Por: Renato da Fonseca
Janon[1]
O principal
argumento a favor do juiz das garantias, instituído pela Lei 13.964/2019, no
chamado pacote "anticrime”, é assegurar a imparcialidade e a isenção do
juiz que irá instruir e julgar a ação penal, sem que esteja influenciado pelas
medidas adotadas na fase do inquérito.
Assim,
teremos um magistrado responsável por fazer o controle da legalidade na fase da
investigação até o recebimento da denúncia, incluindo as providências
cautelares (por exemplo, custódia, prisões preventivas e temporárias, busca e
apreensão, quebra de sigilos), e outro para a instrução e julgamento do
processo criminal.
Institutos
semelhantes já existem em outros países, tais como Portugal, Espanha, Itália,
França, Chile, sendo que, em alguns deles, a garantia da imparcialidade do juiz
vai além, a ponto de um magistrado instruir a ação penal e outro julgá-la, de
modo a evitar a contaminação do julgador por convicções prévias estranhas ao
conjunto probatório.
Porém,
não precisamos ir tão longe para entendermos a importância do juiz de
garantias. Basta lembrarmos do romance Dom Casmurro,
uma das obras mais importantes da literatura brasileira, no qual Machado de
Assis narra a trajetória de Bentinho, bacharel em Direito que, sem evidências,
mas com convicção, passa a desconfiar que foi traído por sua mulher, Capitu, a
morena de “olhos claros, nariz reto, boca fina e queixo largo, cujas mãos, a
despeito do ofício rude, eram curadas com amor”.
No
enterro do amigo Escobar, ao ver Capitu contemplar o corpo do falecido,
Bentinho passa a ser atormentado por ciúmes e começa a acreditar, mesmo sem
provas, que seu filho, Ezequiel, seria fruto de um adultério. A crença
paranoica vai crescendo na medida em que, na mente ensandecida de Bentinho,
Ezequiel vai se tornando cada vez mais parecido com o finado Escobar. Ele chega
a pensar em matar a mulher e o filho, mas não tem coragem. Resta-lhe o
sofrimento da dúvida eterna. Para Bentinho não importa se houve traição ou não.
Na sua convicção sem provas, Capitu será sempre a mulher adúltera com “olhos de
cigana oblíqua e dissimulada”.
No
processo penal, verificamos a “síndrome de Dom Casmurro” quando um juiz, sob o
pretexto de alcançar a “verdade real” ou de fazer “justiça a qualquer custo”,
passa a conduzir a instrução criminal de modo a confirmar suas convicções
anteriores ou seus “pré-conceitos”, sem se ater às evidências concretas sobre a
materialidade ou a autoria de determinado crime.
No
seu íntimo, a decisão já foi tomada antes mesmo do processo começar. Ela busca
apenas confirmar essas suposições que já foram formadas em seu prejulgamento,
seja por inclinação pessoal, influência das redes sociais ou mesmo ambição
política. É o chamado viés de confirmação, “a tendência de se lembrar,
interpretar ou pesquisar por informações de maneira a confirmar crenças ou
hipóteses iniciais .”
Como
diria Bentinho, "os meus ciúmes eram intensos, mas curtos; com pouco
derrubaria tudo, mas com o mesmo pouco ou menos reconstruiria o céu, a terra e
as estrelas. “
Bentinho
não tinha provas. Mas tinha um convicção inabalável. Ninguém o convenceria do
contrário. Se os fatos não justificavam sua teoria, o problema era dos fatos.
Tal como um Procusto redivivo, as evidências é que deveriam se adaptar às suas
presunções.
Na
verdade, para além de Procusto, o esticador, que torturava a todos até que se
adequassem às suas medidas, o juiz midiático moderno mais se assemelha a
Hércules, o semideus que se julgava acima dos pobres mortais, como bem assevera
Luis Gustavo Grandinetti:
Aquelas boas
características do juiz Hércules, de ativismo, de concretização dos direitos,
de efetividade, se voltam todas contra o acusado. Não compreende que entre a
jurisdição cível e a penal existe uma enorme distância, ocupada pela ideologia
que preside este último e que conforma a estrutura e o funcionamento do Direito
Penal e processual penal. O heroísmo do juiz tenderá a ocupar esse espaço com
autoritarismo porque já formou previamente o seu convencimento e já escolheu o
vilão do drama que encenará.
O juiz herói
acredita piamente que sua função é proteger a sociedade, esquecendo-se que essa
função não é sua. (...) o juiz herói superintende as investigações policiais e
assessora o Ministério Público na sua atuação processual, seja antecipando sua
convicção, seja orientando os requerimentos que serão deferidos, bem como
suprindo-lhe eventuais omissões. Como o juiz onipotente, o herói também
antecipa-se ao poder dispositivo das partes no campo probatório e produz provas
de ofício. Decreta medidas restritivas não previstas em lei, tudo para
salvaguardar a sociedade. No afã de proteger a sociedade, dá-se conta que todo
herói precisa de um vilão e o elege na figura do réu, já acusado de um pecado e
candidato natural a tornar-se o vilão da drama.[2]
Daí
por que se faz premente a efetivação do juiz de garantias, de modo a reforçar a
imparcialidade na instrução e julgamento da ação penal, um dos pilares do
devido processo legal e do próprio Estado de Direito. Na sábia ponderação de
Luigi Ferrajoli, não basta uma imparcialidade formal. É preciso substantivá-la:
Para
garantizar la imparcialidad del juez es preciso que este no tenga en la causa
ni siquiera un interés público o institucional. En particular, es necesario que
no tenga un interés acusatorio, y que por esto ejercite simultáneamente las
funciones de acusación, como, por el contrario, ocurre en el proceso inquisitivo
y aunque sea de manera ambigua, también en el mixto. Sólo así puede el proceso
conservar un carácter cognoscitivo o, como dice Beccaria, “informativo” y no
degenerar en “proceso ofensivo”, donde “el juez se hace enemigo del reo”. No
basta, sin embargo, para asegurar la separación del juez de la acusación, que
las funciones acusatorias sean ejercidas en el proceso por un sujeto distinto
del juez, esta separación se producía formalmente incluso en nuestro vejo
proceso mixto. Se necesitan, además, otras específicas garantías procesales
como son las relativas a la conducción de la instrucción, a la publicidad del
juicio, a formación y refutación de las pruebas (...)[3]
Que
o benfazejo juiz de garantias possa nos livrar da síndrome de Dom Casmurro.
Porque, como advertiu o padre Antônio Vieira no Sermão da Segunda Dominga do Advento, “antes de se ver
o fim não se pode fazer juízo”.
[1] Juiz Titular da 1ª Vara de Lençóis Paulista-SP. Texto
extraído de: JANON, Renato da Fonseca. O Juiz das garantis e a síndrome de Dom
Casmurro. Consultor Jurídico, Opinião, 13.1.2020. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2020-jan-13/renato-janon-juiz-garantias-sindrome-dom-casmurro>.
Acesso em: 18.2.2019, à 1h.
[2] CARVALHO,
Luis Gustavo Grandinetti Castanho de. Quem é o juiz que aplica a
pena?, p. 17-18 – por Antonio Pedro Melchior, em Gestão da prova e o lugar do discurso do
julgador - O sintoma político do Processo Penal democrático.
[3] FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón: Teoría
del garantismo penal, Ed. Trotta, p. 582.
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