1. Introdução
Estou muito preocupado com os
novos ares políticos que permeiam o Brasil. Lamento tudo o que vejo e,
especialmente, deturpações do pensamento, levando ao democídio.
Um colega de trabalho,
recentemente, afirmou que o seu ex-Professor de Direito Criminal na
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) migrou para discursar em favor
do punitivismo e contra a bandilotraria, o que me levou ao presente
texto.
Em linhas gerais o democídio
é o assassínio de qualquer pessoa ou grupo de pessoas pelo seu governo,
incluindo o assassinato em massa em geral. No livro, o sistema
jurídico-criminal gera morte de pessoas de bem por ser extremista na proteção
de criminosos. Tudo decorreria do fato de que o Direito está dominado por
ideologias ensinadas e praticadas por Professores, Juízes e Advogados
garantistas e de esquerda.[1]
Isso se vincula à bandidolatria, visto que leva ao democídio
porque as práticas garantistas do sistema jurídico criminal conduz à impunidade
e ao extermínio de pessoas de bem porque os criminosos são incentivados aos
crimes.
Com Norberto Bobbio, digo que a distinção
entre esquerda e direita só existe em nossos discursos.[2] O
livro[3]
encontrou ambiente fecundo para difusão porque os autores se aliaram ao suposto
movimento de direita que levariam a um novo Presidente da República no ano de
2018. Ocorre que pretender a intervenção militar estatal não pode constituir
propriamente movimento de direita.
2. Um livro, a crítica científica
a ele e um processo criminal em razão dela
Diego Pessi,
um Promotor de Justiça,[4]
acompanhado de Leonardo Giardin de Souza, outro Promotor de Justiça,[5]
publicaram um livro (sem muito conteúdo doutrinário aproveitável) que mereceu o
seguinte comentário de uma Professora de Direito:
Depois de anos de total
mediocridade intelectual, formação manualística, rejeição de todo e qualquer
estudo ou pesquisa acadêmicas, conseguiram sistematizar toda sua visão
classista, racista, intolerante e antidemocrática numa obra chamada
‘Bandidolatria e Democídio’. Seria cômico se não fosse trágico.[6]
O pior é que a afirmação se
transformou em um processo criminal porque os Membros do MPRS não admitiram a
crítica científica desenvolvida.[7] No
entanto, ainda que eu seja processado, é meu dever expor um pouco do que o
atual estágio de civilização exige de compreensão sobre a matéria.
Esclareço que a afirmação acadêmica
da Professora Christiane Russomano Freire, nem mesmo em tese, poderia ser
classificada como injúria, uma vez que referente a fato específico e não se
pode litigar por injúria para impedir a prova da verdade.[8]
Ademais, ainda que se diga que não é cabível a prova da verdade porque a
crítica não foi feita em razão do cargo das supostas vítimas, classificamos o
Direito como ciência social aplicada e, portanto, a atuação da ré estava
amparada pela crítica científica (Código Penal, art. 142, inciso I).
Não vejo como dissociar as
aparições dos autores e o livro do cargo ocupado por eles. Eles se manifestam
no contexto de um punitivismo vinculado ao governo brasileiro, eleito para o
mandato de 2019 a 2022, conforme se vê na “Cúpula Conservadora das Américas”,
em que o autor é apresentado como Membro do MPRS.[9]
Outrossim, não consigo vislumbrar o animus injuriandi, essencial ao
crime contra a honra. O animus corrigendi (instruendi, docendi,
emendandi) exclui o animus injuriandi ver difamandi. Não obstante
isso, em processo que corre em segredo de justiça, o pedido condenatório foi
julgado procedente, mas o processo prossegue em fase recursal.[10]
No dia 15.2.2024, iniciando outro
estudo, passei pelo artigo e resolvi buscar sobre o desenrolar do processo
criminal. Porém, na página do TJRS não mais localizei qualquer informação sobre
ele. Mas, posso atualizar um pouco e demonstrar a minha indignação diante da
postura daquele tribunal, visto localizei artigo que informa ter sido a
Professora Christiane condenada.[11]
Ao final do artigo, há ícone para
acesso ao acórdão proferido pela Turma Recursal na Apelação n. 71009088980
(0078539-23.2019.8.21.9000) – provavelmente o processo se encontra em segredo
de justiça porque o acórdão sequer apresenta os nomes das partes -, o qual
ficou assim ementado:
EMENTA: APELAÇÃO CRIME. INJÚRIA. ART. 140, C/C ART. 141, III,
AMBOS DO CÓDIGO PENAL. 1. OFENSA AO PRINCÍPIO DA INDIVISIBILIDADE DA AÇÃO
PENAL. MATÉRIA JÁ ANALISADA EM JULGAMENTO ANTERIOR. IMPOSSIBILIDADE DE
REDISCUSSÃO. NÃO CONHECIMENTO. Não há como conhecer do recurso na parte em que
sustenta a extinção da punibilidade por ofensa ao princípio da indivisibilidade
da ação penal, porquanto matéria já decidida em acórdão anterior por esta
TRCrim (apelação crime n. 71008081101, julgada em 28.1.2019), ocasião em que
fora cassada a decisão que rejeitou a denúncia pelo mesmo fundamento, estando,
portanto, acobertada pelo manto da coisa julgada. Apelo parcialmente conhecido.
2. SUFICIÊNCIA PROBATÓRIA. SENTENÇA CONDENATÓRIA MANTIDA. Devidamente
caracterizado o crime de injúria praticado pela recorrente, mostrando-se
impositiva a manutenção do édito condenatório. Singela adjetivação dos
querelantes como “medíocres intelectualmente”, adunada aos epítetos de
“classista, racista, intolerante e antidemocrática” sem qualquer liame lógico
com critica ou opinião literária – inexistente aliás - revelou a presença do
“animus injuriandi”, pois a conduta advém de professora com título de
doutoramento de quem se exige conduta conforme a norma, especialmente a crítica
e a opinião literária que, se lançada fosse, tornaria lícita a conduta, pois ao
abrigo da Constituição Federal. Perfeitamente caracterizada a ofensa à honra
subjetiva dos recorridos, impositiva a manutenção do édito condenatório.
RECURSO PARCIALMENTE CONHECIDO, E, NO QUE CONHECIDO, DESPROVIDO.[12]
Para contextualizar adequadamente,
conforme exposto, os autores do livro propuseram ação criminal de ação de
iniciativa exclusivamente privada e o juízo de 1º grau rejeitou a queixa. Os
querentes apelaram e a turma recebeu a queixa, determinando o processamento do
feito.
O juízo de primeiro grau condenou
a ré a 2 meses de detenção e substituiu a pena por prestação pecuniária
correspondente a R$ 3.000,00. Então, ela recorreu pedindo, preliminarmente, a
extinção da punibilidade por ofensa ao princípio da indivisibilidade da ação de
iniciativa privada e, no mérito, a absolvição pela atipicidade da conduta (ausência
de dolo) e pela presença da imunidade do art. 142, inciso II, do Código Penal.[13]
O relator não conheceu da preliminar,
em face da coisa julgada. No mérito, manteve a decisão de primeiro grau de
jurisdição. Esse voto é frágil em sua fundamentação, visto que em sua maior
parte se limita a transcrever a sentença condenatória.[14]
O revisor, Edson Jorge Cechet, se
limitou a acompanhar o relator.[15]
No entanto, é bem fundamentado o voto do membro vogal, o qual entendeu haver
questão prejudicial ao exame do mérito recursal por violação ao princípio da
correlação, afirmando:
A inicial da queixa-crime
vai um pouco além para, referindo-se ao comentário tecido pela querelada,
dizer:
A
manifestação ultrapassa os limites da liberdade de expressão e da crítica
literária, na medida em que afirma que os querelados são racistas. Ainda, a
afirmação é direta, de forma que não resta dúvida quanto ao dolo e a vontade
concreta de injuriar, atacando o bem jurídico honra.
Constata-se,
pelo parágrafo acima reproduzido, que os querelantes se sentiram ofendidos em
sua honra pois teriam sido apontados como racistas.
É isso o que
está posto, de forma objetiva na inicial da queixa-crime, de modo que
ultrapassar esse limite importa em ofensa direta ao princípio da correlação.[16]
O Juiz de Direito vogal citou a
doutrina de Aury Lopes Jr. para falar da imprescindibilidade do princípio da congruência,
que nos leva ao princípio da correlação.[17] A
seguir, transcreve parte da sentença para demonstrar o seu equívoco no
reconhecimento do dolo.[18] A
seguir, transcreve vários precedentes judiciais, inclusive do STJ, para
demonstrar o erro da sentença recorrida por violar o princípio da correlação.[19]
Com base em tudo isso, sustentou:
Há nulidade,
portanto, por violação ao princípio da correlação e, por via de consequência,
ao sistema acusatório, ao contraditório e à ampla defesa. Com efeito, a
querelada defendeu-se exclusivamente em face dos termos da queixa-crime,
considerada a limitação nela posta, sendo condenada muito além desse limite.
.....................................................................................................................
Voto, pois,
pelo reconhecimento da nulidade do processo, com a consequente desconstituição
da sentença.[20]
Acolhida a preliminar de nulidade,
o membro da turma passou ao exame do mérito, não vendo o crime de injúria,
expondo:
Pois bem,
confesso toda a minha dificuldade em alcançar a mesma leitura até aqui
estabelecida em relação ao comentário feito pela querelada, que em nenhum
momento fez referência expressa aos autores da obra, mas que, ao contrário, fez
expressa referência a obra, tanto que a nominou.
Por certo que
é possível injuriar alguém sem que seja necessário nominá-lo, desde que seja
possível identifica-lo. Contudo, a indicação da obra não significa,
automaticamente, que as injúrias tenham sido direcionadas aos seus autores.[21]
O voto divergente evidencia a
inversão do ônus da prova, fundamentando muito bem a necessidade de que a
acusação prove o alegado. Mas, todo procedimento acompanhou narrativa
equivocada que induz à inversão do ônus da prova, expondo:
O ordinário,
ao mencionar o nome do livro, é que estava a querelada, por mais deselegantes
que possam ser consideradas as palavras empregadas, referindo-se a obra. O
excepcional, ao contrário – de que a sua intenção foi atingir a honra subjetiva
dos querelantes – deveria ter sido comprovado, mas não o foi.
Ao revés, a
assertiva contida na inicial da peça acusatória transitou livremente no
processo e foi acolhida com absoluta facilidade pelo juízo que, ao assim
proceder relativizou a presunção de inocência através da inversão do ônus da
prova.
Ora, se a
autora não referiu expressamente a pessoa dos querelantes, mas tão somente a
obra destes, cabia à acusação a demonstração de que, nesse proceder, estava
escondida a intenção de macular a honra dos autores da obra. Essa prova,
contudo, não veio aos autos.[22]
Esse voto é muito bom, a partir
da perspectiva que não deveria ser invocado o fato de serem os querelantes
Promotores de Justiça e sim observar o texto apontado como sendo delituoso,
concluindo: “A conduta da querelada, portanto, que teceu críticas ao livro ‘Bandidolatria
e democídio’, e não aos autores da obra, é manifestamente atípica”. Com isso
votou pela absolvição com fulcro no art. 386, inciso III, do Código de Processo
Penal.[23]
Diante de todo o exposto, o
relator e o revisor perderam a oportunidade de se retratarem e modificarem os
seus votos. Como eles foram mantidos, a apelação foi improvida, mantendo-se a
equivocada condenação.
Não ficarei aqui discorrendo acerca
do livro que vem encontrando lugar no cenário nacional porque entendo que ele não
merece o prestígio que vem se dando a ele. Fico preocupado porque a minha tese
de doutorado foi uma defesa de direitos fundamentais[24] e
me pergunto se exerço a bandidolatria porque só advogo criminalmente pro
bono publica ou gero o democídio por provocar absolvições e por defender,
em minhas aulas, a Constituição Federal provoco a morte em massa de brasileiros.
Será?
3. Manifesto contra a bandidolatria
e o democídio
Em 3.8.2017, com a assinatura dos
2 autores do livro que trouxe a modinha de falarmos em bandidolatria
no Brasil, emergiu um manifesto contra o garantismo criminal e a bandidolatria.
O manifesto contou com a assinatura de 100 Membros do MPRS e trouxe frases de
efeito. Para não deturpar o pensamento do leitor, transcrevo o seu inteiro teor:
Nós,
operadores do Direito realmente preocupados com a segurança pública, com o
direito de ir e vir das pessoas, com a vida das pessoas de bem e não só dos
bandidos, preocupados especialmente com as vítimas e não só com seus algozes,
queremos revelar certas verdades a você, cidadão que sustenta o Estado e tem se
enganado com ele e com certas entidades, certos professores, certos
“especialistas” e outros que parecem não querer que você saiba de certas
coisas. Mas você saberá agora que muita coisa do que você tem sido induzido a
pensar NÃO É VERDADE! VOCÊ TEM SIDO ENGANADO!
Você
pensa que estão fazendo um novo código penal para diminuir a IMPUNIDADE e
melhorar a segurança pública, mas o que está em andamento torna a LEI PENAL
MAIS BRANDA e ainda dá salvo-conduto a desordeiros e terroristas fazerem o que
quiserem sem responderem na Justiça. É O QUE ELES CHAMAM DE REFORMA DO CÓDIGO
PENAL: QUE SÓ VAI AUMENTAR A IMPUNIDADE…
Você
pensa que estão preocupados com os crimes nas ruas, os assassinatos, os
assaltos, com a impunidade, mas eles estão tentando tirar criminosos perigosos
da prisão e colocá-los nas ruas, aumentando o perigo para os cidadãos e
alegando presídios cheios, enquanto ao mesmo tempo são contra construir novos
presídios parecendo que querem continuar a ter a mesma alegação pra continuarem
soltando. É O QUE ELES CHAMAM DE DESENCARCERAMENTO: BANDIDOS SOLTOS E VOCÊ
PRESO EM CASA COM MEDO, OU CORRENDO RISCO NA RUA.
Você
pensa que eles se preocupam com sua vida, mas criaram uma audiência que
resultou no aumento daqueles casos em que o marginal perigoso é imediatamente
solto e faz outras vítimas nos dias seguintes. É O QUE ELES CHAMAM DE AUDIÊNCIA
DE CUSTÓDIA.
Você
pensa que estão fazendo mudanças no Código de Processo Penal para que ele
facilite a apuração da verdade, e que se evite impunidade, e que se evite o
deboche da justiça, e que se dê algum consolo à família das vítimas. Mas o que
estão fazendo é PROIBIR que o Ministério Público possa expor certas verdades. É
colocar número par de jurados e decretar que o empate pode absolver, para
aumentar as chances de salvar assassinos. É permitir que a defesa fale duas
vezes enquanto o MP só fala uma. É proibir que se leiam depoimentos do
inquérito que foram produzidos antes das testemunhas serem ameaçadas, antes
delas estarem com medo, antes delas serem compradas… É O QUE ELES CHAMAM DE
PROCESSO PENAL DEMOCRÁTICO: DEVIAM CHAMAR DE PROCESSO PENAL DEMOCIDA (AQUELE QUE
EXTERMINA O POVO).
Você
pensa que estão fazendo uma lei para evitar o abuso de autoridade de qualquer
um, mas ELES ESTÃO MESMO É FAZENDO UMA LEI QUE SÓ ATINGE PROMOTORES, POLICIAIS
E JUÍZES e voltada a garantir que qualquer criminoso faça represálias sem
fundamento contra quem ousar promover justiça. É O QUE ELES CHAMAM DE NOVA LEI
DO ABUSO DE AUTORIDADE: SÓ VAI ATINGIR A AUTORIDADE QUE ATUA DE FORMA JUSTA E
EFICIENTE.
Você
pensa que eles querem Democracia e Justiça, mas eles criam uma proposta de Lei,
VIOLANDO A CONSTITUIÇÃO, para punir promotores e juízes que deles discordarem,
acusando-os da indefinida conduta – que serve pra tudo, quando se quiser—de
violar prerrogativas da classe– e ainda permitindo que, contra a Constituição,
uma corporação possa fazer procedimentos inconstitucionais contra promotores,
juízes e policiais. É O QUE ALGUNS CHAMAM DE GARANTIR AS PRERROGATIVAS DA
CLASSE: PARA QUE SE POSSA CONSTRANGER PROMOTORES, JUÍZES E POLICIAIS E
DEIXÁ-LOS COM MEDO DE CONTRARIAREM VOLUNTARISMOS ILEGAIS E CHICANAS E TORNA A
CLASSE A MAIS PODEROSA E DIFERENCIADA DO PAÍS…
Você
pensa que eles querem garantias para você, cidadão, mas eles só querem que não
haja punições de verdade, só querem garantir criminosos… É O QUE ELES CHAMAM DE
GARANTISMO, NO BRASIL: QUE TEM GERADO CADA VEZ MAIS IMPUNIDADE DA FORMA QUE
APLICAM.
Enfim,
você pensa que eles querem te proteger, mas QUASE TODAS AS MEDIDAS SÃO PARA
PROTEGER CRIMINOSOS E GARANTIR IMPUNIDADE.
Pelas
obras e pelos frutos você verá melhor quem é quem: PRESTE SEMPRE ATENÇÃO. Em
breve falaremos mais, revelaremos mais, explicaremos mais. Este é só o primeiro
dos manifestos.
“Quem
poupa o lobo sacrifica as ovelhas” (Victor Hugo)
Bandidolatria
mata.
Desencarceramento
mata.
Impunidade
mata.[25]
Esse texto, com frases em letras
maiúsculas para chamar a atenção dos leitores para aquilo que pretende
destacar, traz uma série de imprecisões e incorreções, até porque invoca Victor
Hugo (1802-1885), notável defensor dos direitos humanos, ao contrário do que
defende o malsinado[26]
manifesto.
Em diversas publicações que fiz
anteriormente, defendi o garantismo, embora tenha a preocupação com
perspectivas extremistas que alguns juristas fazem acerca da teoria. De todo
modo, considero oportuna a afirmação de Bobbio (1909-2004) acerca da obra de
Ferrajoli:
A aposta é alta:
a elaboração de um sistema geral de garantismo ou, se quiser, a construção das
colunas mestras do Estado de direito, que tem por fundamento e fim a tutela das
liberdades do indivíduo frente às variadas formas de exercício arbitrário de poder,
particularmente odioso para o direito penal.[27]
O garantismo é denso, construído
em um livro de 1.003 páginas, na edição originária,[28]
merecendo tratamento acadêmico sério, não apenas uma meia dúzia de palavras
contrárias, isso sem enfrentar as bases do garantismo.
Lênio Streck (nascido em
21.11.1955), com toda propriedade, fez severas críticas ao manifesto elaborado
contra a bandidolatria, expondo:
Requeiro, na forma da Constituição, que os signatários
do manifesto respeitem a advocacia e os professores que não pensam como eles.
Sem advogados não há Justiça. Leiamos o artigo 133 da CF. E sem advogado não há
processo. Não dá para fazer como em Henry VI (Shakespeare), nas palavras de
Dick, o açougueiro: “First thing we do, lets kill all the
lawyers" (a primeira coisa que faremos é matar todos os
advogados). O mundo jurídico não é uma peça shakespeariana. Sem os advogados,
não há nem bons salários para juízes e promotores.[29]
O garantismo não deve ser tratado
superficialmente como o fazem alguns autores de livros que têm a pretensão de
serem jurídicos. Também, não merece ser atacado sem uma exposição densa como
foi a de Luigi Ferrajoli (nascido em 6.8.1940). Mais ainda, nesse momento de
deslegitimação dos Poderes instituídos, de uma luta popular pelo desrespeito
aos direitos fundamentais etc. só restarão bons Advogados para interceder a
favor das pessoas sujeitas aos rigores do punitivismo estatal que é buscado.
Tobias Barreto (1839-1889) já nos
ensinava que os fundamentos do direito de punir transcendem aspectos
científicos-jurídicos, passando por uma fundamentação metafísica, religiosa e,
especialmente, por um desejo de vingança pública.[30]
No entanto, espero que o Direito seja algo mais lúcido do que aquilo que prega
o defensor de um punitivismo extremo e irracional.
Manuel da Mota Coqueiro
(1799-1956), A Fera de Macabu, foi morto em uma execução de pena de morte
equivocada. Como epígrafe do livro que conta a história do equivocado julgamento
e da triste execução, o autor apresenta a pergunta:
– Você é a favor da pena de morte?
Como
resposta, temos outra pergunta:
– O quê você
diria se o seu filho, olhando no fundo dos seus olhos, dissesse: papai sou
inocente?[31]
Para evitar situações como as de
Manuel da Mota Coqueiro, continuarei sendo um bandidolatra. Continuarei
defendendo pessoas contra injustas acusações e, em favor da sociedade,
procurarei livrar as pessoas da maior escola do crime, o cárcere.
As práticas estatais que são democidas
são anteriores ao Direito Criminal. Estão nas filas dos hospitais, na falta de
educação, na falta de dignidade da pessoa pobre etc. No Brasil, em plena pandemia,
tivemos um governo tendente ao golpe de Estado sendo negacionista, o que
resultou em muitas mortes por Covid-19, um verdadeiro democídio, isso no
sentido que lhe empresta Rummel.
4. Democídio
Em regra, o povo brasileiro não
tem condições de entender questões mais complexas, a razão disso decorre
daquilo que Heidegger chamou de preguiça de pensar.[32] É fácil ficar discursando em apelo
ao sentimento popular junto com o parlamentar Delegado Funalo ou Delegado
Sicrano, Cabo X, Sargento Y, Capitão W, Major Z etc. – grupo que impregna o
Congresso Nacional de hoje, mas que o Presidente da República pretende retirar
para governar como um ser absoluto -, convencer um povo que não gosta de pensar
a lutar por uma ditadura, sem entender que o democídio se dá, especialmente em
ditaduras, é fácil. Mas, não me quedarei ao discurso fácil e raso de alguns
Membros do MP.
Democídio é um neologismo
decorrente dos estudos de Rudolph Joseph Rummel (1932-2014), Professor da
Universidade do Havaí, o qual procurou demonstrar que existem diferentes formas
de genocídio e uma é o democídio, aquele praticado pelo Estado,
especialmente o ditatorial.
A Universidade do Havaí, após a
morte de Rummel, mantém a sua página eletrônica e, como “chamada”, dela se
extrai:
Pray tell, my brother,
Why do dictators kill
and make war?
Is it for glory; for things,
for beliefs, for hatred,
for power?
Yes, but more,
Ao contrário de ovacionar a
intervenção punitivista do Estado, Rummel procurava generalizar o genocídio,
por meio da palavra democídio, especialmente para demonstrar as mortes em massa
que poderiam ser atribuídas ao Estado ditatorial. Curiosamente, o que se fala
no momento em torno da matéria, privilegia a constituição de uma ditadura no
Brasil.
A sociedade é complexa e quanto
mais plural ela for mais apta estará a dogmatizar o seu Direito.[35] Pretender reduzir o problema da
criminalidade ao (sub)sistema jurídico será se esquecer que a ação comunicativa
não pode se reduzir a um (sub)sistema social.[36]
5. Conclusão
O que posso dizer é que defender
direitos fundamentais está longe de ser bandidolatria. Ser Professor e ensinar
o garantismo, segundo as efetivas lições de Ferrajoli, antes de representar
desencarceramento, é a luta por um Direito Criminal efetivo, a partir de
práticas administrativas prévias.
O afã punitivista de uma vertente
ditatorial, que busca movimentos contra o Congresso Nacional e o Supremo
Tribunal Federal, perante um povo que tem preguiça de se informar
adequadamente, não pode nortear o Direito, este enquanto ciência social
aplicada.
O exemplo da injustiça
concretizada, em que uma opinião científica sobre o livro que deu ensejo ao
presente texto resultou em condenação de uma Professora, evidencia o risco de
um punitivismo sem respeito aos princípios da legalidade e da correlação.
Juízes devem respeitar a
Constituição Federal e nela constam direitos fundamentais que eles não podem
violar. Pretender jogar o povo e até mesmo a academia contra a Constituição
Federal será pretender retornar à barbárie, sem que exista uma proteção mínima
aos direitos humanos.
Atribuir a criminalidade ao
sistema jurídico será esquecer que muitos outros aspectos anteriores
incrementam o fenômeno jurídico-criminal. Daí o pleno repúdio à parca tese de
que defender direitos humanos importa em bandidolatria e que o democídio
decorre da impunidade. O democídio decorrerá da ditadura que muitos estão
defendendo, caso ela venha a se concretizar.
Referências
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da dogmática jurídica. São Paulo: Saraiva, 2002.
BARRETO, Tobias. Estudos de direito. Campinas: Bookseller, 2000.
BOBBIO, Norberto. Direito e
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Unesp, 2011.
___. Prefácio
da 1ª Edição Italiana. FERRAJOLI, Luigi. Direito
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CHAUÍ, Marilena de Souza. Vida e obra. HEIDEGGER, Martin. Os pensadores:
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MESQUITA JÚNIOR, Sidio Rosa de. Funcionalismo y garantismo en la defensa
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Processo n. 0188815-26.2017.8.21.0001. Acesso em: 13.3.2020, às 9h30.
SOUZA, Leonardo Giardin; PESSI, Diego.Bandidolatria e democídio:
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STRECK, Lênio Luiz. O que é isto – o assustador manifesto contra a
bandidolatria? Consultor Jurídico, 10.8.2017, às 8h. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2017-ago-10/senso-incomum-isto-assustador-manifesto-bandidolatria>. Acesso em: 13.3.2020, às 14h54.
[1] STRECK, Lenio Luiz. O que é isto – o assustador
manifesto contra a bandidolatria? Conjur, Senso Incomum, 10.8.2017. Disponível
em: <https://www.conjur.com.br/2017-ago-10/senso-incomum-isto-assustador-manifesto-bandidolatria/>.
Acesso em: 15.2.2024, às 20h.
[2] BOBBIO, Noberto. Direito e esquerda: razões e
significados de uma distinção política. 3. ed. São Paulo; Unesp, 2011. p. 139.
[3] PESSI, Diego; SOUZA, Leonardo Giardin de. Bandidolatria e democídio:
Ensaios sobre o garantismo penal e a criminalidade no Brasil. Diego. Porto Alegre: SV, 2017.
[4] Diego Pessi é Membro do MPRS desde o ano 2000. Academicamente,
é tão somente bacharel em Direito e coautor do livro que deu ensejo à discussão
do presente texto.
[5] Leonardo Giardin de Souza é Membro do MPRS desde 2004.
Academicamente, é tão somente bacharel em Direito e coautor do livro citado (nota
de fim n. 3).
[6] MARTINS, Jomar. Princípio da indivisibilidade: autores
de livro sobre “bandidolatria” mantêm queixa-crime contra professora. 5.2.2019.
Consultor Jurídico. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2019-fev-05/promotores-bandidolatria-mantem-queixa-professora>. Acesso em: 13.3.2020, às
9h21.
[7] Rejeitada a queixa, os autores do livro interpuseram apelação,
provida sob o argumento assim ementado:
QUEIXA-CRIME. INJÚRIA. ART. 140 DO CÓDIGO PENAL.
COMENTÁRIO REALIZADO EM REDE SOCIAL. OFENSA AO PRINCÍPIO DA INDIVISIBILIDADE DA
AÇÃO PENAL. RENÚNCIA TÁCITA AO DIREITO DE QUEIXA. INOCORRÊNCIA. 1. Opinião
externada pela recorrida, ao comentar texto publicado em rede social, afirmando
que os recorridos, ao escreverem um livro, sistematizaram sua visão classista,
racista, intolerante e antidemocrática, que revelou a existência de indícios da
prática do crime de injúria. Crime em tese praticado de forma autônoma, sem
caracterizar hipótese de coautoria ou participação, o que inviabiliza o
reconhecimento da ofensa ao princípio da indivisibilidade da ação penal. 2. O
fato de várias pessoas eventualmente denegrirem a imagem de alguém por meio da
internet, cada uma delas se utilizando de um comentário, sem adesão ao
comentário de outrem, não corresponde à existência de coautoria ou
participação, mas sim caracteriza prática de delito autônomo. Precedente do E.
STJ. RECURSO PROVIDO. (RIO GRANDE DO SUL. TJRS. Turma Recursal Criminal da Comarca de Porto
Alegre. Processo n. 71008081101 (0066349-62.2018.8.21.9000). Rel. Luís Gustavo
Zanella Piccinin. Julgamento em: 28.1.2019. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/dl/acordao-turma-recursal-criminal-jecs-rs.pdf>. :Acesso em: 10.3.2020, às 19h42.
[8] STF, RT 626/381 apud DELMANTO, Celso et al.
Código penal
comentado. 6.
ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 302.
[9] Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=EimXJ2avb-w>. Acesso em: 13.3.2019, às
8h.
[10] RIO GRANDE DO SUL. TJRS. 2º Juizado Especial Criminal
de Porto Alegre. Processo n. 0188815-26.2017.8.21.0001. Acesso em: 13.3.2020,
às 9h30.
[11] MARTINS, Jomar. Pena de R$ 3 mil: Professora é
condenada por injúria a Promotores que escreveram “Bandidolatria”. Consultor Jurídico,
7.3.2020. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2020-mar-07/fimde-professora-injuriou-autores-livro-bandidolatria-condenada-rs/>.
Acesso em 24.2.2024, às 18h50.
[12] TJRS. Turma Recursal Criminal. Apelação n. 71009088980 (0078539-23.2019.8.21.9000).
Relator Luís Gustavo Zenella Piccinin. Julgamento em 17.2.2020. Disponível em:
<chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://www.conjur.com.br/wp-content/uploads/2023/09/acordao-turma-recursal-criminal3.pdf>.
Acesso em 15.2.2024, às 19h.
[13] Ibidem. Relatório. p. 3. Acesso em 15.2.2024, às 20h.
[14] Ibidem. Voto. p. 3 a 30 (da página 5 a 26 há a
transcrição da sentença condenatória). Acesso em 16.2.2024,
às 19h50.
[15] TJRS. Turma Recursal Criminal. Apelação n. 71009088980
(0078539-23.2019.8.21.9000). Relator Luís Gustavo Zenella Piccinin. Julgamento
em 17.2.2020. Revisor Edson Jorge Cechet, voto, p. 30. Disponível em: <chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://www.conjur.com.br/wp-content/uploads/2023/09/acordao-turma-recursal-criminal3.pdf>.
Acesso em 15.2.2024, às 20h.
[16] TJRS. Turma Recursal Criminal. Apelação n. 71009088980
(0078539-23.2019.8.21.9000). Relator Luís Gustavo Zenella Piccinin. Julgamento
em 17.2.2020. Disponível em: <chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://www.conjur.com.br/wp-content/uploads/2023/09/acordao-turma-recursal-criminal3.pdf>.
Voto do Juiz de Direito Luiz Antônio Alves Capra. p. 32. Acesso em 16.2.2024,
às 20h.
[17] Ibidem. p. 32-33. Acesso em: 16.2.2024, às 20h15.
[18] Ibidem. p. 34-35. Acesso em: 16.2.2024, às 20h18.
[19] Ibidem. p. 36-43. Acesso em: 16.2.2024, às 20h23.
[20] Ibidem. p. 43-44. Acesso em: 16.2.2024, às 20h38.
[21] Ibidem. p. 45-46. Acesso em: 16.2.2024, às 20h44.
[22] Ibidem. p. 49. Acesso em: 16.2.2024, às 20h53.
[23] Ibidem. p. 52. Acesso em: 16.2.2024, às 20h53.
[24] MESQUITA JÚNIOR, Sidio Rosa de. Funcionalismo y garantismo en la
defensa de los derechos fundamentales en proceso criminal. Lomas de Zamora: UNLZ, defesa
em 28.4.2015. 350 p.
[25] JUSTIFICANDO. Promotores de Justiça lançam manifesto
contra o garantismo e “bandidolatria”. 3.8.2017. Disponível em: <http://www.justificando.com/2017/08/03/promotores-de-justica-lancam-manifesto-contra-garantismo-e-bandidolatria/>. Acesso em: 13.3.2020, às
13h40.
[26] Aqui a palavra é utilizada no sentido de “denunciado”,
“condenado”, “censurado” etc.
[27] BOBBIO,
Norberto. Prefácio da 1ª Edição Italiana. FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo
penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 7.
[28] FERRAJOLI,
Luigi. Diritto e ragione: teoría del garantismo penale. Roma: Laterza, 1989.
[29] STRECK, Lênio Luiz. O que é isto – o assustador
manifesto contra a bandidolatria? Consultor Jurídico, 10.8.2017, às 8h.
Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2017-ago-10/senso-incomum-isto-assustador-manifesto-bandidolatria>. Acesso em: 13.3.2020, às 14h54.
[30] BARRETO, Tobias. Estudos de direito. Campinas:
Bookseller, 2000. p. 163-180.
[31] MARCHI, Carlos. Fera de Macabu: a história e o
romance de um condenado à morte. Rio de Janeiro: Record, 1999.
[32] Conf. CHAUÍ, Marilena de
Souza. Vida e obra.
HEIDEGGER, Martin. Os pensadores: Heidegger. São Paulo: Nova Cultural,
1.995. p. 8.
[33] Tradução livre:
Por favor, diga, meu
irmão,
Por que os ditadores matam
e fazem guerra?
É para a glória; para
coisas,
por crenças, por ódio,
pelo poder?
Sim, mas mais,
porque
eles podem.
[34] FREEDOM. Página do Rummel. Disponível em: <http://www.hawaii.edu/powerkills/>. Acesso em: 13.3.2020, às
18h.
[35] ADEODATO,
João Maurício: Ética e retórica: para uma teoria da dogmática jurídica.
São Paulo: Saraiva, 2002. p. 306.
[36] HABERMAS,
Jürgen. Teoria de la acción comunicativa. Madrid: Trotta,
2010. t. I e II.
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