1.
FINALIDADE
Tratarei aqui muito
rapidamente de algo que venho afirmando nas defesas criminais: “mulheres são
muito duras, prefiro os homens decidindo”.
Esse rótulo antipático à
ideologia de gênero está me atingindo profundamente, especialmente
porque o expresso involuntariamente, embora o problema seja pontual.
Aqui estamos diante de
mais um deles: uma Juíza de Direito violando direitos de uma menina.
Segue uma pequena
introdução:
A Justiça autorizou, na manhã desta terça-feira (21), que a criança de 11 anos
grávida em decorrência de um estupro, em Santa Catarina, retorne a sua casa, segundo informações da advogada da
família, Daniela Felix. As autoridades aguardam o posicionamento da Vara da
Infância encaminhado pelo Tribunal de Justiça.
Ainda de acordo com
Felix, o desacolhimento da menina foi autorizado por ter sido identificado que
o agressor não está na casa onde vive.[1]
É curioso que a matéria
chegue logo após eu ter sido notificado pelo Google de que “um aviso para os
leitores foi incorporado à sua postagem com o título: O Poder Judiciário mais
uma vez envergonha! Uma análise a partir do Caso de Abaetetuba”.[2]
Só para lembrar, a
menina de Abaetetuba ficou presa por vários dias em cela para homens na região
metropolitana de Belém-PA. De outro lado, agora, temos uma menina sob medida
protetiva porque foi vítima de estupro.
2. CUIDADOS QUE
PRECISAMOS TER AO TRATAMOS DOS DOIS CASOS
Sou defensor do direito
ao esquecimento. No entanto, amparado pela doutrina de Virgílio Afonso da
Silva, sustento que todos os direitos fundamentais são ponderáveis, ou seja,
nenhum é absoluto, sendo oportuno transcrever a conclusão:
A partir da consolidação
da ideia de que todo direito fundamental é restringível, colocou-se em xeque a
tradicional distinção das normas constitucionais, quanto à sua eficácia, em normas de eficácia plena, normas de eficácia contida e normas de eficácia limitada.
A distinção entre normas de
eficácia plena e normas de eficácia contida foi colocada em xeque porque se
baseia justamente na possibilidade ou impossibilidade de restrições. Normas de
eficácia plena não seriam restringíveis, enquanto as normas de eficácia contida
seriam. Contudo, se todos os direitos fundamentais são restringíveis, a
distinção perde a razão de ser.[3]
Ao falar de casos
sensíveis como os presentes, não podemos nos olvidar de que a própria Constituição
Federal nos alerta para o fato de que crianças e adolescentes são pessoas em
desenvolvimento (art. 227, § 3º, inc. V). De outro lado, temos a dignidade de
autoridades.
Ocorre que, em
princípio, as Juízas de Direito violaram direitos humanos fundamentais, sendo
que o caso de Abaetetuba resultou em processos e o atual, segundo consta, já
tem opiniões de Conselheiros do Conselho Nacional de Justiça em favor do
processamento da magistrada.[4]
Não podemos apagar a
história, em nome da dignidade das magistradas envolvidas nos 2 casos, bem como
em favor do direito ao esquecimento. Nesse aspecto, em 2016, quando a 33ª Vara
Criminal da Comarca do Rio de Janeiro proibiu a venda do livro Minha Luta
(no original, Mein Kampf), de Adolf Hitler, fui convidado pela TV
Justiça para participar, com Sidney Aguilar Filho[5],
sobre programa que discutiria o tema do nazismo no Brasil. Uma das perguntas do
entrevistador foi:
– Podemos apagar a
história?[6]
A minha resposta foi a
de que o livro Minha Luta já existia, em português e gratuito, na rede mundial
de computadores e que a discussão era interessante porque naqueles dias a
demolição da casa onde Hitler nasceu era discutida na Áustria.
Enquanto muitos defendem
que os erros devem ser lembrados para evitar repetições e provocar avanços,
outros creem que ignorar os fatos desonra os seus autores. Estes últimos
entendem que lembrar os fatos nos deixa vulneráveis a repeti-los.[7]
Aqui no Brasil, ante o
pedido de indenização por irmãos de uma vítima, em face de divulgação não
autorizada da imagem desta no Programa Linha Direta da TV Globo, tivemos um litígio
que resultou na Tese n. 786 do Supremo Tribunal Federal, in verbis:
É incompatível com a Constituição a ideia de
um direito ao esquecimento, assim entendido como o poder de obstar,
em razão da passagem do tempo, a divulgação de fatos ou dados verídicos e
licitamente obtidos e publicados em meios de comunicação social analógicos ou
digitais. Eventuais excessos ou abusos no exercício da liberdade de expressão e
de informação devem ser analisados caso a caso, a partir dos parâmetros
constitucionais - especialmente os relativos à proteção da honra, da imagem, da
privacidade e da personalidade em geral - e as expressas e específicas
previsões legais nos âmbitos penal e cível.[8]
Assim como no caso de
Abaetetuba, a minha maior preocupação será com a imagem da vítima, não das
autoridades envolvidas nos casos que tenho por delituosos.
3.
COMPARAÇÕES NECESSÁRIAS
Em 2013 tivemos uma
adolescente apreendida em flagrante, tendo o Ministério Público do Estado do
Pará, por intermédio de uma Promotora Justiça pedido a conversão em prisão,
deferida por uma Juíza que conhecia a superpopulação da cadeia pública em que
se encontrava presa com vários homens, a qual era estuprada várias vezes por
dia. Após o STF ter cassado a decisão do CNJ que aposentou compulsoriamente a
Juíza, o TJPA a promoveu por merecimento.
No dia 20.6.2022 veio à
imprensa o fato de uma Juíza ter mandado para um abrigo, uma menina grávida, isso
para evitar o abortamento, notícia que foi intensificada no dia 21.6.2022,[9]
isso porque a magistrada encorajou a criança a não abortar, como se a vítima
tivesse capacidade jurídica plena para decidir sobre a matéria.[10]
Curiosamente, a criança fragilizada pela transformação hormonal foi afastada da
mãe e, coincidentemente – ao exemplo de Abaetetuba -, a magistrada foi
promovida por merecimento, mediante decisão do TJSC, de 15.6.2022.[11]
O abortamento é a
interrupção da gravidez com a morte do feto e, pior, a medida protetiva à vítima
de estupro, sob o pretexto de que a mãe que buscava amparo judicial
representava um risco à criança, é um absurdo sem precedentes.
A Lei n. 8.069, de 13.7.1990,
preceitua:
Art. 98. As medidas de
proteção à criança e ao adolescente são aplicáveis sempre que os direitos
reconhecidos nesta lei forem ameaçados ou violados:
I - por ação ou omissão da
sociedade ou do Estado;
II - por falta, omissão ou
abuso dos pais ou responsável;
III - em razão de sua conduta.
No caso, foi o Poder
Judiciário quem violou o direito da criança “à convivência familiar”, em face de
uma mãe que buscou a sua proteção, atingindo direito fundamental expresso no
art. 227, caput, da Constituição
Federal.
Ao contrário de abuso da
mãe, o que ela pretendeu fazer valer foi a lei, uma vez que o art. 128, inc. II,
do Código Penal. No caso, caso o estuprador fosse da família, que o agente
fosse afastado do lar mediante medida protetiva ou até preso cautelarmente.
Criança de 10 anos que
pratica conjunção carnal e engravida, juridicamente, não pratica crime. Ela é vítima
de crime ou de ato infracional descrito no art. 217-A do Código Penal. Diz-se que a menina tinha conjunções carnais, autorizadas pela mãe, no interior da própria casa, com namorado de 13 anos. No caso, ainda assim, o abortamento seria legal porque - em tese - houve ato infracional do adolescente.
O exposto evidencia que
a criança foi vítima de conduta abusiva do Poder Judiciário ao ser submetida a
uma medida protetiva prevista no art. 101, inc. VII, da Lei n. 8.069/1990, sem
a incidência de qualquer hipótese do art. 98 da mesma lei.
CONCLUSÃO
É triste tratar de fatos
assim porque o que se pode constatar é uma mistura de Direito e moral, quando já
está demonstrado que o julgamento não pode se dar por convencimento íntimos de
um julgador. Mas, por uma persuasão racional, ante as provas que são
implementadas.
Privar uma criança da
convivência familiar, especialmente da mãe que buscava a proteger, sem qualquer
indício de que a mãe tenha praticado crime, não tem amparo legal.
Não direi aqui que a Juíza
praticou o crime do art. 9º ou do art. 15-A, inc. II, da Lei n. 13.869, de
5.9.2019. No entanto, ao exemplo do caso de Abaetetuba, a sua conduta é gravíssima,
com sérias consequências à vítima e à sua genitora.
[1] ALECRIM, Giulia; SOUZA, Renata. Justiça
autoriza que criança vítima de estupro em Santa Catarina volte para casa:
menina de 11 anos estava em abrigo desde que foi impedida de realizar um aborto.
21.6.2022, às 14h10. Disponível em: <https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/justica-autoriza-que-crianca-vitima-de-estupro-em-santa-catarina-volte-para-casa/>.
Acesso em: 21.6.2022, às 21h.
[2] O aviso chegou na minha caixa de mensagens,
em <sidiojunior@gmail.com>, no 21.6.2022, às 23h34. Ao acessar o
artigo, verifico que ele remete o leitor a <https://www.blogger.com/post-interstitial.g?blogspotURL=http://sidiojunior.blogspot.com/2013/10/o-poder-judiciario-mais-uma-vez.html>,
onde se lê: “Aviso de conteúdo confidencial: Talvez esta postagem tenha conteúdo
confidencial. Em geral, o Google não revisa nem endossa o conteúdo deste ou de
qualquer outro blog. Para saber mais sobre nossas Políticas de conteúdo, acesse
as diretrizes da comunidade do Blogger.” Pedi a revisão porque o texto se orientou apenas por dados
públicos, o que será um pouco desenvolvido no que ora estou escrevendo.
[3] SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos
fundamentais: conteúdo essencial, restrições e eficácia. 2. ed. São Paulo:
Malheiros, 2010. p. 254.
[4] COELHO, Gabriela; HAHON, Eduardo. Sete conselheiros do CNJ pedem à
corregedoria para investigar juíza de SC: Joana Ribeiro Zimmer é investigada
por atuação no caso da menina de 11 anos impedida de fazer um aborto após ter
sido estuprada, 21.6.2022, às 16h10. Disponível em: <https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/sete-conselheiros-do-cnj-pedem-a-corregedoria-para-investigar-juiza-de-sc/>.
Acesso em: 21.6.2022, às 21h50.
[5] Historiador que escreveu a tese “Educação,
autoritarismo e eugenia: exploração do trabalho e violência à infância
desamparada no Brasil (1930-1945)”, na qual assegura ter havido nazismo no
Brasil.
[6] STF. TV Justiça. 28.11.2016, as 12h30.
Reapresentações em 29.11.2016, às 9h; 30.11.2016, às 20h; 2.12.2016, às 12h;
3.12.2016, às 12; e 4.1.2016, às 12h. Informações disponíveis em: <https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=330530&ori=1>.
Acesso em: 21.6.2022, às 22h10.
[7] FIEDERER, Luke. Por que o plano da Áustria de
demolir a casa onde nasceu Hitler é controverso.
[8] STF. Tribunal Pleno. RE 1010606. Min. Dias
Toffoli, 11.2.2021. Disponível em: <https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=755910773>.
Acesso em: 21.6.2022, às 23h.
[9] CARTA CAPITAL. Justiça
de Santa Catarina ordena que menina de 11 anos, vítima de estupro, volte a
morar com a mãe: Juíza havia encaminhado criança grávida para um abrigo com o
objetivo de evitar a interrupção da gestação, 21.6.2022, às 13:37. Disponível
em: <https://www.cartacapital.com.br/justica/justica-de-santa-catarina-ordena-que-menina-de-11-anos-vitima-de-estupro-volte-a-morar-com-a-mae/>.
Acesso em: 21.6.2022, às 23h20.
Segue o inteiro
teor da notícia:
A Justiça de Santa Catarina ordenou que uma
menina de 11 anos, vítima de estupro, volte para a mãe após ter sido mantida em
um abrigo para evitar que fosse submetida a um aborto.
A criança tinha permissão para realizar o procedimento
abortivo sem a necessidade de autorização judicial, mas o direito lhe foi
negado pela Juíza Joana Ribeiro Zimmer.
A mãe da menina havia descoberto a gravidez
após 22 semanas de gestação. A criança, então, foi encaminhada a um hospital de
Florianópolis para que a gravidez fosse interrompida, mas a equipe médica se recusou
a realizar o procedimento, sob a alegação.
de que
as normas internas do hospital permitiam o ato apenas até a 20ª semana.
Ao portal G1, a advogada da família da
criança declarou que há uma decisão judicial que autoriza a interrupção da
gravidez da menina. Porém, a execução do procedimento estava impedida pelo fato
de a criança ter sido colocada em um abrigo fazia mais de um mês.
[10] REDAÇÃO. Aborto:
juíza de Santa Catarina encoraja criança de 11 anos a manter gravidez: a
criança vítima de estupro foi pressionada durante uma audiência, por juíza e
promotora, a manter gravidez resultante de um estupro. UOL: PARANÁPORTAL,
20.6.2022, às 16h01. Disponível em: <https://paranaportal.uol.com.br/geral/aborto-santa-catarina-crianca-vitima-estupro-11-anos>.
Acesso em: 21.6.2022, às 23h30.
Leia-se o inteiro teor da matéria:
O
crime foi descoberto pela mãe, dias antes do aniversário de 11 anos da vítima.
Segundo informações que constam no processo, a criança sentia muitos enjoos.
Além disso, o crescimento anormal da região abdominal denunciava a gravidez.
A mãe
procurou o conselho Tutelar de Tijucas, cidade a 50 quilômetro da capital de
Santa Catarina, Florianópolis. Elas foram encaminhadas ao Hospital
Universitário da UFSC, referência para procedimentos de aborto legal.
A
medida foi negada pelo hospital. Segundo o HU, as normas internas permitiam o
aborto até 20ª semana. A criança de 11 anos, vítima de estupro, encontrava-se
na 22ª semana de gravidez.
O
caso, então, foi encaminhado à Justiça. O Ministério Público de Santa Catarina
pediu o acolhimento institucional da criança, sob pretexto de protegê-la do agressor.
No entanto, a juíza Joana Ribeiro Zimmer acolheu o pedido argumentando que era
necessário proteger o feto.
“O
risco é que a mãe efetue algum procedimento para operar a morte do bebê”,
decidiu a magistrada, em decisão obtida pelo portal Catarinas, em reportagem
com apoio do The Intercept Brasil.
A
reportagem também teve acesso aos áudios da audiência, na qual a juíza Joana
Ribeiro Zimmer tenta convencer a criança a manter a gravidez por mais uma ou
duas semanas. “Você suportaria ficar mais um pouquinho?”, questiona a juíza,
durante a audiência.
A
pressão à criança de 11 anos vítima de estupro também acontece por parte do
Ministério Público de Santa Catarina. Segundo a reportagem, durante a
audiência, a promotora Mirela Dutra Alberton tenta dissuadir a criança do
direito ao aborto legal.
“Em
vez de deixar ele morrer – porque já é um bebê, já é uma criança –, em vez de a
gente tirar da tua barriga e ver ele morrendo e agonizando, é isso que
acontece, porque o Brasil não concorda com a eutanásia”, diz ela.
Juíza
e promotora argumentam quem o aborto não poderia acontecer após a 20ª semana de
gravidez, segundo o protocolo no Ministério da Saúde. No entanto, a legislação
brasileira autoriza o procedimento sem restrições em caso de violência sexual.
Em
nota ao The Intercept, a Joana Ribeiro Zimmer, por meio do Tribunal de Justiça
de Santa Catarina, informou que “não se manifestará sobre trechos da referida
audiência, que foram vazados de forma criminosa. Não só por se tratar de um
caso que tramita em segredo de justiça, mas, sobretudo para garantir a devida
proteção integral à criança”.
Da mesma forma, a promotora Mirela Dutra Alberton, por meio
do Ministério Público de Santa Catarina, respondeu que o aborto legal somente é
viável até 22 semanas e peso inferior a 500g. “Dessa forma, diante dessa
complexa situação, optou-se, por uma solução ponderada do caso concreto,
viabilizando-se uma interrupção antecipada do parto, de modo a salvaguardar a
vida da infante e do nascituro, a ser implementada a critério da equipe médica”.
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