...)
I - homicídio (art. 121), quando praticado em atividade típica de grupo de extermínio, ainda que cometido por um só agente, e homicídio qualificado (art. 121, § 2º, incisos I, II, III, IV, V, VI, VII e VIII);
(...)
II - roubo:
a) circunstanciado pela restrição de liberdade da vítima (art. 157, § 2º, inciso V);
b) circunstanciado pelo emprego de arma de fogo (art. 157, § 2º-A, inciso I) ou pelo emprego de arma de fogo de uso proibido ou restrito (art. 157, § 2º-B);
c) qualificado pelo resultado lesão corporal grave ou morte (art. 157, § 3º);
III - extorsão qualificada pela restrição da liberdade da vítima, ocorrência de lesão corporal ou morte (art. 158, § 3º);
(...)
IX - furto qualificado pelo emprego de explosivo ou de artefato análogo que cause perigo comum (art. 155, § 4º-A).
Parágrafo único. Consideram-se também hediondos, tentados ou consumados:
I - o crime de genocídio, previsto nos arts. 1º, 2º e 3º da Lei n. 2.889, de 1º de outubro de 1956;
II - o crime de posse ou porte ilegal de arma de fogo de uso proibido, previsto no art. 16 da Lei n. 10.826, de 22 de dezembro de 2003;
III - o crime de comércio ilegal de armas de fogo, previsto no art. 17 da Lei n. 10.826, de 22 de dezembro de 2003;
IV - o crime de tráfico internacional de arma de fogo, acessório ou munição, previsto no art. 18 da Lei n. 10.826, de 22 de dezembro de 2003;
V - o crime de organização criminosa, quando direcionado à prática de crime hediondo ou equiparado.
O novo inc. I do art. 1º transcrito, comete o equívoco de inserir a qualificadora do inc. VIII do § 2º do art. 121 do Código Penal. Todavia, tal dispositivo foi vetado, conforme se pode observar:
Inciso VIII do § 2º do art. 121 do Decreto-Lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940, alterado pelo art. 2º do projeto de lei
“VIII - com emprego de arma de fogo de uso restrito ou proibido:”
Razões do veto
“A propositura legislativa, ao prever como qualificadora do crime de homicídio o emprego de arma de fogo de uso restrito ou proibido, sem qualquer ressalva, viola o princípio da proporcionalidade entre o tipo penal descrito e a pena cominada, além de gerar insegurança jurídica, notadamente aos agentes de segurança pública, tendo em vista que esses servidores poderão ser severamente processados ou condenados criminalmente por utilizarem suas armas, que são de uso restrito, no exercício de suas funções para defesa pessoal ou de terceiros ou, ainda, em situações extremas para a garantia da ordem pública, a exemplo de conflito armado contra facções criminosas.”
O Ministério da Justiça e Segurança Pública e a Advocacia-Geral da União manifestaram-se pelo veto aos seguintes dispositivos.[12]
Esse equívoco não gera maiores problemas, até porque parece que o Presidente da República pretendia apenas colocar a sociedade e o Poder Judiciário contra o Congresso Nacional ao sancionar a lei. Ela criou efetivos problemas imediatos na administração do Poder Judiciário, mas que constarão de outro estudo.
A conduta preparatória, em regra não é crime. Excepcionalmente, ela constituirá crime autônomo. Daí a torná-la crime mais grave do que muitos crimes com violência ou grave ameaça contra a pessoa, é uma incoerência própria de um povo doente, com representação executiva, legislativa e judiciária doentes.
5. Conclusão
A nova lei entrou em vigor no dia 23.1.2020, quando, então, muitos condenados presos terão a novatio legis in mellius (lex mitior) em favor dos mesmos, embora com pequeníssima redução do requisito temporal para progressão de regime, isso pelo arredondamento de 1/6 para 16%.
Em síntese, a Lei n. 13.964/2019 torna a lei hedionda ainda mais hedionda, isso porque amplia o rol de crimes hediondos, inserindo até crime em que a conduta preparatória constitui crime autônomo (art. 1º, parágrafo único, inc. V). Nessa parte, a nova lei só incidirá para crimes praticados a partir de 23.1.2020.
Aumentou-se o rol dos crimes hediondos, criou-se imbróglios quanto ao alcance do livramento condicional aos condenados por crimes hediondos e assemelhados. Mas, é a lei que temos.
Muitas questões já estão judicializadas, mas outras advirão, esperando que o STF não deixe serem perpetuadas violações ao princípio da proporcionalidade e que logo o governo se aperceba do erro de termos um rigor jurídico-criminal como panaceia para os problemas de segurança pública da sociedade atual.
Referências
BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei n. 10.372, apresentado em 6.6.2018. Deputados Federais José Rocha (PR/BA), Marcelo Aro (PHS/MG) Wladimir Costa (SD/PA) et al. Disponível em: <https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2178170>. Acesso em: 2.1.2020, às 2h05.
BRASIL. Presidência da República. Mensagem n. 726, de 24.12.2019. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/Msg/VEP/VEP-726.htm>. Acesso em: 29.1.2020, às 20h07.
CAMPOS, João Pedroso de. Doze vezes em que Bolsonaro e seus filhos exaltaram e acenaram à ditadura: Presidente, que nega ter havido golpe militar em 1964, disse ontem que “está sonhando” quem cogita um “novo AI-5”, como fez o filho Eduardo. vejaabril.com. Disponível em: <https://veja.abril.com.br/politica/doze-vezes-em-que-bolsonaro-e-seus-filhos-exaltaram-e-acenaram-a-ditadura/>. Acesso em: 2.1.2020, às 2h14.
FRANCO, Alberto Silva. Crimes hediondos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991.
MAXILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 18. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000. p. 358.
MESQUITA JÚNIOR, Sidio Rosa de. Participação em suicídio. Novo crime formal e que pode não ser propriamente contra a vida. Teresina: Revista Jus Navigandi, Dez2019. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/78705/participacao-em-suicidio-novo-crime-formal-e-que-pode-nao-ser-propriamente-contra-a-vida>. Acesso em: 2.1.2020, às 1h38.
QUEIROZ, Paulo. Direito processual penal: por um sistema integrado de direito, processo e execução penal. Salvador: JusPodivm. 2018. passim.


[1] MESQUITA JÚNIOR, Sidio Rosa de. Participação em suicídio. Novo crime formal e que pode não ser propriamente contra a vida. Teresina: Revista Jus Navigandi, Dez2019. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/78705/participacao-em-suicidio-novo-crime-formal-e-que-pode-nao-ser-propriamente-contra-a-vida>. Acesso em: 2.1.2020, às 1h38.
[2] Ibidem.
[3] CAMPOS, João Pedroso de. Doze vezes em que Bolsonaro e seus filhos exaltaram e acenaram à ditadura: Presidente, que nega ter havido golpe militar em 1964, disse ontem que “está sonhando” quem cogita um “novo AI-5”, como fez o filho Eduardo. vejaabril.com. Disponível em: <https://veja.abril.com.br/politica/doze-vezes-em-que-bolsonaro-e-seus-filhos-exaltaram-e-acenaram-a-ditadura/>. Acesso em: 2.1.2020, às 2h14.
[4] BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei n. 10.372, apresentado em 6.6.2018. Deputados Federais José Rocha (PR/BA), Marcelo Aro (PHS/MG) Wladimir Costa (SD/PA) et al. Disponível em: <https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2178170>. Acesso em: 2.1.2020, às 2h05.
[5] FRANCO, Alberto Silva. Crimes hediondos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991. passim.
[6] O ideal seria a alteração expressa do art. 83, inc. V, do Código Penal, mas a nova lei optou por regular a matéria no art. 112 da Lei n. 7.210/1984, talvez por isso ficou o descompasso no tratamento de condenados primários e reincidentes.
[7] MAXILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 18. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000. p. 358.
[8] QUEIROZ, Paulo. Direito processual penal: por um sistema integrado de direito, processo e execução penal. Salvador: JusPodivm. 2018. passim.
[9] Código Penal, art. 83:
V - cumpridos mais de dois terços da pena, nos casos de condenação por crime hediondo, prática de tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, tráfico de pessoas e terrorismo, se o apenado não for reincidente específico em crimes dessa natureza.
[10] Ibidem.
[11] O Deputado Federal José Alves Rocha (PR-BA), quem assinou o PL n. 10.372/2018, relator da CPI do BNDES, também é um dos envolvidos na Operação Lava Jato.
[12] BRASIL. Presidência da República n. 726, de 24.12.2019. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/Msg/VEP/VEP-726.htm>. Acesso em: 29.1.2020, às 20h07.

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