Nos crimes
contra a dignidade sexual, especialmente nos crimes contra pessoas vulneráveis,
a palavra da vítima ganha destaque. Ocorre que é impossível extrair a verdade
real valendo-se exclusivamente de provas pessoais, visto que as pessoas não
relatam os fatos, mas o que puderem apreender deles, inserindo uma carga
valorativa pessoal.
O Superior
Tribunal de Justiça tem jurisprudência remansosa no sentido de que a palavra da
vítima ganha especial relevo para o esclarecimento dos fatos em crimes de
violência doméstica contra mulher e crimes contra a liberdade sexual, mormente
porque quase sempre ocorrem na clandestinidade.[1] É necessário cuidado para
que não se condenem pessoas inocentes sem o devido lastro probatório, visto que
a vítima pode errar.
Vítima não é
testemunha, o que fica bem destacado no Código Processo Penal, sendo que
crianças e adolescentes podem ser acometidas por um transtorno psicológico
denominado Síndrome de Münchhausen. Tal síndrome me foi apresentada pelo Prof. Dr. Fábio Libório e, em face da repercussão dela nos meus estudos e casos práticos, resolvi pesquisar.
O transtorno pode se iniciar aos 5 anos de idade e perdura, mais frequentemente, até os 21 anos de idade. No entanto, há quem diga que a síndrome é mais frequente entre adultos. Não podemos nos esquecer, no entanto, que muitas vezes, a síndrome do adulto é transferida às crianças.
O transtorno pode se iniciar aos 5 anos de idade e perdura, mais frequentemente, até os 21 anos de idade. No entanto, há quem diga que a síndrome é mais frequente entre adultos. Não podemos nos esquecer, no entanto, que muitas vezes, a síndrome do adulto é transferida às crianças.
Em apertada
síntese, o nome da síndrome decorre de Karl Friedrich Hieronymus von Münchhausen (1720-1979), um
barão conhecido pelas mentiras que contava. É daí decorre o reconhecimento do
“transtorno da mentira”, in verbis:
A síndrome de
Munchausen é, portanto, uma doença psiquiátrica em que o paciente, de forma
compulsiva e deliberada, inventa, simula ou causa sintomas de doenças sem que
haja uma vantagem óbvia para tal atitude que não a de obter cuidados médicos e
de enfermagem. Meadow, em 1977, observou que alguns pais adotavam a mesma
postura, porém utilizavam crianças para atingir aquele objetivo. Foi, então,
acrescentado o termo “por transferência” (ou “por procuração” ou “by proxy”) ao
nome da síndrome, quando o mentiroso não é o próprio paciente, mas um parente,
quase sempre a mãe (85% a 95%), que persistente ou intermitentemente produz
(inventa, simula ou provoca), de forma intencional, sintomas em seu filho,
fazendo com que seja considerado doente, podendo eventualmente causar-lhe uma
doença, colocando-o em risco e em situação que requeira investigação e
tratamento.[2]
Como podemos acreditar em
vítimas que poderão estar fantasiando, acometidas por um transtorno psicológico
e, às vezes, especialmente nos supostos crimes em que há separação dos pais, o
transtorno pode se dar por transferência.
O Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT),
sob o título “Conhecendo as faces da violência”, publicou:
2.4 Síndrome de Munchausen por procuração: é
definida como a situação na qual a criança é levada para cuidados médicos
devido a sintomas e/ou sinais inventados ou provocados pelos responsáveis, que
podem ser caracterizados como violências físicas (exames complementares
desnecessários, uso de medicamentos, ingestão forçada de líquidos etc.) e
psicológicas (inúmeras consultas e internações, por exemplo).[3]
O TJDFT reconhece que a
Síndrome de Münchhausen não se restringe a isso que expôs, tanto é que retorna à referência à Síndrome de Münchhausen por procuração, evidenciando existir uma que não depende da transferência de outrem.[4]
Ademais, síndrome poderá se iniciar quando a pessoa ainda for criança e ela poderá
fantasiar, especialmente se for mulher. Mas, essa síndrome, descoberta por
Richard Aln John Asher (1912-1969), transcende aos pequenos apontamentos feitos,
sendo importantes os sintomas, a saber:
A
Síndrome de Müchhausen é mais comum em mulheres, pode começar em qualquer
idade, geralmente ocorre na vida adulta, esses em seu histórico também relatam
terem sofrido abusos na infância, ou terem sofrido uma doença grave ou mesmo
ter uma dinâmica familiar seriamente disfuncional, terem sido testemunha de
violência doméstica praticada contra a mãe, terem sofrido rejeição dos pais ou
familiares, terem sido abandonadas em instituições ou abrigos. Apresentam
problemas com sua identidade, em manter relacionamentos estáveis, podem ter
transtorno de personalidade associada à síndrome. Na Classificação de
Transtornos Mentais e de Comportamento da CID-10, a Síndrome de Münchhausen
está classificada dentro dos transtornos factícios (F68.1). Simulação de estado
doentio deliberado para obtenção de cuidados, exames, procedimentos,
internações e cirurgias desnecessárias infligir a si ou a outrem sofrimento e
até mesmo exposição à perda da vida.[5]
Veja-se que há
insuficiência de estudos no Brasil acerca da Síndrome de Münchhausen, mas “há
pesquisa e divulgação significativa de relato de caso e aprofundamento de
estudos sobre o tema”.[6]
O fato é que uma pessoa desequilibrada pode prejudicar significativamente a
vida de alguém, ao marcá-lo como estuprador, tudo fruto do “transtorno da
mentira”. Por isso, nenhuma condenação poderá pautar-se exclusivamente na
palavra da vítima.
Podemos afirmar com José
Osterno que, no “processo penal, a verdade real ou material, antes de ser um
dogma, é um mito”.[7] Ou, ainda, com Pacelli, no
sentido de que a verdade judicial é sempre uma verdade processual, eis que é
uma certeza de natureza exclusivamente jurídica.[8] De
qualquer modo, a prova consistente na palavra da vítima não poderá ser isolada,
senão a certeza jurídica estará mitigada, autorizando aplicar o princípio favor rei para absolver o réu,
especialmente em caso de negativa veemente dele.
[1]
BRASIL. STJ. 5ª Turma. Agravo Regimental no Recurso Especial n. 578515-PR. Rel.
Jorge Mussi. 18.11.2014. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/doc.jsp?livre=578515&b=ACOR&p=true&l=10&i=8>.
Acesso em: 25.3.2018, às 15h55. Veja-se a ementa:
REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. ESTUPRO DE VULNERÁVEL. PALAVRA
DA VÍTIMA. RELEVANTE IMPORTÂNCIA. ABSOLVIÇÃO OU DECOTE DO RECONHECIMENTO DA
CONTINUIDADE DELITIVA. IMPOSSIBILIDADE. SÚMULA N. 7/STJ. INCIDÊNCIA.
1. O Tribunal local, ao analisar os elementos constantes nos autos, entendeu
pela ratificação da decisão de primeira instância que condenou o ora agravante
pelo crime de estupro de vulnerável em continuidade delitiva.
2. A pretensão de desconstituir o julgado por suposta contrariedade à
lei federal, pugnando pela absolvição ou o mero redimensionamento da pena
referente à continuidade delitiva não encontra campo na via eleita, dada a
necessidade de revolvimento do material probante, procedimento de análise
vedado a esta Corte Superior de Justiça, a teor da Súmula 7/STJ.
3. Este Sodalício há muito firmou jurisprudência no sentido de que, nos
crimes contra a dignidade sexual, a palavra da vítima adquire especial
importância, mormente porque quase sempre ocorrem na clandestinidade.
4. Agravo regimental improvido. (Grifei)
[2]
CARDOSO, Antônio Carlos Alves; HIRSCHHEIMER, Mário Roberto. Síndrome de
Munchausen por transferência. In WAKSMAN, Renata Dejtiar; HIRSCHHEIMER, Mário
Roberto (Coord.). Manual de atendimento às crianças e adolescentes. Brasília:
Ideal, 2011. p. 63. Disponível em: <https://portal.cfm.org.br/images/stories/biblioteca/manual%20atendimento%20crianca%20adolescente.pdf>.
Acesso em: 25.3.2018, às 16h22.
[3]
BRASIL. Protocolo de atenção integral a crianças e adolescentes vítimas de
violência: uma abordagem interdisciplinar na saúde. Brasília: TJDFT, [2010?].
p. 23. Disponível em: <http://www.tjdft.jus.br/cidadaos/infancia-e-juventude/publicacoes/publicacoes-1/ProtocoloAtenIntegralCriancasAdolecentesVitimasViol.pdf>.
Acesso em: 25.3.2018, às 17h03.
[4]
Ibidem. p. 29.
[5]
BARRETO, Alexandra Gomes. Síndrome de Müchhausen e a a sua variação. Campinas:
RHS, 25.9.2017. Disponível em: <http://redehumanizasus.net/sindrome-de-muchhausen-e-sua-variacao/>.
Acesso em: 25.3.2018, às 17h18.
[6]
Ibidem.
[7] ARAÚJO, José Osterno Campos de. Verdade
processual penal: limitações à prova. Curitiba: Juruá, 2.005. p. 155.
[8]
OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de
processo penal. 11. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 294.
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