quinta-feira, 22 de agosto de 2024

A lesão corporal de natureza leve sempre será de iniciativa privada condicionada à representação

1. FINALIDADE

O presente texto tratará da iniciativa da ação corporal no crime de lesão corporal de natureza leve especialmente na violência doméstica e familiar, não obstante o Supremo Tribunal Federal-STF ter afirmado e reafirmado que nesse caso, em peculiar, a ação será de iniciativa pública incondicionada.

Sempre?

Sei que a palavra “sempre” induz a equívocos. Porém, contudo, entretanto, todavia etc. a manterei, embora sabendo que, por exemplo, no crime complexo prevalecerá a regra da maior publicidade da iniciativa da ação (Código Penal-CP, art. 101). Como o objetivo é demonstrar estar errada a interpretação de que a violência doméstica com lesão corporal será sempre de iniciativa pública incondicionada, a palavra será mantida no título.

2. DESENVOLVIMENTO

O nosso objetivo aqui será discorrer um pouco mais sobre o tema, sem nos tornarmos cansativos. Por isso, não adentraremos nos detalhes de cada uma das ações (ADI e ADC) que o STF decidiu, isso nos anos de 2012 e 2023.

2.1 Natureza e iniciativa da ação criminal condenatória

Toda ação de direito processual é pública, visto que envolve o exercício da jurisdição e essa, no Brasil, é exclusiva do Poder Judiciário. Já a iniciativa da ação criminal poderá ser de iniciativa pública ou privada, tendo natureza mista: de Direito Criminal e de Direito Processual, ou seja, material e formal. Por isso, não é em vão que consta do CP e do Código de Processo Penal (CPP).[1]

Em matéria criminal, a ação poderá ser cautelar, condenatória e executória. Como todas exigirão a participação do Poder Judiciário, todas terão prevalência do interesse público, razão de serem consideradas públicas. Ocorre que o CP e o CPP preveem que as ações poderão ter iniciativas públicas – mediante denúncia do Ministério Público (MP) – e privadas – mediante queixa do ofendido, do seu representante legal, de sucessores causa mortis legitimados ou curador especial – ex vi dos seus artigos, respectivamente, 100 e 24 a 38.

2.2 Entendendo o crime de lesão corporal

O crime de lesão corporal é tipificado no art. 129 do CP, como sendo a ofensa à integridade física ou à saúde de outrem. Ela poderá dolosa – quando o agente quiser ou assumir o risco do resultado (CP, art. 18, inciso I) – ou negligente – quando houver omissão de cuidado provocando um resultado previsível e não previsto ou previsto e cujo risco foi negado pelo agente (CP, art. 18, inciso II)[2] -, cujas condutas poderão decorrer de ações (comissivas), omissões (omissivas) ou de omissões que representem ações contra a lei (omissivas impróprias – CP, art. 13, § 2º).

Criminalmente, as condutas negligentes serão impuníveis, salvo se especialmente previstas como puníveis na lei (CP, art. 18, parágrafo único). No caso da lesão corporal, há previsão expressa da sua punição (CP, art. 129, § 6º). No caso de violência doméstica e familiar contra a mulher, só se podem vislumbrar crimes dolosos.

No art. 129 do CP, a lesão corporal dolosa poderá ser leve (caput; e § 9º), grave (§ 1º), gravíssima (§ 2º), seguida de morte (§ 3º), privilegiada (§ 4º), majorada (§§ 7º, 10, 11 e 12) e qualificada pelas hipóteses de feminicídio, em razão da condição do sexo feminino (§ 13).

2.3 Iniciativa da ação dos crimes de lesão corporal de natureza leve e  de lesão culposa

Todas as modalidades de lesão corporal, na redação original do CP de 1940 eram de iniciativa pública incondicionada. Com efeito, não havia qualquer previsão na parte especial do CP de que seria outra a iniciativa da ação, visto que a regra é: a ação será de iniciativa pública incondicionada, salvo se houver previsão expressa na lei de outra espécie de iniciativa.

A Lei n. 9.099, de 26.9.1995, regulando o art. 98, inciso I, da Constituição Federal (CF), dispôs:

Art. 88. Além das hipóteses do Código Penal e da legislação especial, dependerá de representação a ação penal relativa aos crimes de lesões corporais leves e lesões culposas.

Não há lesão corporal negligente leve, grave ou gravíssima. O que poderia ser diferenciado seria o grau de negligência, em leve, média ou grave. Mas, o CP não o faz, até porque a doutrina não é compatível com a perspectiva dessa distinção. O grau de negligência pode até ser considerado na dosimetria da pena, não na classificação do delito. Com isso, todas as lesões negligentes, na dicção do preceito legal transcrito, são de ação de iniciativa pública, condicionada à representação.

A representação é uma manifestação de vontade com as formalidades mínimas do art. 39 do CPP. A ação será iniciada por denúncia do MP, mas essa estará condicionada à manifestação de vontade da vítima ou de outra pessoa que possa fazê-lo (CP, art. 100, §§ 1º e 4º), conforme anteriormente informado.

A lesão corporal de natureza leve, é crime de menor potencial ofensivo, quando incidir a hipótese do caput do art. 129 do CP.[3] Embora as lesões dos § 9º e 13 tenham penas máximas, respectivamente, de 3 e 4 anos, são leves, portanto, de iniciativa pública condicionada à representação.

2.4 A posição – da qual discordo – de que lesões leves têm ação de iniciativa pública incondicionada

A Lei n. 11.340, de 7.8.2006,[4] decorreu, dentre outras razões, de termos firmado acordos e tratados internacionais para proteção da mulher, tendo sido influenciados pela notoriedade do caso Maria da Penha, que resultou na condenação do Brasil, Estado do Ceará e município de Fortaleza pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CDIH), em 2001.

Em 9.6.1994, foi adotada a “Convenção Interamericana para Prevenir Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher, ‘Convenção de Belém do Pará’”. A seguir, o Decreto n. 1973, de 1.8.1996, promulgou a referida convenção. Em 1998, a CDIH recebeu a denúncia do Caso Maria da Penha.

Apresentado no dia 3.12.2004, o Projeto de Lei n. 4.559 invoca o art. 226, § 8º, da CF para “coibir violências”, no âmbito das relações familiares. Na mensagem de apresentação do projeto, inseriu-se:

18. Segundo previsto na Convenção de Belém do Pará, o artigo 7º do Projeto define claramente as formas de violência contra a mulher. De acordo com o “Modelo de Leyes y Políticas sobre Violencia Intrafamiliar contra las Mujeres”, publicado em abril de 2004, pela Unidad, Género y Salud da Organização Mundial de Saúde – OPS/OMS, toda legislação política e pública deve incluir as definições de violência contra a mulher em cada uma de suas manifestações: física, sexual, psicológica, moral e patrimonial.[5]

Por isso, a exposição de motivos apresenta uma série de críticas à Lei n. 9.099/1995, dizendo que a conciliação é incompatível com o combate à violência doméstica (itens 33-41) e arremata:

42. Prevê, a criação de audiência de apresentação para permitir que a vítima seja ouvida primeiro pelo juiz, em separado do agressor, e ainda que a audiência se balize pelo princípio da mediação, não podendo a mulher ser, em nenhuma hipótese, forçada à conciliação. Esta audiência deverá ser conduzida por juiz ou mediador, devendo este último ser profissional do direito, devidamente habilitado no Curso de Ciências Jurídicas e capacitado em questões de gênero.

43. A presente proposta garante, também, que a vítima esteja acompanhada por advogado na audiência, visto que a Lei 9.099/1995, em seu artigo 68, concede esta prerrogativa apenas ao agressor.

44. O Projeto propõe, outrossim, alteração na audiência de instrução e julgamento retirando a realização da transação penal da primeira audiência e postergando esta possibilidade para a segunda audiência. O objetivo é disponibilizar ao juiz outras ferramentas mais adequadas e eficazes para solucionar a questão, como por exemplo, o encaminhamento das partes à equipe de atendimento multidisciplinar, realização de exames periciais e providências cautelares.

45. O Projeto proíbe a aplicação de penas restritivas de direito de prestação pecuniária, cesta básica e multa, pois, atualmente, este tipo de pena é comumente aplicado nos Juizados Especiais Criminais em prejuízo da vítima e de sua família.

Veja-se que o objetivo não foi o de acabar com a conciliação e sim fortificar a vítima pela presença de Advogado na audiência preliminar (a ser requerido pela vítima), ex vi do que dispõe:

Art. 16. Nas ações penais públicas condicionadas à representação da ofendida de que trata esta Lei, só será admitida a renúncia à representação perante o juiz, em audiência especialmente designada com tal finalidade, antes do recebimento da denúncia e ouvido o Ministério Público.

Ocorre que tal dispositivo legal foi objeto de discussão perante o STF, o qual, sem argumentos propriamente jurídicos, restringiu o seu alcance. O pior foi que, esquecendo que o fim era evitar a pressão conciliatória sobre a vítima, o STF deu interpretação extensiva ao seguinte dispositivo da lei:

Art. 41. Aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei n. 9.099, de 26 de setembro de 1995.

Esse artigo 41 não modifica a natureza da ação dos crimes de lesões corporais de natureza leve, até porque o seu art. 16 se refere à possibilidade de renúncia da vítima, desde que feita na presença do Juiz e acompanhada de Advogado. Mas, em 9.2.2012, o STF julgou a ADI n. 4424-DF, decidindo:

EMENTA: AÇÃO PENAL – VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER – LESÃO CORPORAL – NATUREZA. A ação penal relativa à lesão corporal resultante de violência doméstica contra a mulher é pública incondicionada – considerações.[6]

Veja-se que o preceito restringe o seu alcance à lesão corporal, o que torna possível a retratação em caso de contravenções e outros crimes de ação penal de iniciativa pública condicionada à representação.

O argumento de que quem criou a representação foi a Lei n. 9.099/1995 e que a Lei n. 11.340/2006 a afastou, esteve presente nos debates.[7][8] Isso nada mais é do que um erro crasso, visto que toda normatividade da Lei n. 11.340/2006 procura restringir a conciliação, não abolir. Por outro lado, a iniciativa da ação não tem qualquer relação com o fato de ser o crime de menor potencial ofensivo.

Os crimes contra a dignidade sexual, como regra, eram de ação penal de iniciativa exclusivamente privada (CP, art. 225). Em 1990, passaram a ser hediondos, sem modificação da iniciativa da ação. Somente com a Lei n. 12.015, de 7.8.2009, passaram a ser, em regra, embora hediondos, de ação de iniciativa pública condicionada à representação. Por fim, somente a Lei n. 13.718, de 24.9.2018, transformou a iniciativa da ação criminal de tais crimes em pública incondicionada.

À época, 9 anos de interregno se passaram, ninguém argumentou que tais crimes, por serem hediondos, deveriam ter iniciativa pública incondicionada.

A iniciativa da ação decorre de política criminal. Ela não deveria ser de juízes, nem exclusivamente do Poder Legislativo. A política criminal deve respeitar aos critérios técnicos que podem a fundamentar adequadamente. Ser o crime de iniciativa pública ou privada, decorrerá dos maiores interesses em jogo.

É certo que o casamento é de direito privado, regulado por normas de ordem pública. No entanto, publicizar todas as relações domésticas é algo perigoso. Com efeito, em uma instituição de ensino que trabalhei um colega Professor de Direito Constitucional, inseria em prova uma questão em que um casal sadomasoquista fazia muito barulho no apartamento e uma vizinha fez telefonema anônimo para a polícia que arrombou a porta em suposto flagrante delito de violência doméstica. Perguntava:

Houve abuso de autoridade? Fundamente justificadamente.

Não podemos esquecer que todos os direitos fundamentais são ponderáveis. Ao lado da dignidade sexual, existe a liberdade. Casais, enquanto pessoas, não podem ser anulados pelo Estado, em nome de uma suposta defesa social, especialmente quando esta se manifesta pela drástica intervenção jurídico-criminal.

Não sei até que ponto poderemos afirmar como o fez uma Ministra do STF, “Acabou-se o tempo de que em briga de marido e mulher não se mete a colher”, corroborada por outra que afirmou que “O que acontece entre quatro paredes é só do casal”. Prefiro o conhecimento científico!

3. CONCLUSÃO

Continuo entendendo que a Lei n. 11.340/2006 não proíbe e não é contrária ao sistema normativo constitucional. Também, não revoga o art. 88 da Lei n. 9.099/1995, nem mesmo nas suas espécies qualificadas ou majoradas, visto que a iniciativa da ação não tem qualquer relação com a gravidade do crime e sim com o interesse maior na elucidação dos fatos.

Devemos defender a família e, também, defender a dignidade humana, em que as fantasias, os interesses pessoais dos seus integrantes etc. certamente influenciarão na sua formação e preservação no tempo.



[1] MESQUITA JÚNIOR, Sidio Rosa de. Prescrição penal. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2007. p. 9-43.

[2] O CP se refere a crime culposo. Não gosto de utilizar a palavra culpa, a fim de não provocar a confusão com culpabilidade, até porque todas as modalidades de culpa passam pela omissão ao dever de cuidado, própria da negligência.

[3] A Lei n. 9.099/1995 dispõe:

Art. 61. Consideram-se infrações penais de menor potencial ofensivo, para os efeitos desta lei, as contravenções penais e os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a 2 (dois) anos, cumulada ou não com multa.

[4] Conhecida por Lei Maria da Penha, uma homenagem feita à Maria da Penha Maia Fernandes, tem a minha posição contrária, inclusive à denominação. A vítima, assim como muitas mulheres, viu a progressão criminosa do seu ex-marido e, somente depois de várias incidências criminosas, com o apoio de organizações não governamentais, lutou pela sua punição. Ela, ao mesmo tempo que virou símbolo de luta, é um exemplo de apatia ante a violência doméstica a que se submetia. (Sobre a história da vítima: CUNHA, Rogério Sanches; PINTO, Ronaldo Batista. Violência doméstica: Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006): comentada artigo por artigo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 11-12)

[5] BRASIL. Exposição de Motivos n. 16-SPM/PR, de 16.11.2204. Nilcéa Freire, Secretária Especial de Políticas para as Mulheres. Disponível em: <chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=256085&filename=PL%204559/2004>. Acesso em: 22.8.2024, às 2040.

[6] STF. Tribunal Pleno. ADI 4.424-DF. Min. Marco Aurélio. Julgamento em: 9.2.2012. Disponível em: <chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=6393143>. Acesso em: 22.8.2024, às 21h13. Como exemplo da falta de juridicidade nas posições, a Ministra Cármen Lúcia sustentou:

O mais, se a ação penal é condicionada, se a ação penal vai acontecer, 99% do povo brasileiro nem sabe o que é isso. (p. 20)

Como ninguém, nem homem, nem mulher, nem ninguém sabe o que é ação penal condicionada ou incondicionada. Até o terceiro ano de Direito, nós não sabemos. (p. 21)

Ela sabe que a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Decreto-lei n. 4.657, de 4.9.1942) dispõe que ninguém pode alegar a ignorância da lei (art. 3º). No mesmo sentido temos o Código Penal (art. 21).

Na mesma direção da ausência do Direito, o Ministro Luiz Fux afirmou:

É a denominada vitimologia machista, a mulher é culpada por ter apanhado. (p. 24)

Vitimologia é ciência auxiliar. Sequer a vejo como ciência, visto que Alessandro Baratta a desconstruiu (MESQUITA JÚNIOR, Sidio Rosa de. Execução criminal: teoria e prática. 7. ed. São Paulo: Atlas, 2014. p. 91-112). Inexiste “vitimologia machista”, essa suposta vitimologia é só mais um estratagema para se vencer um debate sem precisar ter razão.

[7] STF. Tribunal Pleno. ADI 4.424-DF. Min. Marco Aurélio. Julgamento em: 9.2.2012. Disponível em: <chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=6393143>. Acesso em: 22.8.2024, às 21h13. p. 27.

[8] A constitucionalidade dessa lei foi objeto de discussão na ADC 19-DF, julgada conjuntamente com a ADI 4.424-DF, e da ADI 7.267-DF.

Nenhum comentário: