1. Introdução[1]
1.1
Cronologia de Epicuro[2]
Epicuro (341 a 270 a.C.), nasceu na Ilha de Samos, mas ostentava a
cidadania ateniense, herdada do pai. Dos 14 aos 18 anos foi aluno de Pânfilo,
filósofo platônico. Em 323 a.C., transferiu-se para Atenas para cumprir 2 anos
de serviço militar obrigatório aos homens jovens. Ali encontrou Menandro, futuro dramaturgo,
de quem se tornou amigo e, também, grandes filósofos, dentre eles Teofrasto, sucessor
de Aristóteles no Liceu, e Xenócrates, diretor da academia.
O sucessor de Alexandre Magno decidiu, em 322 a.C., expulsar todos
os colonos Atenienses da ilha de Samos, com isso todos os familiares de Epicuro
foram desterrados para Cólofon, costa asiática, onde ele foi viver. Perto dali,
em Teos, passou a acompanhar as lições de Nausífanes, atomista que iniciou
Demócrito, mas que empreendeu e criou sua própria escola em Cólofon.
Em 311-310 a.C. Epicuro tentou, sem sucesso, criar uma escola, em
Mitilene, ilha de Lesbos, isso devido à relutância dos aristotélicos que ali
imperavam. Então, ele se mudou para Lâmpsaco, nos Dardanelos, onde criou sua
escola, mas com forte oposição dos platônicos. Ali encontrou os amigos que o
acompanharam por toda vida: Hermarco, Colotes, Metrodoro, Pítocles e Heródoto.
As três cartas mais célebres de Epicuro, que expressam o seu
pensamento, foram dirigidas aos dois últimos e a Ameceu. Mais tarde, em 306
a.C. se transferiu para Atenas, onde adquiriu ampla casa nos arredores da
cidade e instalou sua escola, logo conhecida como o “Jardim de Epicuro”, onde
seguidores passaram a residir em tendas.
Após a sua morte, Hermarco o sucedeu na direção da escola.
1.2 A
doutrina de Epicuro[3]
A carta sobre a felicidade é esclarecedora para evitar confusões entre
o epicurismo e o hedonismo puro e simples.[4]
O epicurismo não confunde com a busca pelo gozo imoderado dos prazeres
mundanos. Entre os mestres e discípulos do Jardim
de Epicuro prevalecia o fervor de uma vida quase ascética,[5]
comendo hortaliças (eles próprios cultivavam), pão e tomando água. Nas
ocasiões especiais, acresciam queijo.
Alguns afirmam que Epicuro é uma imitação superficial de
Demócrito,[6]
este um original e profundo filósofo. Foi Karl Marx (1818-1883) quem primeiro tentou corrigir esse equívoco, isso em 1841, na sua tese de
doutorado A relação entre a filosofia de
Epicuro e a de Demócrito,[7]
enunciando:
Segundo Marx a teoria atômica de
Demócrito, que se distingue primeiramente pela crença universal na lei de causa
e efeito, aplica-se indistintamente tanto ao mundo da natureza quanto ao homem.
Portanto, Demócrito, do ponto de vista filosófico, pode ser imediatamente
considerado determinista ou fatalista. Quanto a Epicuro, se é verdade que
aceitava a teoria de Demócrito, na parte referente à constituição e ao
comportamento da matéria, por outro lado, repelia veementemente o determinismo
e o fatalismo. Mais uma vez, essa rejeição aparece explícita na nossa Carta sobre a felicidade, quando se diz “mais
vale aceitar o mito dos deuses do que ser escravo do destino dos naturalistas”.
Com efeito, na sua descrição do átomo, Epicuro não deixa de preservar a vontade
humana e a liberdade individual, incluindo em seu sistema a sociedade e a
consciência moral. Hoje parece haver dúvida de que esses outros aspectos
tiveram influência decisiva no próprio pensamento marxista.[8]
Epicuro, por mais que tenha sido criticado, sobreviveu ao tempo,
encontrando em Lucrécio, Sêneca e Cícero os seus seguidores mais ilustres
tardios.
1.3 A carta sobre a felicidade
As três cartas mais famosas de Epicuro são: (a) a Heródoto, sobre física atômica; (b) a Pítocles, acerca de fenômenos celestes; (c) a Meneceu, mais conhecida como Carta sobre a felicidade, tem em vista a conduta
humana tendente a alcançar a saúde de
espírito.
Descreve-se o roteiro da carta, da seguinte maneira: (I) exortação
à filosofia, cuja meta é tornar o homem feliz; (II) tópicos que considera
essenciais à felicidade, a partir na crença na existência de deuses; (III) o
enfrentamento da morte, pois de nada adiantará viver eternamente. O importante
é a qualidade da vida, não a sua duração; (IV) sobre as modalidades dos desejos
e a necessidade imperiosa de controlá-los; (V) não acreditar cegamente no destino
e na sorte.
2. Carta
sobre a felicidade (a Meneceu)[9]
Antes de ler a carta, eu já afirmava o que nela está contido:
Que ninguém hesite em se dedicar à
filosofia enquanto jovem, nem se canse de fazê-lo depois de velho, porque
ninguém jamais é demasiado jovem ou demasiado velho para alcançar a saúde do
espírito. Quem afirma que a hora de dedicar-se à filosofia ainda não chegou, ou
que já passou, é como se dissesse que ainda não chegou ou que já passou a hora
de ser feliz.[10]
Devo aqui, então, destacar que Epicuro é muito pretencioso ao
afirmar que Meneceu deve praticar e cultivar os seus ensinamentos porque são
essenciais a uma vida feliz.[11]
Digo isso porque sabemos que a felicidade é relativa. Entendo que o
conhecimento é caminho para a felicidade, mas aquilo que me faz feliz, a muitos
poderá desagradar.
Diz ser essencial a crença nos deuses e que eles de fato existem.
Mas, é interessante o que afirma: “Ímpio não é o que rejeita os deuses em que a
maioria crê, mas sim quem atribui aos deuses os falsos juízos dessa maioria.
Com efeito, os juízos do povo a respeito dos deuses não se baseiam em noções
inatas, mas em opiniões falsas”.[12]
Entendo que as maiores falsidades que criamos em termos dos deuses são as que
tendem à dominação. Caso exista um deus, em nossa percepção judáico-cristã, não
poderá ser explicado e compreendido por seres finitos, uma vez que é infinito.
Aliás, nós sequer nos compreendemos...
Era um epicurista antes de ler a sua carta, visto que sempre
defendi que só existe o passado. Com efeito, só há o que está na nossa
imaginação, aquilo que percebemos e só percebemos algo, no tempo, um pouco depois que o momento
passou. É nesse sentido que Epicuro coloca a morte como algo sem sentido porque
o que interessa ao homem é a sensação e a morte nos priva dela.[13]
É interessante notar que em Eclesiastes 9:10 consta:
Tudo
quanto te vier à mão para fazer, faze-o conforme as tuas forças, porque na
sepultura, para onde tu vais, não há obra nem projeto, nem conhecimento, nem
sabedoria alguma.
Atribui-se o momento cronológico em que o livro de Eclesiastes foi
escrito, bem antes da vida de Epicuro. Sempre que utilizo esse conhecimento
para aproximar a cultura judaica à grega. Mas, é uma evolução, sem dúvida, o que
Epicuro afirma: “É tolo, portanto, quem diz que tem medo da morte, não porque a
chegada dela lhe trará sofrimento, mas porque aflige a própria espera: aquilo
que não nos perturba quando presente não deveria afligir-nos enquanto está sendo
esperado”.[14]
A morte, na visão de Epicuro é um nada, por isso “O sábio não
desdenha viver, nem teme deixar de viver; para ele, viver não é um fardo e não
viver não é um mal”.[15]
O importante não é o conforto, mas o viver honestamente e morrer honestamente.
Em Epicuro, é tolo aquele que diz que seria melhor não ter
nascido, pois é livre para fazê-lo se realmente deseja a morte; mas se o faz
por brincadeira é frívolo por brincar com aquilo que não admite brincadeira.
Aqui emerge um complicador porque o suicídio pode ser uma expressão de
covardia, uma ausência de coragem de enfrentar problemas, ou uma coragem
extrema de se livrar do problema, ainda que seja com a própria morte. Ocorre
que, acima de tudo, o suicídio representará, em regra, um ataque aos
ascendentes, especialmente aos pais, evidenciando um fracasso naquilo que eles –
normalmente – mais buscaram: propiciar a felicidade dos seus descendentes.
O “futuro não é totalmente nosso, nem totalmente não nosso”. Vivo
exatamente isso que Epicuro afirma, entre determinismo e livre-arbítrio. Daí a
importância do controle sobre os desejos.
Interessante notar que “só sentimos necessidade do prazer quando sofremos
pela sua ausência; ao contrário, quando não sofremos, essa necessidade não se
faz sentir”. Mas, o importante é:
Embora o prazer seja o nosso bem
primeiro e inato, nem por isso escolhemos qualquer prazer: há ocasiões que
evitamos muitos prazeres, quando deles nos advêm o mais das vezes desagradáveis;
ao passo que consideramos muitos sofrimentos preferíveis aos prazeres, se um
prazer maior advier depois de suportarmos essas dores por muito tempo...
Convém, portanto, avaliar todos os prazeres e sofrimentos de acordo com o
critério dos benefícios e dos danos.[16]
Há isso em toda Psicologia freudiana, em que devemos conseguir
controlar os nossos desejos. E, Epicuro afirma: “tudo que é natural é fácil de
conseguir; difícil é tudo que é inútil”.[17]
Hoje, o difícil será suportar os desejos que as propagandas visam a nos
convencer de “necessidades” inúteis.
Epicuro defende as virtudes da vida simples, o que é complexo no
momento em que a sociedade se adaptou ao consumismo, à necessidade de exposição
e projeção social, especialmente com baixo nível intelectual, como é o caso da
brasileira. Surge, então, o ponto central do pensamento epicurista:
Quando então dizemos que o fim
último é o prazer, não nos referimos aos prazeres dos intemperantes ou aos que
consistem no gozo dos sentidos, como acreditam certas pessoas que ignoram o
nosso pensamento, ou não concordam com ele, ou interpretam erroneamente, mas ao
prazer que é ausência de sofrimentos físicos e de perturbações da alma. Não
são, pois, bebidas, nem banquetes contínuos, nem a posse de mulheres e rapazes,
nem o sabor dos peixes ou de outras iguarias de uma mesa farta que tornam doce
a vida, mas um exame cuidadoso que investigue as causas de toda escolha e de
toda rejeição e que remova as opiniões falsas em virtude das quais uma imensa
perturbação toma conta dos espíritos. De todas essas coisas, a prudência é o
princípio e o supremo bem, razão pela qual ela é mais preciosa do que a própria
filosofia; é dela que originaram todas as demais virtudes; é ela que nos ensina
que não existe vida feliz sem prudência, beleza e justiça, e que não existe
prudência, beleza e justiça sem felicidade. Porque as virtudes estão intimamente
ligadas à felicidade, e a felicidade inseparável delas.[18]
Em 30.12.2017, às 23h55, em um programa de televisão, um cantor,
Nego do Borel, disse ser referência para a sua comunidade porque conquistou
seus sonhos e uma pessoa será do tamanho dos seus sonhos. Essa ideia de poder,
ao contrário, do enunciado, deve ser contida porque muitos furtam, praticam
latrocínio (roubo com morte) etc. porque se frustram por terem desejos de poder
não alcançados. Em Epicuro, fama e poder são inúteis ao homem.
Concluo essa resenha, repleta de opiniões pessoais em um momento
complicado da minha vida. Terminando um ano com a esperança de que,
especialmente os meus filhos, tenham um pouco daquela vontade que tenho de agir
hoje de forma que amanhã não venham a se envergonhar das condutas de hoje.
O erro é natural ao humano, mas devemos evitar erros graves que
venham a nos envergonhar por toda vida. Também, sempre será momento para tentar
estabelecer um novo dia em que amanhã poderemos nos orgulhar dele. Quanto mais
fizermos isso, mais estaremos preparados para uma maturidade feliz!
[1] LORENCINI,
Álvaro; CARRATORE, Enzo Del. Introdução. In
EPICURO. Carta sobre a felicidade (a
Meneceu). São Paulo: Unesp, 2002.
[2] Ibidem. p.
5-9.
[3] Ibidem. p.
9-13.
[4] Em vernáculo
(Do grego hedone), hedonismo é
substantivo masculino. Antigo sistema filosófico que estabelecia o prazer como
o objetivo principal de vida.
[5] Em
vernáculo, ascético decorre de asceta, que significa pessoa que se entrega aos
exercícios espirituais e à penitência.
[6] Demócrito de
Abdera, o filósofo que ri (460-370
a.C.), considerado normalmente pré-socrático, mas foi contemporâneo de Sócrates
(esclareça-se que o renomado Sócrates, ao meu sentir, é um personagem platônico).
Demócrito foi discípulo e depois sucessor de Leucipo de Mileto, tendo
sistematizado o pensamento e a teoria atomista, que tudo que existe é formado
por elementos indivisíveis (átomos).
[7] Parece-me
que houve um equívoco na tradução, visto que o título correto da tese é: Diferenças da filosofia da natureza em
Demócrito e Epicuro.
[8] LORENCINI,
Álvaro; CARRATORE, Enzo Del. Introdução. In
EPICURO. Carta sobre a felicidade (a
Meneceu). São Paulo: Unesp, 2002. p. 12-13.
[9] EPICURO. Carta sobre a felicidade (a Meneceu).
São Paulo: Unesp, 2002. p. 12-13. p. 19-51.
[10] Ibidem. p.
21.
[11] Ibidem. p.
23.
[12] Ibidem. p.
25.
[13] Ibidem. p.
27.
[14] Ibidem. p. 29.
[15] Ibidem. p. 31.
[16] Ibidem. p.
39.
[17] Ibidem p.
41.
[18] Ibidem. p. 45.
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