O
artigo que se segue não é uma apologia à homoafetividade, nem uma crítica
negativa a ela, mas a expressão teórica anterior à de Freud, no sentido de que a
bissexualidade é natural no homem. Ela consta do discurso platônico.
Com Bruno Bettelheim, afirmo que Amor (Eros) e Alma (Psique) souberam nutrir o bom amor e controlar os seus impulsos e, por isso, embora possamos ver semelhança entre a história destes e a do Édipo Rei, não resultaram em desgraça. E, devemos sempre buscar desenvolver o bom amor, não a paixão doentia e incontrolada de Édipo.
É um artigo que gostei porque trata muito
bem das diferentes formas de amor, concebidas por Platão e muito bem escrito
por Gabriela Rocha Rodrigues.[1] Pode
enriquecer o conhecimento daquele que o ler esse provocante artigo intitulado “É
o amor dos homens pelos mancebos, pois preferem o sexo que é mais forte e mais
inteligente”.[2]
RESUMO:
Entre os filósofos gregos, Platão dedicou
parte de sua obra ao Eros, examinando a fundo sua essência, sua origem, as
diversas formas de amar, suas vicissitudes e recompensas, além de apresentar o
melhor tipo de amor e o modo de alcançá-lo. O presente estudo tem a finalidade
de expor os diálogos constantes nas obras Fedro e O Banquete, de Platão, bem
como apresentar algumas considerações de estudiosos acerca de tais textos. No
Banquete, Platão apresenta o tema do amor a partir de peças oratórias que
atribui a vários homens ilustres da sociedade ateniense. Dessa forma, os
diversos vieses do sentimento amoroso, bem como suas exigências e demais
peculiaridades, se perfilam em uma obra dinâmica, na qual a reflexão filosófica
aparece aliada a cuidados de natureza literária incontestável. No Fedro o amor
é explorado através dos discursos de Lísias e Sócrates, sendo discutido o
aspecto paradoxal do Eros, que tanto pode oferecer bem aventuranças aos
amantes, quanto desgraçá-los. O diálogo também expõe o uso da linguagem aliada
à verdade e a sabedoria como uma das formas de amor. O trabalho identifica os
principais pontos da teoria platônica e constata que o amor é intrinsecamente o
desejo do Bem, a possibilidade de voltar ao Mundo das Ideias Puras, cabendo ao
homem exercitar-se no seu processo de ascendência espiritual.
Palavras-chave: Amor. Bem.
Desejo. Imortalidade. Linguagem.
ABSTRACT:
Among
the greek philosophers , Plato devoted part of his work Eros, looking deeply
essence, their origin, the different forms of love, its difficulties and
rewards, in addition to presenting the best kind of love and how to achieve it.
The present study aims to expose the dialogues contained in the works Phaedrus
and the Symposium, Plato, and present some considerations scholars about such
texts. In the Symposium, Plato presents the theme of love from oratorical piece
that attaches to several distinguished men of Athenian society. Thus, the
various biases of the loving sentiment, as well as your requirements and other
peculiarities, is profiled in a dynamic work in which philosophical reflection
appears allied to care undisputed literary nature. In the Phaedrus love is
explored through the speeches of Lysias and Socrates, and discussed the
paradoxical aspect of Eros, which can offer both the both the beatitudes to the
lovers, the disgrace them. The dialogue also exposes the use of language allied
to truth and wisdom as a form of love. The paper identifies the main points of
the Platonic theory and finds that love is intrinsically desire the Good, the
possibility of returning to the World of Ideas Pure, leaving the man workout in
the process of their spiritual ancestry.
Keywords: Love. Well. Desire.
Immortal. Language.
INTRODUÇÃO
“Wilhelm,
que seria, para o nosso coração, o mundo inteiro sem amor? O mesmo que uma
lanterna mágica apagada! Assim que a gente coloca aí, uma lâmpada, imagens de
todas as cores se projetam na tela branca...” Desse modo, o jovem Werther
escreve a um amigo versando sobre a importância do amor. A definição, constante
do livro Os Sofrimentos do Jovem Werther, de Goethe, embora belíssima, é apenas
uma das inúmeras tentativas de explicar a essência do amor.
Para
Camões, o amor “é um fogo que arde sem se ver”. Carlos Drummond de Andrade o
define como “o ganho não previsto”, Nietzsche explica que ele é “o estado em
que melhor o homem vê as coisas como elas são", e Balzac pergunta: “Se a
luz é o primeiro amor da vida, não é o amor a luz do coração?”
A
temática do amor, desde os tempos mais longínquos, ocupa lugar único na
história da humanidade. Entre os filósofos gregos, Platão dedicou parte de sua
obra ao Eros, examinou a essência, a origem, as diversas formas de amar, além
de apresentar o melhor tipo de amor e o modo de alcançá-lo. Este trabalho
examina os dois principais diálogos que versam sobre a manifestação erótica, O
Banquete e Fedro.
N’O Banquete,
Platão apresenta o tema do amor a partir de peças oratórias que atribui a
vários homens ilustres da sociedade ateniense. Os diversos vieses do sentimento
amoroso, bem como suas exigências e demais peculiaridades, se perfilam em uma
narrativa dinâmica, na qual a reflexão filosófica alia-se a cuidados de
natureza literária incontestável.
No Fedro, o amor é explorado através dos discursos
de Lísias e Sócrates, sendo discutido o aspecto paradoxal do Eros, que tanto
pode oferecer bem aventuranças aos amantes, quanto pode desgraçá-los. O diálogo
também expõe o uso da linguagem aliada à verdade e a sabedoria como uma das
formas de amor.
1. O BANQUETE
A obra
O Banquete, de Platão (427-347 a.C.),
à parte ser considerada uma das mais belas reflexões sobre o amor, quer do
ponto de vista literário, quer do ponto de vista filosófico, é, inquestionavelmente,
um dos textos da antiguidade clássica cuja contemporaneidade decorre dos elementos
universais intrínsecos ao próprio tema.
Dada a
pluralidade de reflexões colocadas em confronto no decorrer da obra e a profundidade
com que estas diferentes manifestações do amor são examinadas, a contribuição
de Platão à cultura ocidental tem sido um referencial inesgotável de pesquisa,
fundamentando até mesmo às ciências ditas do inconsciente, tais como a
psicologia e a psicanálise, cujas origens remontam a tempos bem atuais.
No
Banquete, Platão organiza um confronto de diversos elogios atribuídos a Fedro,
Pausânias, Erixímaco, Aristófanes, Agáton e Sócrates, proferidos com o fito de
enaltecer e definir a verdadeira essência de Eros. Tais discursos são
contextualizados em um cenário próprio da vida grega: o symposion –hábito praticado pela alta sociedade ateniense, no qual,
após a comida em comum (syndeipnon), e mais propriamente em ocasião da bebida
em comum (sympotos), os convidados
entretinham-se com os divertimentos oferecidos pelo anfitrião (dança, música,
cantos) e conversavam acerca de vários assuntos com a finalidade de depuração
estética e espiritual.
Porém,
o diálogo inicia em outra roda de amigos, nesta, Apolodoro é inquirido por um
companheiro acerca dos discursos a respeito do amor pronunciados na casa de
Agáton, quando este obteve o prêmio com sua primeira tragédia. Antes de
resgatar o acontecido, Apolodoro esclarece que tais discursos lhe foram
contados por Aristodemo, e que este sim, de fato os presenciara. Segundo Mota
Pessanha:
[...] a doutrina socrático-platônica sobre o
amor emerge do texto do Banquete como aquilo que pôde ser resgatado de uma
longa cadeia de memórias e esquecimentos, no meio de uma série de discursos
heterogêneos, provenientes de várias épocas e entremeado de lacunas (PESSANHA,
1994, p. 189).
Assim,
a narrativa retorna ao momento em que Aristodemo encontra Sócrates e ambos
dirigem-se à casa de Agáton para comemorar a premiação literária alcançada por
este. No caminho, Sócrates mostra-se absorvido em suas reflexões, e ao ser
apressado por seu companheiro de jornada, aconselha-o a ir em frente. Chegando
a casa, Aristodemo é indagado sobre o paradeiro de Sócrates e explica que este
ficara para trás, pois era seu costume apartar-se de tudo e ficar meditando.
Agáton manda um servo ir buscá-lo, façanha que se revela impossível, vindo
Sócrates a aparecer nomeio do jantar.
Ironizando
a meditação de Sócrates, o anfitrião convida-o a deitar-se ao seu lado a fim de
que possa absorver a sabedoria que aquele havia adquirido com o atraso. Ao que
Sócrates responde, também de maneira irônica: “...caro Agatón, se a sabedoria
fosse uma coisa que pudesse passar, por simples contato, de quem a tem a quem
não tem, assim como a água que, por um fio de lã corre de um cálice cheio para
um cálice vazio” (PLATÃO, 1996, p. 175e).
Após o
jantar, os convivas efetuam libações e prepararam-se para começar a beber e
desfrutar da boa música, mas Pausânias sugere que naquela ocasião fosse
quebrado o protocolo dos banquetes que constrangia os convivas a beberem até a
embriaguez total, visto que muitos ainda não se haviam recuperado do banquete
da noite anterior.
Todos concordaram com Pausânias e Erixímaco sugeriu
que dispensassem a flautista e se divertissem atendendo a uma antiga indignação
de Fedro, quanto ao fato inexistirem elogios poéticos em honra de Eros, fosse então esse deus o objeto dos
encômios. Iniciam assim os discursos de Fedro, Pausânias, Erixímaco,
Aristófanes, Agáton e Sócrates, culminando com o elogio de Alcebíades.
1.1 Discurso de Fedro
Fedro
busca legitimar a precedência de Eros em relação aos demais deuses
fundamentando seu discurso na obra de Hesíodo, autor da célebre Teogonia, e
apresenta Eros como o mais antigo dos deuses, nascido logo após o Caos e
juntamente com a Terra. Além de estabelecer a importância da linhagem de Eros,
Fedro salienta que este Deus é a causa dos maiores bens que recebemos,
atribuindo a ele todas as boas ações que possibilitam ao indivíduo e ao Estado
a realização do bem e do belo.
Dentre
todas as virtudes que Eros insuflaria nos homens, Fedro afirma que a bravura e
a coragem estão entre as mais louváveis, pois através delas seria possível:
[...] formar por algum modo, um estado ou
exército exclusivamente composto de amantes e amados, assim se obteria uma
constituição política insuperável, pois ninguém faria o que fosse desonesto, e
todos, naturalmente, se estimulariam para a prática de belas coisas (PLATÃO,
1996, p. 179 a).
Fedro
exemplifica, através dos mitos de Alceste e de Aquiles (a primeira
sacrificando-se pelo marido, este vingando seu amigo Pátroclo) que a bravura e
a coragem oriundos do amor se refletem no ato extremo de morrer pelo ser amado;
assim, morrer um pelo outro, representa o amar verdadeiro e aquele que se
sacrifica é admirado e recompensado pelos deuses após a morte, pois, sendo
capaz de tal sacrifício, possui em si algo de belo e precioso, a própria
divindade.
Percebe-se
no discurso inaugural que Platão critica aqueles que, fazendo mau uso da arte
retórica, tomam por base o estudo de autoridades em determinado assunto, no
caso, os mitólogos, e manipulam esses conhecimentos para angariar a confiança
dos ouvintes e através de uma estrutura de discurso formalmente perfeita induzem
o interlocutor a acreditar que são sabedores do tema a respeito do qual versam
quando, na verdade, escondem o pedantismo e a falta de reflexão com vistas a
defender um objeto escuso, aqui a pederastia; aqui merece destaque a posição de
António Gomes Robledo:
El discurso de Fedro, en conclusión, es la
apología del homosexualismo, considerado como el más fuerte vínculo de la solidaridad
social, una solidaridad, por lo demás, que no reconoce otros valores fuera del
honor cívico y la gloria militar (ROBLEDO, 1983, p. 338).
1.2 Discurso de
Pausânias
Pausânias
fundamenta seu discurso na duplicidade de Eros. Assim, se há duas Afrodites, a
Urânia ou Celestial (nascida de Uranos) e a Paudemiana ou Popular (nascida de
Zeus e Dione), consequentemente há dois tipos de amor, um celestial, outro
popular, uma vez que Afrodite e Eros são inseparáveis.
Com o
intuito de valorar as diferentes naturezas do amor, Pausânias faz uma analogia
entre a interpretação da ação humana, que é considerada segundo o seu resultado
–um mal ou um bem, e o amor, de forma que este “em si mesmo não é belo e
louvável, mas se torna belo e louvável, quando nos encaminha para um amor que é
belo e louvável” (PLATÃO, 1996, p. 181a).
Desse
modo, o Amor Popular, voltado mais para o corpo do que para o espírito, tem por
objeto tanto as mulheres quanto os mancebos e é o amor com que os homens
inferiores amam. Já o Amor Celestial, regido pela razão e moderado quanto à
concupiscência, é o mor dos homens pelos mancebos, pois preferem o sexo que é
mais forte e mais inteligente.
Para
Pausânias, este segundo Eros atua entre homens e mancebos, que possuem, além da
identificação sexual, uma identificação superior, baseada na premissa de que
caberia ao homem sábio educar o mancebo no caminho da virtude, e, àquele,
deixar-se conduzir, partilhando ambos do único caminho para o amor virtuoso: o
da servidão voluntária, onde amante e amado se auxiliam constantemente ao longo
da vida.
Após
explanar sobre as diferentes naturezas do amor, Pausânias volta-se para uma
análise política e sociológica do Amor em relação ao Estado, estudando o tema
do amor em relação a diferentes cidades com o intuito de justificar ainda mais
sua teoria; assim, aponta que na Élida e na Beócia todos procuram eliminar as
dificuldades na conquista dos mancebos, favorecendo amplamente a Eros; na
Jônia, porém, governada por bárbaros, o amor é duramente castigado, pois lá a soberania
se assenta na desconfiança, impossibilitando que o amor e a filosofia floresçam
no espírito dos súditos. Com relação à Atenas e Esparta, consideradas em
conjunto, Pausânias as coloca numa posição intermediária quanto às outras.
Em
seguida, Pausânias afirma que o Amor Celestial é incentivado e favorecido pela
opinião pública. Esta distingue o amor nobre do amor vil com a finalidade de
proporcionar todas as facilidades àquele que elege como superior. Na visão de
Robledo: “Apelando hipócritamente para la moralidad, Pausânias viene a
sancionar de hecho lo mismo que Fedro, sólo que enmascarándolo en una mitología
filosófica tan cruda en los hechos como sutil en la intención” (ROBLEDO, 1983,
p. 389).
Com Pausânias, Platão prossegue no intento de
denunciar a falsa sabedoria dos sofistas, pois, no caso presente, trata-se de
uma peça mais insidiosa que a anterior, que se vale de recursos mais
abrangentes, tais como as relações sociais e políticas, e enfoca o que era mais
caro ao mundo ateniense – a eficiência do Estado.
1.3 Discurso de
Erixímaco
Erixímaco,
o terceiro orador, é médico e representa a concepção naturalista; como tal
amplia o poder de Eros atribuindo-lhe a geração de todo o mundo físico e de
todo o cosmos. Associando Eros à Medicina, salienta que através desta pode
observar que o amor, sendo um deus poderoso e admirável, está presente não
somente nas almas dos homens, como até então afirmaram os oradores que o
precederam, mas também na dos animais e plantas, sendo o motor primevo que
propulsiona todas as atividades dos seres e da natureza.
Quanto
aos corpos, Erixímaco corrobora a divisão efetuada por Pausânias e afirma que
um Eros reina sobre o que é sadio e outro sobre o que é doente, cabendo ao
médico utilizar sua sabedoria para harmonizar o que de bom e ruim se encontra
no corpo do homem:
A Medicina (...) é a ciência do amor nos
corpos relativamente à sua repleção e evacuação, e aquele que nesses movimentos
consegue extremar o bom do mau amor, esse é um bom médico. Aquele que suscita o
aparecimento de amor onde não havia amor, e onde não obstante era necessário e
elimina um amor existente, quando pernicioso, esse inegavelmente, merece o
título de excelente médico (PLATÃO, 1996, p. 186c).
Tal
como Heráclito, para o qual ‘a unidade, que se opõe a si mesma, consigo
concorda, como sucede à harmonia que do arco e da lira se evola (PLATÃO, 1996,
p. 187 a), Erixímaco sustenta que a harmonia resulta de elementos contrários
que celebram entre si um acordo, como as notas longas e breves que ditam o
ritmo de uma música, tornando-a melodiosa e agradável.
Neste discurso Platão anuncia uma regra que,
conforme Jaeger: “conduz à submissão do Eros a um critério valorativo” (JAEGER,
1995, p. 730), visto que caberia aos sábios incentivar o Amor Celeste e
instruir os demais homens quando da convivência com o Amor Vulgar, que ao
contrário de ser erradicado, deve ser utilizado como um meio de prazer, sem, no
entanto, tornar-se destrutivo.
1.4 Discurso de
Aristófanes
O
comediógrafo Aristófanes, após recuperar-se de uma crise de soluços, inicia seu
discurso enaltecendo as qualidades benfazejas de Eros. Partindo de uma linha
antropológica, a personagem diz ser imprescindível remontar à origem da
natureza humana para elucidar o poder de Eros. Para tanto, relata um dos mais
belos mitos da obra platônica: em sua origem a humanidade era constituída por
três sexos, o masculino, o feminino e o andrógino, formado pelo conjunto
daqueles dois. Esses seres eram robustos e possuíam quatro mãos, quatro pés,
dois órgãos de geração e uma cabeça, que comportava duas faces opostas; o sexo
masculino descendia do Sol (Hélio), o feminino, da Terra (Géia) e o andrógino,
da Lua (Sibele). Tomados pela audácia, os homens tentaram escalar o céu para
atacar os deuses, mas fracassaram em seu intento e foram castigados por Zeus:
Creio que encontrei um modo de permitir que
os homens existam, mas domesticados, tornando-os mais fracos: cortarei cada um
deles em duas partes, e assim obteremos essa dupla vantagem: ficarão mais
fracos e mais úteis, por que serão mais numerosos para nos servir (PLATÃO,
1996, p. 190d).
A
partir desse momento cada metade pôs-se a procurar a outra, numa ânsia feroz de
unirem-se novamente: “É daí que se origina o amor que as criaturas sentem umas
pelas outras; e esse amor tende a recompor a antiga natureza, procurando de
dois fazer um só, e assim restaurar a antiga
perfeição”
(PLATÃO, 1996, p. 191d).
Segundo
esta perspectiva o amor fundamenta-se na falta, no anseio de retorno àquela
situação original em que homens e mulheres buscam reencontrar em outro ser a
metade que lhe foi tirada e ao mesmo tempo devolver ao outro o que em si se
encontra dele. Embora caricatural, este discurso traz em si o germe da
perspectiva platônica a respeito da reminiscência, ou seja, de uma situação
ideal a que constantemente a realidade está referenciada – o Mundo das Ideias:
E são essas as pessoas que vivem juntas toda
a vida, sem conseguirem, aliás, explicar o que mutuamente esperam uma da outra;
pois não parece ser o prazer dos sentidos a causa de tanto encanto em viver
juntas. É evidente que a alma de cada uma deseja outra coisa que não conseguem
dizer o que seja, que pressentem e às vezes exprimem de maneira misteriosa (PLATÃO,
1996, p.192e).
Diferentemente
do personagem Pausânias, o de Aristófanes justifica o homossexualismo masculino
e feminino, e também o heterossexualismo, através da origem do amor, mas não
deixa de favorecer o homossexualismo entre os homens salientando que o
pederasta só casa e tem filhos quando cede à opinião pública, contrariando,
assim, sua natureza original.
Ao
concluir seu discurso, Aristófanes, alerta que a humanidade nunca deve ir
contra Eros, mas,
o
contrário, deve obter sua amizade e louvá-lo, pois somente este deus é capaz de
assegurar a verdadeira felicidade.
Como
bem registra Robledo, à primeira vista é de causar estranheza a presença do
comediógrafo no Banquete, uma vez que este, por meio da comédia As Nuvens,
desencadeou uma reação em cadeia que culminou com a sentença sacrificial de
Sócrates. Para Robledo, o intuito de Platão atendeu à finalidade de declarar a
antipatia que nutria por Aristófanes desde a injusta condenação imposta a
Sócrates, pois o Aristófanes do discurso é um glutão e bêbado, e a forma do
elogio por ele proferido é inferior aos demais e, sobremaneira, cômico.
Pero la simpatía personal no es la única
razón, ni mucho menos, pola que Platón introduce en sus diálogos a ciertos
personagens: la antipatia, por el contrario, puede ser la razón apropriada,
sobre todo cuando se trata de ponerlos en solfa (ROBLEDO, 1983, p. 393).
1.5 Discurso de Agáton
O
próximo orador do banquete é Agáton, anfitrião e vencedor do prêmio que era
então comemorado. Após uma breve discussão com Sócrates, Agáton censura os
demais oradores por apenas chamarem felizes os homens agraciados por esse deus,
sem, no entanto, elogiar a verdadeira essência do amor. Assim, sua pretensão é
explicar quem é Eros e explicitar seus efeitos.
No
discurso de Agáton todos os deuses são felizes, mas Eros, por ser o mais jovem
e belo dentre eles, é o mais feliz; por ser jovem, esse deus foge à velhice e
por ser belo busca viver em ambientes suaves, perfumados e harmônicos. É possuidor
de todas as virtudes e “constrói sua morada nos corações e nas almas dos deuses
e dos homens. Não em todas as almas, é preciso dizer: quando encontra espíritos
endurecidos, retira-se, e habita apenas os que são doces” (PLATÃO, 1996, p.
195e).
Tendo
em vista defender a extrema perfeição desse deus, Agáton discursa colocando em
dúvida a religião tradicional grega e sustenta que as velhas histórias sobre
deuses contadas por Hesíodo e Parmênides, se são verídicas, devem-se ao império
de Anankê (a Necessidade), pois sob a regência de Eros jamais ocorreriam tais
atrocidades e violências.
Quanto
à sabedoria do Amor, Agáton o coloca como o criador de tudo o que é grandioso,
desde as artes dominadas pelos deuses (a arte de tecer, de governar, a
medicina, a música) até aquelas atribuídas aos mortais (estes, após o toque de
Eros transformar-se-iam em poetas). Neste elogio, o amor é focalizado como um
elemento socializador que beneficia tanto os deuses quanto os homens:
É ele quem nos arranca do isolamento, quem
aproxima os homens; é princípio e liame da sociedade. É ele quem nos guia e nos
inspira em festas, danças e sacrifícios, quem faz entreabrir-se a doçura e
desaparecer a ferocidade (PLATÃO, 1996, p. 197c).
Assim, observa-se que Platão atribui a Agáton um
discurso que é a verdadeira exaltação da superficialidade para, mais uma vez,
criticar a verborragia dos sofistas.
1.6 Discurso de Sócrates
Quando
de seu discurso, Sócrates ironiza Agáton e diz-se inibido de falar após ter
ouvido tão belo discurso, sentindo-se incapaz de tecer um elogio a Eros.
Prosseguindo sua encenação, Sócrates pede permissão a Fedro para falar da forma
que melhor sabe fazer – por meio do diálogo –, mas ara tanto necessita, antes,
tratar umas pequenas questões com Agáton, a fim de que possa falar com mais
segurança.
A
partir desse momento Sócrates, passa a formular questões sutis que embaraçam
Agáton, como, por exemplo: Eros deseja ou não o objeto de que é amor? Quando
deseja e ama, possui ou não a coisa que deseja e ama? e termina por levar seu
interlocutor a descobrir que o discurso proferido era perfeito retoricamente,
mas vazio em essência de conhecimento.
Para
expor as verdades alcançadas no breve diálogo que traçara com Agáton, Sócrates
reproduz um discurso que outrora mantivera com Diotima, uma sábia, natural da
Mantinéia, que fora a responsável pelo conhecimento de Sócrates acerca do amor.
Num primeiro momento, Diotima teria esclarecido a Sócrates que o amor não é uma
divindade, pois carece do belo e do bom, mas nem por isso é feio e mau, na
verdade este habitaria num plano intermediário entre esses dois opostos, tal
qual a opinião certa está para a sabedoria e a ignorância. Eros seria um ser
entre os homens e os deuses, um daimon
A ele cabe interpretar e transmitir aos
deuses o que vem dos homens, e aos homens o que vem dos deuses; a uns, as
orações e os sacrifícios; a outros, os mandamentos e as recompensas das preces.
Seu lugar é entre os dois, e por isso preenche o vazio que há entre uns e
outros. É o liame que une o todo a si mesmo. Graças a ele é que existe a
divinação, e também a arte dos sacerdotes relativa aos sacrifícios, às
consagrações, às fórmulas sagradas, a todas as profecias, encantações, à magia
em geral. Um deus, com efeito, não se aproxima de um homem. Toda a comunicação
que se estende entre os deuses e os homens, estejam acordados ou dormindo, é
sempre feita por intermédio dos gênios. O homem a quem são feitas essas
comunicações e que as conhece, é um homem inspirado; todos os outros, os que só
conhecem um pouco das artes e de certas manipulações não passam de artífices.
Há muitos gênios, e, sobretudo diferentes espécies deles. Eros é um desses gênios
(PLATÃO, 1996, p. 203 a).
Tal
natureza mediadora é devida à origem do amor. Sendo filho de Poros (Recurso) e
de Penia (Pobreza), herdou da mãe a ânsia permanente, a fome e a miséria, e, do
pai, todos os expedientes para suprir o que lhe falta, ou seja, a bravura e o
desejo de conhecimentos. E tendo sido concebido na ocasião do nascimento de
Afrodite, tornou-se seu servidor, pois ama o que é belo. Definida a origem do
Amor, a estrangeira caracteriza o seu fardo: oscilar permanentemente entre a
miséria e a riqueza na busca do belo e da sabedoria:
A sabedoria, efetivamente, é uma das coisas
mais belas que há e Eros tem como objeto do seu amor precisamente o que é belo.
Logo, devemos reconhecer que Eros é necessariamente um filósofo, e como tal
ocupa o meio-termo entre o sábio e o tolo (PLATÃO, 1996, p. 204 a).
.
Partindo
da afirmativa de que Eros é o amor do belo, Diotima traça uma analogia entre o
belo e o bem para demonstrar que, se o amor é amor do belo, também é amor do
bem, e se é essencialmente desejo, conclui-se que é o desejo de possuir o bem;
e não somente possuí-lo, mas possuí-lo para sempre. Daí que o Amor é o desejo
de posse do Bem para sempre.
A
profetisa salienta ainda que para receber esse justo nome – Amor -, os homens
devem praticá-lo de forma adequada, de modo que consigam a criação da beleza segundo
o corpo e segundo o espírito. Tal feito é possível através do ato de procriar
no belo “pois que o amor consiste no desejo da posse perpétua do bem; donde
resulta que o amor é também o desejo de imortalidade” (PLATÃO, 1996, p. 207 a).
O
conceito de imortalidade na fala de Diotima apresenta dois vieses: o da
procriação, de natureza heterossexual, e o do espírito, do qual participam
ambos os sexos (contrariando todos os demais discursos, neste há uma completa
carência de preconceito). O primeiro acontece quando o homem é fecundado em seu
corpo e através da procriação e do nascimento consegue imortalizar-se através
daqueles a quem gera. O segundo relaciona-se
com as
artes e diz respeito aos que concebem pelo espírito, gerando a sabedoria que
atravessa
séculos
e séculos; entre estes figuram os poetas, os inventores e os juristas.
Diotima destaca que para alcançar a sublime posse,
o homem deve conduzir-se da seguinte maneira: na mocidade deve dirigir a
atenção para belos corpos, para depois perceber que a beleza da alma é
infinitamente superior à do corpo; após deve dirigir-se para a beleza dos
conhecimentos, quando então, estará apto a contemplar a imensidão do belo;
ultrapassados todos os graus do amor, o homem sentirá em si próprio a essência
do belo, a sensação sublime de pureza e segurança que é o amor enquanto saber.
1.7 Discurso de
Alcibíades e o elogio a Sócrates
Logo
após o discurso de Sócrates ocorre a chegada intempestiva de Alcebíades à frente
de um bando de bêbados com o propósito de felicitar Agáton pelo prêmio
alcançado. Dadas as boas-vindas ao general ateniense, Erixímaco coloca-o a par dos
discursos em honra de Eros e pede-lhe que também faça um elogio ao deus do
amor. Alcibíades atende ao pedido do simposiarca e prepara-se para fazer um
elogio a Eros, mas este se converte num elogio a Sócrates.
Iniciando
o discurso, Alcibíades destaca o paradoxo desconcertante que lhe suscita
Sócrates e
passa
a compará-lo às estátuas de silenos
(semideuses dotados de grande fealdade), que eram produzidas por escultores
gregos, as quais, de aspecto externo grotesco, ao serem partidas revelavam em
seu interior imagens esculpidas de divindades belíssimas. O jovem general passa
então a elogiar os dotes oratórios de Sócrates, primeiro comparando a técnica
deste com a arte da figura mitológica de Mársias – segundo a lenda o criador da
flauta, instrumento cujo som envolvente é de grande doçura ao ouvido, e que,
segundo o orador promove a comunhão com o mundo divino. Diz Alcebíades: “A
única diferença que há entre ti (Sócrates) e ele (Mársias), é que consegues os
mesmos efeitos sem te utilizares de instrumentos, mas só de tua palavra”
(PLATÃO, 1996, p. 215b).
Confronta
ainda os discursos de Sócrates com os de outros mestres da oratória e diz que
aqueles não o impressionaram tanto quanto os do filósofo: “Ao ouvi-lo, meu
coração pulsa mais fortemente do que o dos coribantes e enchem-se os meus olhos
de lágrimas sob o efeito de suas palavras” (PLATÃO, 1996, p. 215e).
Sem as
amarras da sobriedade, o general passa a confessar todo seu embaraço e
queixa-se do sofrimento que lhe causa a rejeição do filósofo, visto que este
nunca cedeu às suas investidas apaixonadas. Ao final de sua fala, Alcebíades
conclui prevenindo Agatão contra Sócrates, reafirmando ser, como outros tantos
jovens atenienses, vítima de sina adversa, visto que o filósofo se mantém
inatingível à paixão que lhe devotam os amantes. E como destaca que o anfitrião
haverá de arrepender-se se não lhe der ouvidos, esta nuança no final de sua
fala revela a presença de outro componente do amor apaixonado do intemperante
general grego: o ciúme, o medo e a vergonha de ser preterido. Segundo Mota
Pessanha “Alcebíades é o amor paixão, acorrentado à imediatez, ao presente, ao
sensível, à urgência do aqui e agora” (PESSANHA, 1994, p. 100) por isso age de
tal forma.
A
postura de Sócrates no discurso amoroso de Alcebíades não corresponde ao que
este espera daquele. Isto promove no amante o desespero angustiado da dúvida,
já que o filósofo não lhe corresponde nem lhe dá razões para desprezá-lo:
Como pensais agora que eu devia tratar a um
homem assim? Eu me sentia desprezado, e não obstante não podia deixar de
admirar o seu caráter, a sua continência e o seu autodomínio; encontrar um
homem dotado de tamanha temperança e sabedoria como jamais pensei que pudesse
haver. O fato é que nem pude zangar-me com ele nem renunciar a sua amizade, nem
descobrir meios de atraí-lo para mim (PLATÃO, 1996, p. 219c).
A intervenção desbordada de Alcebíades em tudo
contrasta com os demais discursos, os quais mantiveram sempre um distanciamento
contido em relação ao amor. Este, o discurso que Platão dá a Alcebíades, um
homem de ação, nos traz a complexidade de um amor frustrado e as contradições
que ele propõe, onde o que se ama no outro é um pouco de nosso ideal, daquilo
que gostaríamos de ter para amar e não aquilo que realmente o outro é, mas que
também nós não somos.
2. FEDRO
Vinculando
estreitamente o tema do Eros à linguagem, neste diálogo Platão retoma e
aprofunda a discussão abordada no Banquete, onde havia afirmado ser o amor
desejo de imortalidade, desejo do Belo, e que o ato de procriar através do
corpo ou do espírito, possibilitaria ao homem superar sua condição mortal.
No início do diálogo platônico, Sócrates
encontra-se com Fedro em uma rua de Atenas; este mostra-se profundamente
entusiasmado com um discurso que ouvira de Lísias, mestre da retórica, acerca
do amor e convida o filósofo a acompanhá-lo para fora dos muros da cidade a fim
de que possam conversar. Caminham ao longo do rio Ilisso e enfim alcançam um
plátano alto, florido, perfumado e por onde corre bonita fonte de água fresca;
acomodam-se e Fedro passa à leitura do discurso de Lísias.
2.1 Discurso de Lísias
Fedro
relata que o retórico Lísias defende que é preferível manter uma relação
amorosa com um amante sem paixão do que arriscar-se a ceder favores àqueles que
amam verdadeiramente, pois
os
primeiros mantêm a amizade e a dignidade após o rompimento, já os segundos
tornam-se inconvenientes e traiçoeiros.
O
amante apaixonado esquece-se de seus negócios, de seus parentes e amigos e só
visa à satisfação de seu desejo “Em consequência disto, é sempre duvidoso que
eles, uma vez satisfeito o desejo, estejam dispostos a continuar essa amizade,
desde que desapareça o desejo” (PLATÃO, 1996, p. 233 a).
Vale
ressaltar que tanto os gregos quanto os romanos, consideravam a excessiva
influência dos instintos amorosos sobre um indivíduo como danosa e indigna. O
amor apaixonado era considerado uma doença escravizadora – na medida em que
torna o homem dependente de outra pessoa, corrompendo, dessa forma, a
hierarquia social. Deixar-se dominar por seus desejos é próprio dos seres
inferiores; a marca do indivíduo superior mostra-se através da autodisciplina
aliada à razão.
Percebe-se que neste primeiro discurso, o amor é
ligado à passividade, ao orgulho, ao medo, enfim, ao negativo; segundo as
ideias de Lísias o amor é um sentimento nocivo que afasta o homem da razão e da
virtude, tornando-o afeito a impulsos irrefreáveis de posse e concupiscência.
2.2 Primeiro Discurso de
Sócrates
Não
obstante o entusiasmo de Fedro, Sócrates ironiza o discurso de Lísias,
afirmando que aquele, além de não possuir qualidades retóricas, carece ainda de
expressão quanto à verdadeira essência do tema. Após uma longa discussão, Fedro
exige que o filósofo formule um discurso sobre o amor que seja superior ao de
Lísias.
Sócrates
graceja diante da fúria de Fedro e pede às Musas que estas lhe inspirem um bom
discurso. Num primeiro momento, o filósofo afirma que o amor é desejo, mas
esclarece que os homens são governados por dois tipos de desejo: o desejo inato
do prazer e o desejo do melhor, este, aliado à reflexão. O primeiro princípio,
o desejo aliado à paixão é apresentado como uma fúria incontrolável, uma
rebelião dos sentidos, uma doença que degenera o indivíduo e afasta-o da
virtude; a este Sócrates chama Eros:
Quando o desejo, que não é dirigido pela
razão, esmaga em nossa alma o prazer do bem e se dirige exclusivamente para o
prazer que a beleza promete e quando ele se lança, com toda a força que os
desejos intemperantes possuem, o seu poder é irresistível. Esta força toda
poderosa, irresistível, chama-se Eros ou Amor (PLATÃO, 1996, p. 238c).
Para o
filósofo, o homem governado por esse tipo de desejo torna-se escravo da volúpia
e causador dos maiores prejuízos ao amado, visto que, tomado pela impaciência o
afastará dos amigos, da família, dos negócios e da filosofia, pois necessita
que o amado viva exclusivamente para o seu desejo: “Uma coisa é evidente para
todos, e em primeiro lugar para o próprio amante: ele deseja, acima de tudo,
que seu amado seja privado dos mais ambicionáveis, mais agradáveis e mais
divinos bens” (PLATÃO, 1996, p. 243a).
Afora
todos esses males que o amante apaixonado causa ao amado, Sócrates salienta que
ainda há um pior: quando seu amor termina, o amante revela-se o mais traiçoeiro
dos homens; passa a desfazer e humilhar o antigo amado e jamais cumpre qualquer
das promessas que outrora lhe fizera. E conclui:
Eis, caro rapaz, o que é necessário ter em
mente; deves saber que o amor de um homem apaixona do não provém de um
sentimento benévolo, mas, como o apetite ao comer, da necessidade de
satisfazê-lo. ‘Como o lobo ama o cordeiro, ama o apaixonado o seu amado’ (PLATÃO,
1996, p. 241d).
Para
Marilena Chauí, tanto Lísias quanto Sócrates, nos dois primeiros discursos do
Fedro, apresentam o amor como appetitus,
vocábulo latino que traduz o grego hormê,
que significa ardor, zelo, e oréxis, que é a ação de tender fortemente para
algo ou alguém; donde apettitus implica
em avidez, paixão e desejo. O cupiditas
(desejo ávido) é a doença do apettitus,
que dá origem à palavra concupiscência (NOVAES, 1990, p. 27).
Proferido o discurso, Fedro exige de Sócrates um
posicionamento sobre o desejo aliado ao Bem, ou seja, o desejo do melhor; este,
porém, dá-se por satisfeito e prepara-se para atravessar o regato e voltar à
cidade; mas então percebe que cometera um pecado terrível: ao fazer um discurso
ímpio sobre o amor houvera desrespeitado um deus; deveria, pois penitenciar-se
a fim de fugir à ira de Eros: “Esses discursos pecaram contra Eros. [...] Eis
por que, meu Fedro, é necessário que eu me penitencie” (PLATÃO, 1996, 243).
2.3 Segundo Discurso de
Sócrates
Logo
no início de seu segundo discurso, Sócrates afirma que não fora verdadeiro o
anterior e defende que a loucura do homem apaixonado é uma espécie de delírio
inspirado pelos deuses para a sua felicidade e não para sua ruína.
Segundo
Sócrates, os delírios benévolos aos homens são de quatro tipos: o primeiro é o
da profetisa de Delfos, o segundo, das sacerdotisas, ambas são de suma importância,
pois, prestam grandes favores às pessoas e aos Estados da Grécia quando em situações
de guerra, flagelos e purificações por pecados antigos. O terceiro delírio é
atribuído às Musas, tendo em vista que são mestres da arte poética, o homem
inspirado por estas criará as mais belas canções e os mais comoventes poemas. O
quarto tipo de delírio é o Amor; este foi enviado pelos deuses para o seu bem,
para sua felicidade. Nas palavras de Sócrates: “... o amor foi enviado ao
amante e ao amado, não em virtude de sua utilidade material, mas, ao contrário,
e é o que mostraremos, esse delírio lhes foi incutido pelos deuses para sua felicidade”
(PLATÃO, 1996, p. 245c).
A fim
de explicar a benevolência do amor, Sócrates parte do seguinte princípio: toda
a alma é imortal; esta pode ser representada por uma carruagem alada onde um
cocheiro procura conciliar o ímpeto de dois cavalos. A carruagem dos deuses é
facilmente conduzida, pois seus cavalos são bons e virtuosos, já a carruagem
dos demais seres, que é regida por cavalos contrários – um bom, outro ruim – é
de difícil manejo.
Em seu
passeio pelo céu, anterior à existência terrena, as almas contemplam as Ideias
Eternas -
a Justiça,
o Bem, a Verdade, o Belo -; a alma dos deuses, saciada sua sede de conhecimento,
volta para o interior do céu, já a alma do homem, além de não conseguir contemplar
com clareza as Ideias, devido ao enfrentamento constante entre os cavalos, perdem
as suas asas aladas e passam a habitar um corpo humano. A retomada das asas
será efetivada através da reminiscência, quando o homem, ao contemplar a beleza,
reconhece-a como uma das Ideias divinas, que outrora contemplara.
Visto
que o amor é o ato de procriar no Belo, ao avistar a Beleza, a alma humana eleva-se
ao divino e reencontra a plenitude anteriormente experimentada. Desse modo o
amor manifesta-se como algo divino e por isso difícil de ser abandonado;
conforme Sócrates: “Cada um escolhe o seu amor de acordo com o respectivo caráter
e passam a considerá-lo como seu deus, elevam-lhe uma estátua em seu coração,
enfeitam-no para adorá-lo e celebrar seus mistérios” (PLATÃO, 1996, p. 252d).
Os
amantes possuídos por esse tipo de amor são zelosos para com seus amados e desejam
compartilhar os mesmos interesses e as mesmas vitórias. Neste discurso o amor surge
como uma iniciação ao bem, algo que transcende a matéria corpórea e anima os
seres humanos a desenvolverem-se espiritualmente para alcançar a plenitude
outrora experimentada quando a alma habitava o Mundo das Ideias.
Segundo
Flávio Di Giorgi, neste discurso amor possui dois componentes: o amare que diz respeito ao ato sexual e o
bene velle que é a estima, o querer
bem; daí que o amor para ser completo, harmônico, precisa ter necessariamente
esses dois elementos. Se não tem, ou dominará a paixão, ou a amizade (CARDOSO,
1990, p. 137).
Quanto
às alternativas do amor, Sócrates volta a referir-se aos dois cavalos contrários
que regem a carruagem; estes representam os dois princípios primordiais que governam
o homem: o bem e o mal. O cavalo bom é harmonioso e ama a honestidade; o cavalo
mau é rebelde e dotado de lascívia. Quando o cocheiro vê o objeto amado e
procura aproximar-se, os cavalos travam uma luta entre si para ver qual dos dois
dominará o objeto.
Se o
princípio do bem for vitorioso, o amor advindo dele proporcionará aos amantes
uma vida regrada pela filosofia e pela concórdia e ao morrerem suas almas novamente
recebem asas e voltam aos céus, permanecendo unidas para toda a eternidade. Porém,
se o princípio do mal for o vencedor, o amor será voltado para os prazeres e satisfações,
sem a presença da filosofia; suas almas também rumarão ao céu, mas seu amor é inferior
aos que verdadeiramente amam. De acordo com Sócrates:
São essas coisas divinas, que te dará o amor
do que ama com paixão. O amor daquele que não tem paixão, daquele que apenas
possui a sabedoria mortal e que se preocupa com os bens do mundo, só gera na
alma do amado a prudência do escravo à qual o vulgo dá o nome de virtude, mas que
o fará vagar, privado da razão, na terra e sob a terra durante nove mil anos! (PLATÃO,
1996, p. 257a).
2.4 A Linguagem do Amor
Nesse
ponto do diálogo, o tema do Amor aparece intimamente ligado à questão da linguagem;
Sócrates expõe os defeitos da retórica que vigoram em seu tempo. Primeiramente ressalta
que a arte Retórica tem o poder de governar e manipular os homens por meio das palavras
e por isso um orador ignorante é extremamente nocivo à sociedade, pois através
de suas lições infundadas de verdade acaba por impelir o povo a pensar e agir
de modo tão ignorante quanto ele. “Logo, meu caro amigo, quem não conhece a
verdade, mas só alimente opiniões, transformará naturalmente a arte retórica
numa coisa ridícula que não merece o nome de arte” (PLATÃO, 1996, p. 262c).
Então o
filósofo toma como exemplo o discurso de Lísias e prova que este não passa de
um embuste. Para Sócrates o discurso é mal estruturado, visto que começa pelo
fim, há um grave desordenamento entre as frases e um excesso de repetições;
todos esses elementos comprovam o mais grave: a total ausência de conhecimento
sobre o assunto; destaca ainda que o fato de tratar-se de um tema abstrato facilita
aos oradores medíocres manipularem e iludirem seus ouvintes.
Após a
crítica, Sócrates explica como devem conduzir-se os discursos: primeiramente
deve-se lançar um ideia geral sobre o tema a ser tratado; depois, dividir essa ideia
em vários elementos, classificar os seus opostos e por fim apresentar qual
delas é a melhor. A esse método, Sócrates chama Dialética – arte do diálogo e
da discussão:
...a melhor maneira de aprender e de pensar.
E quando me convenço de que alguém é capaz de apreender, ao mesmo tempo o
conjunto e os detalhes de um objeto, sigo esse homem como se caminhasse nas
pegadas de um deus. E aos que têm esse talento, deus sabe que tenho razão em
assim falar, sempre chamei dialéticos (PLATÃO, 1996, p. 266).
O
verdadeiro orador, para Sócrates, é aquele que possui o dom da eloquência e o exercitar
até a exaustão através da pesquisa e da meditação; deve conhecer profundamente
a natureza do objeto sobre o qual irá trabalhar; deve perceber se sua natureza
é simples ou multiforme, se produz ação e suas influências, classificar seus
gêneros e suas causas; somente assim o orador adquirir à experiência para saber
que espécie de discurso deve usar para persuadir as diferentes almas.
Sócrates expõe que os retóricos de sua época
pregavam que não era necessário conhecer a verdade sobre o que é bom ou o que é
justo, nem sobre a natureza do objeto em questão, e sim falar sobre o provável,
o verossímil. Na obra de Platão, para que a retórica alcance uma posição
elevada, deve ligar-se ao problema da busca da Verdade, do Bem e da Justiça e estar
unida à Dialética. Só assim a retórica passa à condição de instrumento com validade
necessária à formação da virtude e da cidadania.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
No
interior dos diálogos Fedro e O Banquete, de Platão, percebemos duas formas de
desejo/amor: de um lado, o amor enquanto aspiração ao Mundo das Ideias, a
impulsionar a alma, pela ascese, rumo a sua condição original; de outro, o
desejo enquanto apetite, que prende o corpo ao carnal, à imediatez da concupiscência.
O primeiro é o anseio de plenitude pura; o segundo, perseguição do prazer
sexual. Ambos apresentam um vínculo com o tempo e associam-se a um tipo de
memória. Esse enfrentamento de desejos voltados para objetos de natureza
diversa cria uma tensão permanente, que ultrapassa o nível psicológico e
alcança outros campos da compreensão humana, tais como o ético, o pedagógico e
o político, constituindo os inúmeros desdobramentos da construção platônica.
O
embate entre aspiração e apetite nos permite entrever o verdadeiro sentido do idealismo
platônico enquanto primazia do ideal em relação ao real imediato, do absoluto
em relação ao hipotético, ou em última instância, da alma em relação ao corpo.
A caracterização e união desses elementos, reunidos na relação do sensível e do
inteligível, é a tarefa a que Platão se propõe; por sua própria natureza é um
empreendimento infindável, pois o que pretende é um exercício perene do
filosofar, da busca pela sabedoria.
Para
Platão o melhor tipo de amor se une essencialmente ao Bem e ao Belo; pela via
da beleza há o despertar para aquilo que é sensível e a consequente
reminiscência da plenitude de outrora, experimentada no Mundo das Ideias. O
amor seria, então, o desejo de imortalidade ligado ao Bem. A eternidade somente
pode ser alcançada de duas formas: através da procriação pelo corpo (geração de
filhos) ou através da procriação pelo espírito (geração de obras); junte-se a
isso a importância da educação filosófica como o meio ideal para ascender a tal
estado.
Assim,
a filosofia do Eros está orientada para o próprio amor, aquele que deve ser amado
por si mesmo, pois se o amor pertence às verdades absolutas, pertence à alma, e
se esta se encontra
distante do mundo sensível é através do amor que
retorna a sua essência.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
CARDOSO,
Sérgio (Org.). Os Sentidos da Paixão.
São Paulo: Companhia das Letras, 1991.
CATULO,
Caio Valério. Poesia Lírica Latina. São
Paulo: Martins Fontes, 1992.
DURANT,
Will. História da Filosofia. São
Paulo: Cultural, 2000.
JAEGER,
Werner. Paidéia: A Formação do Homem Grego. São Paulo: Martins Fontes, 1995.
NOVAES,
Adauto (Org.). O Desejo. São Paulo:
Companhia das Letras, 1990.
PAULO,
Margarida Nichele. Indagação sobre a
imortalidade da alma em Platão. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996.
PLATÃO.
Diálogos I: Mênon, Banquete, Fedro. Rio
de Janeiro: Ediouro, 1996.
ROBLEDO,
Antonio Gomes. Platón. México, 1983
[1] Professora
do Curso de Letras da Universidade Federal de Pelotas (RS). Mestre em Letras
pela UFPel. Graduada em Direito (UCPel) e Especialista em Filosofia Moral e
Política (UFPel). Integrante do Grupo de Pesquisa Estudos Comparados de
Literatura, Cultura e História.
[2]
RODRIGUES, Gabriela Rocha. É o amor dos homens
pelos mancebos, pois preferem o sexo que é mais forte e mais inteligente.
Disponível em: <http://www.giacon.pro.br/lem/EDICOES/06/Arquivos/RODRIGUES.pdf>.
n. 6, Mai 2014. Acesso em: 8.10.2015, às 22h30.
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