domingo, 31 de dezembro de 2017

Resenha, com opiniões pessoais, da "Carta Sobre a Felicidade (a Meneceu)", de Epicuro

1. Introdução[1]
1.1 Cronologia de Epicuro[2]
Epicuro (341 a 270 a.C.), nasceu na Ilha de Samos, mas ostentava a cidadania ateniense, herdada do pai. Dos 14 aos 18 anos foi aluno de Pânfilo, filósofo platônico. Em 323 a.C., transferiu-se para Atenas para cumprir 2 anos de serviço militar obrigatório aos homens jovens. Ali encontrou Menandro, futuro dramaturgo, de quem se tornou amigo e, também, grandes filósofos, dentre eles Teofrasto, sucessor de Aristóteles no Liceu, e Xenócrates, diretor da academia.
O sucessor de Alexandre Magno decidiu, em 322 a.C., expulsar todos os colonos Atenienses da ilha de Samos, com isso todos os familiares de Epicuro foram desterrados para Cólofon, costa asiática, onde ele foi viver. Perto dali, em Teos, passou a acompanhar as lições de Nausífanes, atomista que iniciou Demócrito, mas que empreendeu e criou sua própria escola em Cólofon.
Em 311-310 a.C. Epicuro tentou, sem sucesso, criar uma escola, em Mitilene, ilha de Lesbos, isso devido à relutância dos aristotélicos que ali imperavam. Então, ele se mudou para Lâmpsaco, nos Dardanelos, onde criou sua escola, mas com forte oposição dos platônicos. Ali encontrou os amigos que o acompanharam por toda vida: Hermarco, Colotes, Metrodoro, Pítocles e Heródoto.
As três cartas mais célebres de Epicuro, que expressam o seu pensamento, foram dirigidas aos dois últimos e a Ameceu. Mais tarde, em 306 a.C. se transferiu para Atenas, onde adquiriu ampla casa nos arredores da cidade e instalou sua escola, logo conhecida como o “Jardim de Epicuro”, onde seguidores passaram a residir em tendas.
Após a sua morte, Hermarco o sucedeu na direção da escola.
1.2 A doutrina de Epicuro[3]
A carta sobre a felicidade é esclarecedora para evitar confusões entre o epicurismo e o hedonismo puro e simples.[4] O epicurismo não confunde com a busca pelo gozo imoderado dos prazeres mundanos. Entre os mestres e discípulos do Jardim de Epicuro prevalecia o fervor de uma vida quase ascética,[5] comendo hortaliças (eles próprios cultivavam), pão e tomando água. Nas ocasiões especiais, acresciam queijo.
Alguns afirmam que Epicuro é uma imitação superficial de Demócrito,[6] este um original e profundo filósofo. Foi Karl Marx (1818-1883) quem primeiro tentou corrigir esse equívoco, isso em 1841, na sua tese de doutorado A relação entre a filosofia de Epicuro e a de Demócrito,[7] enunciando:
Segundo Marx a teoria atômica de Demócrito, que se distingue primeiramente pela crença universal na lei de causa e efeito, aplica-se indistintamente tanto ao mundo da natureza quanto ao homem. Portanto, Demócrito, do ponto de vista filosófico, pode ser imediatamente considerado determinista ou fatalista. Quanto a Epicuro, se é verdade que aceitava a teoria de Demócrito, na parte referente à constituição e ao comportamento da matéria, por outro lado, repelia veementemente o determinismo e o fatalismo. Mais uma vez, essa rejeição aparece explícita na nossa Carta sobre a felicidade, quando se diz “mais vale aceitar o mito dos deuses do que ser escravo do destino dos naturalistas”. Com efeito, na sua descrição do átomo, Epicuro não deixa de preservar a vontade humana e a liberdade individual, incluindo em seu sistema a sociedade e a consciência moral. Hoje parece haver dúvida de que esses outros aspectos tiveram influência decisiva no próprio pensamento marxista.[8]
Epicuro, por mais que tenha sido criticado, sobreviveu ao tempo, encontrando em Lucrécio, Sêneca e Cícero os seus seguidores mais ilustres tardios.
1.3 A carta sobre a felicidade
As três cartas mais famosas de Epicuro são: (a) a Heródoto, sobre física atômica; (b) a Pítocles, acerca de fenômenos celestes; (c) a Meneceu, mais conhecida como Carta sobre a felicidade, tem em vista a conduta humana tendente a alcançar a saúde de espírito.
Descreve-se o roteiro da carta, da seguinte maneira: (I) exortação à filosofia, cuja meta é tornar o homem feliz; (II) tópicos que considera essenciais à felicidade, a partir na crença na existência de deuses; (III) o enfrentamento da morte, pois de nada adiantará viver eternamente. O importante é a qualidade da vida, não a sua duração; (IV) sobre as modalidades dos desejos e a necessidade imperiosa de controlá-los; (V) não acreditar cegamente no destino e na sorte.
2. Carta sobre a felicidade (a Meneceu)[9]
Antes de ler a carta, eu já afirmava o que nela está contido:
Que ninguém hesite em se dedicar à filosofia enquanto jovem, nem se canse de fazê-lo depois de velho, porque ninguém jamais é demasiado jovem ou demasiado velho para alcançar a saúde do espírito. Quem afirma que a hora de dedicar-se à filosofia ainda não chegou, ou que já passou, é como se dissesse que ainda não chegou ou que já passou a hora de ser feliz.[10]
Devo aqui, então, destacar que Epicuro é muito pretencioso ao afirmar que Meneceu deve praticar e cultivar os seus ensinamentos porque são essenciais a uma vida feliz.[11] Digo isso porque sabemos que a felicidade é relativa. Entendo que o conhecimento é caminho para a felicidade, mas aquilo que me faz feliz, a muitos poderá desagradar.
Diz ser essencial a crença nos deuses e que eles de fato existem. Mas, é interessante o que afirma: “Ímpio não é o que rejeita os deuses em que a maioria crê, mas sim quem atribui aos deuses os falsos juízos dessa maioria. Com efeito, os juízos do povo a respeito dos deuses não se baseiam em noções inatas, mas em opiniões falsas”.[12] Entendo que as maiores falsidades que criamos em termos dos deuses são as que tendem à dominação. Caso exista um deus, em nossa percepção judáico-cristã, não poderá ser explicado e compreendido por seres finitos, uma vez que é infinito. Aliás, nós sequer nos compreendemos...
Era um epicurista antes de ler a sua carta, visto que sempre defendi que só existe o passado. Com efeito, só há o que está na nossa imaginação, aquilo que percebemos e só percebemos algo, no tempo, um pouco depois que o momento passou. É nesse sentido que Epicuro coloca a morte como algo sem sentido porque o que interessa ao homem é a sensação e a morte nos priva dela.[13] É interessante notar que em Eclesiastes 9:10 consta:
Tudo quanto te vier à mão para fazer, faze-o conforme as tuas forças, porque na sepultura, para onde tu vais, não há obra nem projeto, nem conhecimento, nem sabedoria alguma.
Atribui-se o momento cronológico em que o livro de Eclesiastes foi escrito, bem antes da vida de Epicuro. Sempre que utilizo esse conhecimento para aproximar a cultura judaica à grega. Mas, é uma evolução, sem dúvida, o que Epicuro afirma: “É tolo, portanto, quem diz que tem medo da morte, não porque a chegada dela lhe trará sofrimento, mas porque aflige a própria espera: aquilo que não nos perturba quando presente não deveria afligir-nos enquanto está sendo esperado”.[14]
A morte, na visão de Epicuro é um nada, por isso “O sábio não desdenha viver, nem teme deixar de viver; para ele, viver não é um fardo e não viver não é um mal”.[15] O importante não é o conforto, mas o viver honestamente e morrer honestamente.
Em Epicuro, é tolo aquele que diz que seria melhor não ter nascido, pois é livre para fazê-lo se realmente deseja a morte; mas se o faz por brincadeira é frívolo por brincar com aquilo que não admite brincadeira. Aqui emerge um complicador porque o suicídio pode ser uma expressão de covardia, uma ausência de coragem de enfrentar problemas, ou uma coragem extrema de se livrar do problema, ainda que seja com a própria morte. Ocorre que, acima de tudo, o suicídio representará, em regra, um ataque aos ascendentes, especialmente aos pais, evidenciando um fracasso naquilo que eles – normalmente – mais buscaram: propiciar a felicidade dos seus descendentes.
O “futuro não é totalmente nosso, nem totalmente não nosso”. Vivo exatamente isso que Epicuro afirma, entre determinismo e livre-arbítrio. Daí a importância do controle sobre os desejos.
Interessante notar que “só sentimos necessidade do prazer quando sofremos pela sua ausência; ao contrário, quando não sofremos, essa necessidade não se faz sentir”. Mas, o importante é:
Embora o prazer seja o nosso bem primeiro e inato, nem por isso escolhemos qualquer prazer: há ocasiões que evitamos muitos prazeres, quando deles nos advêm o mais das vezes desagradáveis; ao passo que consideramos muitos sofrimentos preferíveis aos prazeres, se um prazer maior advier depois de suportarmos essas dores por muito tempo... Convém, portanto, avaliar todos os prazeres e sofrimentos de acordo com o critério dos benefícios e dos danos.[16]
Há isso em toda Psicologia freudiana, em que devemos conseguir controlar os nossos desejos. E, Epicuro afirma: “tudo que é natural é fácil de conseguir; difícil é tudo que é inútil”.[17] Hoje, o difícil será suportar os desejos que as propagandas visam a nos convencer de “necessidades” inúteis.
Epicuro defende as virtudes da vida simples, o que é complexo no momento em que a sociedade se adaptou ao consumismo, à necessidade de exposição e projeção social, especialmente com baixo nível intelectual, como é o caso da brasileira. Surge, então, o ponto central do pensamento epicurista:
Quando então dizemos que o fim último é o prazer, não nos referimos aos prazeres dos intemperantes ou aos que consistem no gozo dos sentidos, como acreditam certas pessoas que ignoram o nosso pensamento, ou não concordam com ele, ou interpretam erroneamente, mas ao prazer que é ausência de sofrimentos físicos e de perturbações da alma. Não são, pois, bebidas, nem banquetes contínuos, nem a posse de mulheres e rapazes, nem o sabor dos peixes ou de outras iguarias de uma mesa farta que tornam doce a vida, mas um exame cuidadoso que investigue as causas de toda escolha e de toda rejeição e que remova as opiniões falsas em virtude das quais uma imensa perturbação toma conta dos espíritos. De todas essas coisas, a prudência é o princípio e o supremo bem, razão pela qual ela é mais preciosa do que a própria filosofia; é dela que originaram todas as demais virtudes; é ela que nos ensina que não existe vida feliz sem prudência, beleza e justiça, e que não existe prudência, beleza e justiça sem felicidade. Porque as virtudes estão intimamente ligadas à felicidade, e a felicidade inseparável delas.[18]
Em 30.12.2017, às 23h55, em um programa de televisão, um cantor, Nego do Borel, disse ser referência para a sua comunidade porque conquistou seus sonhos e uma pessoa será do tamanho dos seus sonhos. Essa ideia de poder, ao contrário, do enunciado, deve ser contida porque muitos furtam, praticam latrocínio (roubo com morte) etc. porque se frustram por terem desejos de poder não alcançados. Em Epicuro, fama e poder são inúteis ao homem.
Concluo essa resenha, repleta de opiniões pessoais em um momento complicado da minha vida. Terminando um ano com a esperança de que, especialmente os meus filhos, tenham um pouco daquela vontade que tenho de agir hoje de forma que amanhã não venham a se envergonhar das condutas de hoje.
O erro é natural ao humano, mas devemos evitar erros graves que venham a nos envergonhar por toda vida. Também, sempre será momento para tentar estabelecer um novo dia em que amanhã poderemos nos orgulhar dele. Quanto mais fizermos isso, mais estaremos preparados para uma maturidade feliz!




[1] LORENCINI, Álvaro; CARRATORE, Enzo Del. Introdução. In EPICURO. Carta sobre a felicidade (a Meneceu). São Paulo: Unesp, 2002.
[2] Ibidem. p. 5-9.
[3] Ibidem. p. 9-13.
[4] Em vernáculo (Do grego hedone), hedonismo é substantivo masculino. Antigo sistema filosófico que estabelecia o prazer como o objetivo principal de vida.
[5] Em vernáculo, ascético decorre de asceta, que significa pessoa que se entrega aos exercícios espirituais e à penitência.
[6] Demócrito de Abdera, o filósofo que ri (460-370 a.C.), considerado normalmente pré-socrático, mas foi contemporâneo de Sócrates (esclareça-se que o renomado Sócrates, ao meu sentir, é um personagem platônico). Demócrito foi discípulo e depois sucessor de Leucipo de Mileto, tendo sistematizado o pensamento e a teoria atomista, que tudo que existe é formado por elementos indivisíveis (átomos).
[7] Parece-me que houve um equívoco na tradução, visto que o título correto da tese é: Diferenças da filosofia da natureza em Demócrito e Epicuro.
[8] LORENCINI, Álvaro; CARRATORE, Enzo Del. Introdução. In EPICURO. Carta sobre a felicidade (a Meneceu). São Paulo: Unesp, 2002. p. 12-13.
[9] EPICURO. Carta sobre a felicidade (a Meneceu). São Paulo: Unesp, 2002. p. 12-13. p. 19-51.
[10] Ibidem. p. 21.
[11] Ibidem. p. 23.
[12] Ibidem. p. 25.
[13] Ibidem. p. 27.
[14] Ibidem. p. 29.
[15] Ibidem. p. 31.
[16] Ibidem. p. 39.
[17] Ibidem p. 41.
[18] Ibidem. p. 45.

Nenhum comentário: