Sumário: 1.
Introdução. 2. Resumo do voto. 3. Críticas ao voto do Min. Celso de Mello. 4.
Conclusão. Referências.[1]
1. INTRODUÇÃO
O
presente trabalho visa ser uma resenha crítica e fundamentada do voto do Min.
Celso de Mello, nos autos do Agravo Regimental interposto contra decisão
monocrática que indeferiu Embargos Infringentes interpostos contra acórdão não
unânime e condenatório da Ação Criminal n. 470, denominada pela imprensa
nacional como sendo “ação do mensalão do PT”.
Como
a resenha é uma descrição pormenorizada, dever-se-á, desde já, alertar ao
leitor que não poderá ser a melhor, haja vista que o voto foi lavrado em trinta
e duas páginas e estou delimitando o espaço para realização da sua exposição e
dos comentários, uma representando o seu resumo e as demais são formadcas de comentários.
Observe-se
que a análise deverá passar por muitos aspectos jurídicos e até metajurídicos
da discussão, uma vez que eles estiveram presentes no voto sob análise. Por
essa razão, entendemos ser conveniente tratar de muitos aspectos que circundam
as razões de decidir, cujo contexto esteve largamente exposto ao povo
brasileiro.
Inicialmente, apenas para contextualizar, gostaríamos de
esclarecer que vários políticos, empresários e empregados de alto escalão de
empresas foram acusados de diversos crimes perante o Supremo Tribunal Federal
(STF). Ali, muitos foram condenados, sob a relatoria do Min. Joaquim Barbosa,
mas, na maioria dos seus votos, o revisor do processo, Min. Ricardo
Lewandowski, abria a divergência, sendo que, especialmente sobre o crime de
formação de quadrilha ou bando (Código Penal [CP], art. 288), muitos réus foram
condenados por maioria. Assim, diante do acórdão não unânime, os réus
interpuseram embargos infringentes e o relator, em seu juízo de
admissibilidade, rejeitou os embargos infringentes. Então, foi interposto
agravo regimental contra a decisão monocrática, mas, novamente, se instalou a
divergência, sendo que o Min. Celso de Mello tentou votar no dia 12.9.2013, mas
o Presidente do STF encerrou a sessão antes do voto. Assim, no dia 18.9.2013, o
Min. Celso de Mello, como é do seu costume, apresentou voto escrito e muito bem
fundamentado.[2]
2. RESUMO DO
VOTO
O Ministro Celso de Mello iniciou o seu voto agradecendo o
encerramento da sessão do dia 12.9.2013, por entender que só assim pode se
aprofundar sobre a matéria. E, então, comemorou a data, pois em 18.9.1946 se restaurou
a liberdade no Brasil, destacando voto do Presidente do STF de 1946 para dizer
que somente a “ordem jurídica constrói e fortalece as instituições, sem o que a
vida e os direitos ficam à mercê da vontade ou do arbítrio de quem detém o
poder” (p. 2). Também, destacou a profunda divisão do STF sobre aquela matéria,
o que considerou de altíssima relevância, invocando a imparcialidade, a isenção
e a independência para decidir sem atender unicamente ao clamor popular e à
pressão das multidões (p. 5-6). Então, chamou a atenção para a importância do
processo penal para a garantia instrumental de respeito à Constituição Federal,
“sob pena de nulidade radical dos atos de persecução estatal” (p. 6). E, foi
nesse contexto que inseriu a necessidade de se colocar a persecução penal nos
“estritos padrões normativos” (p. 7). A partir daí, o Min. Celso de Mello analisou
o due process of law, no tocante ao
seu conteúdo material, destacando as prerrogativas que a ele são inerentes,
dentre elas o “direito ao recurso” (p. 8), informando que tais orientações são
as que nortearão o voto (p. 9). O Ministro chamou a atenção para o fato de que
examinava apenas a preliminar relativa à admissibilidade do recurso, o que não
poderia ser confundido com mérito do acórdão condenatório, a ser analisado em
fase ulterior (p. 10). Não bastasse, no voto, discutiu-se o cabimento dos
embargos infringentes no âmbito do STF, mesmo contra acórdãos proferidos em
ações originárias, informando que o Regimento Interno do SFT (RISTF) tem
caráter materialmente legislativo de poder normativo primário, uma vez que a
previsão foi feita sob a égide da Constituição Federal de 1967, respeitando-se
à previsão da Emenda Constitucional n. 1/1969 (ou Constituição Federal de 1969).
Como a nova ordem constitucional não manteve a previsão anterior, mas recepcionou
o art. 333, inc, I, do RISTF e, não tendo a ordem legal infraconstitucional
alterado os aspectos do RISTF, prevalece a atuação normativa formal do STF. E,
finalmente, foi feita profunda análise sobre o julgamento das câmaras, em sede
de embargos infringentes, bem como o apanhado histórico que é feito do recurso,
tudo para demonstrar o caráter materialmente legislativo do RISTF, no que se
refere ao seu art. 333, inc. I, que faz a previsão de embargos infringentes no
STF, os quais podem ser opostos contra as ações originárias, sem que isso
encontre qualquer mácula ou inconstitucionalidade. Também, não há revogação
tácita do dispositivo, o que faz com que ele subsista, portanto, em sua
íntegra. Com tais considerações, o Min. Celso de Mello votou pelo conhecimento
dos embargos infringentes.
2. CRÍTICAS
AO VOTO DO MIN. CELSO DE MELLO
Esclareça-se inicialmente que a palavra crítica pode ser empregada no sentido de indagar, inquirir, perscrutar, ou seja, a busca pelo
conhecimento. É nesse sentido que a proposta de realização da resenha foi
recebida, não no sentido de falar mal ou de ver defeitos, até porque o notável
brilhantismo do Min. Celso de Mello dispensa qualquer comentário. Ainda nessas
considerações iniciais, convém destacar que alguns fatos notórios, mormente
sobre o contexto do julgamento, não serão provados, nem mesmo referidos porque
os fatos notórios independem de provas. E, adotando a posição de Levy Emanuel
Magno, esclarecemos que notórios “são os fatos de conhecimento geral ou domínio
público”.[3]
O
início do voto, com a polidez peculiar do Min. Celso de Mello, parece repreender,
ainda que implicitamente, o Presidente do STF por sua perfídia, eis que o
encerramento da sessão do dia 12.9.2013, evidentemente, objetivou a colocá-lo
sob intensa pressão popular, exercida publicamente e com a participação da
imprensa.
Conforme
o Min. Celso de Mello acentuou em seu voto, a neutralidade, a isenção e a
imparcialidade do julgador são objetivos difíceis de serem alcançados, mas que
não deve ser a pressão popular evidenciada pela imprensa, quem deve determinar o
julgamento de um tribunal com a magnitude do STF.
É
interessante notar que ele trata do devido processo legal (due process of law) como uma garantia constitucional. Sobre tal
garantia, pode-se afirmar ser democrática de que
ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal
(artigo 5º, inc. LIV, da CF). Nesse sentido, Tourinho Filho expõe que Couture
já ensinava que o devido processo legal é a garantia que supõe a tramitação de
um processo desenvolvido na forma que estabelece a lei e que a que a Emenda V
da Constituição estadunidense já proclamava nenhuma pessoa pode ser privada da
vida, liberdade ou propriedade sem o due
process of law.[4]
Processo devido em
direito significa, portanto, a observância de um tipo de processo legalmente
previsto antes de alguém ser privado da vida, da liberdade e da propriedade.
Mas não apenas um processo formal: o sentido é de processo justo definido por
lei para se dizer o direito, para se prestar a jurisdição, designadamente em
função da necessária observância das normas referentes às liberdades dos
cidadãos.
Observe-se
que o Decreto-Lei n. 4.657, de 4.9.1942, lei
de introdução às normas do Direito brasileiro, dispõe em seu art. 2º que a
lei nova só revogará tacitamente a anterior se regular inteiramente a matéria
de forma incompatível com ela. Assim, não é cabível o argumento de que a Lei n.
8.038, de 28.8.1990, revogou tacitamente o art. 333, inc. I, do RISTF. Não há
incompatibilidade dos embargos infringentes com a nova ordem constitucional,
razão da Constituição Federal de 1988 ter recepcionado o art. 333, inc. I, do
RISTF. Assim, o único argumento que poderia levar à inaplicabilidade do
preceito mencionado seria o fato de ter a Lei n. 8.038/1990 apenas esquecido de
mencionar os embargos infringentes, o que torna oportuna a referência ao
exposto por Carlos Maximiliano: “Se a lei nova cria, sobre o mesmo assunto da
anterior, um sistema inteiro, completo, diferente, é claro que todo o outro
sistema foi eliminado”.[5]
Não
se aplica a referida doutrina aos embargos infringentes previstos no RISTF,
haja vista que que o art. 2º da própria Lei n. 8.038/1990 dispõe que “... que
se realizará segundo o disposto neste capítulo, no Código de Processo Penal, no
que for aplicável, e no Regimento Interno do Tribunal”. Assim, confirma-se a
não há revogação tácita, mas preservação do art. 333, inciso I, do RISTF, o que
torna cabível outra lição de Carlos Maximiliano: “a incompatibilidade implícita
entre duas expressões de direito não se presume; na dúvida se considerará uma
norma compatível com a outra.[6]
Em
um sistema de estrita legalidade, conforme modelo proposto por Luigi Ferrajoli,[7]
ao contrário de negar vigência a uma norma compatível com as garantias
constitucionais aos direitos fundamentais, dever-se-á empreender interpretação
compatível com aquela feita pelo Min. Celso de Mello, até porque o devido
processo legal só se confirmará se assegurado o duplo grau de jurisdição. É
nesse sentido, o de emprestar maior amplitude ao duplo grau de jurisdição que
se posiciona Badaró.[8]
A falibilidade humana está a justificar a previsão legal de
recursos, repudiando decisões que não sejam suscetíveis de revisão por outrem
que não participou do primeiro julgamento. É por isso que se deve ver com
reservas o acórdão condenatório não recorrível.
O que não se pode admitir é a inexistência de qualquer
possibilidade de revisão, o que está implícito na Constituição Federal, ao
declarar que aos tribunais caberão julgar originariamente e em grau de
recurso certas matérias. Certamente, competir ao tribunal julgar em grau de
recurso será reexame, o que autoriza dizer que o duplo grau de jurisdição é
constitucional.
O duplo grau de jurisdição decorre do da ampla defesa, haja
vista que a possibilidade de recurso garante a plena e ampla defesa. No
entanto, quem tem prerrogativa de foro perante o Supremo Tribunal Federal não
terá direito a recurso em várias hipóteses, o que é aceito pela doutrina pátria
como correto para evitar uma infinidade de instâncias recursais. O que falta é
criar critérios claros e estabelecer mecanismos para recursos internos, dentro
do próprio tribunal, mas sem gerar a possibilidade de se interpor,
indefinidamente, recursos.
A discussão é interessante porque aquele que for processado
perante juízo de primeira instância terá direito à interposição de recursos
diversos, enquanto aquele que tiver prerrogativa de foro perante o Supremo
Tribunal Federal verá suprimido seu direito ao duplo grau de jurisdição.
Destarte, o corréu em crime conexo com autoridade que detém prerrogativa de
foro perante o STF pode pretender a separação de processos, a fim de preservar
seus direitos recursais. Sobre o assunto, o STF editou a Súmula n. 704, in
verbis: “Não viola as garantias do juiz natural, da ampla defesa e do
devido processo legal a atração por continência ou conexão do processo do
corréu ao foro por prerrogativa de função de um dos denunciados”.
Na Ação Criminal n. 470 quem não tinha prerrogativa de foro viu a
atração da competência do STF em seu desfavor, uma vez que é o tribunal quem
decide sobre a manutenção da sua competência para julgar os fatos.
Um processo garantista precisa estar munido de mecanismos para
possibilitar o duplo grau de jurisdição, ainda que a decisão decorra de
tribunal e seja unânime. Não é rara a declaração de nulidade da decisão unânime
de turma de tribunal, isso em sede de recurso especial (STJ) ou recurso de
revista (TST), o que evidencia a grande possibilidade haver erro em decisão
unânime. Por isso, é necessário criar mecanismo para reexame do mérito, ainda
que a decisão seja unânime, isso sem depender de interposição de recurso
constitucional (recursos extraordinário, especial e de revista), pois muitas
vezes este não será cabível, mas o mérito poderá estar equivocadamente
decidido.
Na hipótese da Ação Criminal n. 470, a decisão por maioria
evidenciava a dúvida. Outrossim, houve a modificação da composição do tribunal,
o que reforçava as razões para se admitir os embargos infringentes, na linha do
eloquente voto do Min. Celso de Mello.
4. CONCLUSÃO
Concluo
afirmando que não se pode compactuar com a má-fé da parte. Muito menos, será
aceitável a má-fé do julgador, sendo que a postura do Presidente do STF não restou
indene de dúvidas, visto que, tendente a violar direito fundamental da parte,
colocou o Min. Celso de Mello em posição delicada, exposto à pressão popular,
mas ele foi firme ao expor:
Assim como a jurisprudência do
Supremo Tribunal Federal tem entendido qualificar‐se como abusiva e ilegal a
utilização do clamor público como fundamento da prisão preventiva (RTJ 112/1115
– RTJ 172/159 – RTJ 180/262‐264 – RTJ 187/933‐934 – RTJ 193/1050, v.g.), esse
ilustre magistrado federal, no trabalho que venho de referir, também põe em
destaque o aspecto relevantíssimo de que o processo decisório deve ocorrer em
“ambiente institucional que valorize a racionalidade jurídica”, acentuando,
ainda, com apoio no magistério de ROBERT ALEXY (“Constitucionalismo
Discursivo”, p. 163, 2007, Livraria do Advogado), o que se segue:
A questão da legitimidade do Poder Judiciário surge sempre que se pergunta sobre o
alcance da norma constitucional expressa no enunciado de que ‘todo poder emana
do povo, que o exerce por meio de seus representantes eleitos ou diretamente’
(art. 1º, parágrafo único). Se o poder
judicial não é exercido pelo povo ‘diretamente’, nem por meio de
‘representantes eleitos’, impõe‐se
investigar o que torna justificável a aceitação das decisões dos juízes por
parte da cidadania.
A única possibilidade de conciliar
a jurisdição com a democracia consiste em compreendê‐la também como representação do povo. Não se trata, obviamente, de um mandato
outorgado por meio do sufrágio popular, mas
de uma representação ideal que se dá no plano discursivo, é dizer, uma
‘representação argumentativa’. Essa
representação argumentativa é exercida não no campo das escolhas políticas
– cujas deliberações versam (predominantemente) sobre o que é bom, conveniente
ou oportuno –, mas no campo da aplicação
do direito, sob as regras do discurso racional por meio do qual se sustenta
e se declara o que é correto, válido ou devido. (grifei)
O que mais importa, neste
julgamento sobre a admissibilidade dos embargos infringentes, é a preservação
do compromisso institucional desta Corte Suprema com o respeito incondicional
às diretrizes que pautam o “devido processo penal” e que compõem, por efeito de
sua natural vocação protetiva, o próprio “estatuto constitucional do direito de
defesa”, que representa, no contexto de sua evolução histórica, uma
prerrogativa inestimável de que ninguém pode ser privado, ainda que se revele
antagônico o sentimento da coletividade!
Com tais palavras, concluo que direitos fundamentais não podem ser
violados pelo Poder Judiciário ou qualquer agente do Estado, a fim de atender
ao clamor popular. Ao contrário, é mister atuar com imparcialidade e, ainda que
esta seja um mito, buscar agir atendendo ao sistema de dinâmico de normas, não
visando ao atendimento de vingança pública que se manifestará presente em todos
os casos que houver pressão dos meios de comunicação de massa.
REFERÊNCIAS
BADARÓ, Gustavo Henrique. Direito
processual penal. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008. t. 1.
BRASIL. STF. Plenário. Embargos Infringentes na Ação
Criminal n. 470. Voto do Min. Celso de Mello. 18.9.2013. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/
anexo/AP_470__EMBARGOS_INFRINGENTES.pdf>. Acesso em: 3.1.2014, às 10h.
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo
penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2.002.
MAGNO,
Levy Emanuel. Curso de processo penal
didático. São Paulo: Atlas, 2013.
MAXIMILIANO,
Carlos. Hermenêutica e aplicação do
direito. Rio de Janeiro: Forense, 2000.
[1] Texto escrito de 3 a 5.1.2014, já se vão
quase 10 anos, desde que o escrevi.
[2] BRASIL. STF. Plenário. Embargos
Infringentes na Ação Criminal n. 470. Voto do Min. Celso de Mello. 18.9.2013.
Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/AP_470__EMBARGOS_INFRINGENTES.pdf>.
Acesso em: 3.1.2014, às 10h.
[3] MAGNO, Levy Emanuel. Curso de processo penal didático. São Paulo: Atlas, 2013. p. 424.
[4] TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo penal. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 1989. v. 1, p. 60.
[5] MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. Rio de Janeiro: Forense, 2000.
p. 358.
[6] Ibidem.
[7] FERRAJOLI, Luigi. Direito e
razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2.002. passim.
[8] BADARÓ, Gustavo Henrique. Direito processual penal. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008. t. 1, p.
25.
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