1. FINALIDADE
Atualizarei aqui alguns temas que
constam de alguns livros e de vários artigos que já publiquei anteriormente. Não
os citarei neste momento porque merecerão análise no momento próprio.
Destaco que o tema é
multidisciplinar. Embora eu tenha em vista que o Direito é uma ciência, não
podemos nos olvidar que os seus diversos ramos têm autonomia relativa e que as
ciências se comunicam com outras, sejam em ações performativas ou autopoiesis.
Dentro do Direito, mais diretamente, passaremos por Direito Constitucional,
Direito Criminal, Direito Processual em matéria criminal e Direito de Execução
Criminal. Este último é um Direito de fusão, tendo nascido da reunião de
institutos do Direito Criminal, do Direito Processual – em matéria criminal – e
do Direito Administrativo.
2. INSPIRAÇÃO CONSENSUALISTA EM MATÉRIA CRIMINAL
É vetusta a busca por consenso em
matéria criminal. Não podemos nos olvidar de que, antes mesmo da escrita,
tivemos uma fase ou instituição criminal denominada de composição,
a qual representou um grande avanço na punição, uma vez que permitia a
substituição da pena corporal pelo pagamento em bens móveis ou imóveis. César Roberto Bitencourt não menciona essa instituição criminal,[1] o
que considero um equívoco, visto que, na atualidade, a composição orienta o
Direito Criminal da maioria dos povos efetivamente civilizados.
Alguns preferem falar em Direito
Penal[2]
Negocial, distinguindo a negociação da pena dos equivalentes funcionais da pena,
aduzindo que no modelo brasileiro não há negociação de pena, havendo apenas
negociação de equivalentes funcionais da pena.[3]
Entendo diversamente, uma vez que a substituição da pena pode ser recusada pelo
condenado, bem como a suspensão condicional da pena dependerá da aceitação das
condições pelo condenado.
Com Durkheim (1958-1917),
afirmo que o Brasil vem demonstrando a cada dia ter uma cultura rudimentar,
visto procura solucionar todos os seus problemas criando leis criminais.[4] Até
mesmo a nossa Constituição Federal agasalha os denominados mandados
constitucionais de criminalização, efetivas ordens para que determinados
fatos sejam considerados crimes. Mas, é nela em que vejo uma inspiração, ainda
que tímida, para uma “conciliação” jurídico criminal (art. 98, inciso I).
3. “SURSIS” E “PROBATION”
O probation (período de
prova) surgiu em 1841, em Boston, Estados Unidos. Por ele, suspendia-se a
prolação da sentença. O Código de Processo Penal francês, de 1958, instituiu o sursis.[5]
Enquanto, o instituto anglo-saxão permite executar uma pena sem sentença
condenatória, o franco-belga permite suspender a execução da pena imposta ao
condenado, isso mediante condições por um determinado período de prova.
Não temos sursis e probation
puros no Brasil. Já conhecíamos a suspensão condicional da pena (sursis),
que tem origem franco-belga, a qual está expressa no Código Penal (arts. 77-82),
mas não de forma pura, visto que na sua origem a substituição é sem imposição
de pena, enquanto, no Código Penal, haverá pena restritiva de direito durante o
primeiro ano da suspensão (art. 78, § 1º).
O art. 98 da Constituição Federal
traz, quanto à eficácia, a denominada norma constitucional limitada institucional,
uma vez que deveriam ser instituídos Juizados Especiais Cíveis e Criminais no
Brasil, o que foi regulado pela Lei n. 9.099, de 26.9.1995. Essa lei trouxe a
conciliação como orientadora das soluções das ações condenatórias por infrações
criminais de menor potencial ofensivo (art. 60). Para tanto, criou novos
institutos, a saber: (a) composição civil – arts. 72-75); (b) transação – art.
76; e (c) suspensão condicional do processo – art. 89. Conforme afirmou Luiz
Flávio Gomes, com a Lei n. 9.099/1995, abandonamos o modelo de Justiça
Criminal Conflitiva, adotando um novo paradigma, o de Justiça Criminal
Consensuada.[6]
A transação e a suspensão
condicional do processo parecem probation, não o sendo de forma
pura. Não obstante, equivocadamente, a prática forense é de denominar esta
última de “sursis processual”, o que é equivocado, conformei informei
alhures:
A
suspensão condicional do processo tem sido conhecida por “sursis” processual,
denominação imprópria porque sursis é um instituto de origem francesa
que se refere unicamente à suspensão condicional da pena. Ora, sem processo não
há pena, como corolário, a referida denominação não deve ser utilizada, a fim
de se evitar o conhecimento equivocado do instituto.[7]
A doutrina é firme ao dizer que
rechaçamos a plea bargain dos EUA (acordo, mediante confissão, para
condenação com pena menor), por ser incompatível com a nossa concepção de
Estado de Direito e, também, inconciliável com o rule of law (Estado de
Direito) anglo-saxônico.[8]
Digo a todo momento que devemos
ser responsáveis. Não devemos desejar ser incautos e apoiar o punitivismo
religioso. Por isso, volto à Durkheim:
Nas sociedades inferiores, o direito como veremos, é quase
exclusivamente penal; por isso, é sobremodo estacionário. De modo geral, o
direito religioso é sempre repressivo: é essencialmente conservador.[9]
A Lei n. 13.964, de 24.12.2019,[10]
inseriu o art. 28-A no Código de Processo Penal, o qual disciplina o acordo
de não persecução penal, a ser proposto pelo Ministério Público ao investigado,
antes do oferecimento da denúncia, por crime sem violência ou grave ameaça, cuja
pena mínima cominada seja inferior a 4 anos, preenchidos os requisitos do referido
artigo. Chama a atenção ser exigida a confissão formal e circunstanciada da
prática da infração penal (caput do art. 28-A).
Embora se exija a confissão para a
realização do acordo de não persecução penal, ele está mais próximo do patteggiamento
(aplicação da sanção a pedido das partes), inserido no Código de Processo Penal
da Itália de 1988 (art. 444).[11]
Outros países europeus têm previsões semelhantes, por exemplo, Portugal e Espanha.
O novel instituto do art. 28-A do CPP não pode representar condenação, uma vez
que é anterior ao devido processo legal.
Embora a suspensão
condicional da pena e o livramento condicional constem do Código Penal, é
matéria do Direito de Execução Criminal, não devendo constar da sentença
condenatória, visto que têm regulação especial no nosso Código de Execução
Criminal (o qual se autodenomina Lei de Execução Penal).[12] A
Lei n. 13.964/2019 alterou alguns requisitos sobre o livramento condicional – estabeleceu
a sua proibição em alguns casos – e criou
o acordo de não persecução penal.
4. ACORDO DE LENIÊNCIA E COLABORAÇÃO
PREMIADA
O acordo de leniência e a delação
premiada são considerados meios de obtenção de prova, portanto, de direito
processual alheios ao Direito Criminal negocial. A delação premiada surgiu com
a Lei n. 8.072, de 25.7.1990, enquanto o acordo de leniência foi incluído na
revogada Lei 8.884, de 11.6.1994, pela Medida Provisória n. 2.055, de 11.8.2000
(art. 35-B). Tais acordos, o de leniência (realizado por pessoa jurídica) e a
colaboração (realizada por pessoa física ou jurídica), para redução da pena e
outros benefícios criminais e administrativos. Por isso, entendo que guardam
natureza jurídico-criminal, não podendo serem afastados da presente abordagem.
Eu fiquei pasmado ao ler um
artigo jurídico que afirma em seu resumo:
O acordo de leniência anticorrupção no Brasil
surgiu com a Lei n. 12.846/2013 e logo em seguida teve ampla aplicação
envolvendo grandes empresas e um enorme volume de recursos, principalmente em
razão da Operação Lava Jato. O artigo pretende mostrar que as mudanças legais,
embora tenham facilitado a investigação e a comprovação das condutas,
desenharam um arranjo institucional complexo, com sobreposição de competências
e divergência de interesses...[13]
Não!
Afirmei anteriormente:
A Lei n. 8.137, de 27.12.1990 (lei de
combate aos crimes contra a ordem econômica, tributária e das relações de
consumo), foi alterada pela Lei n. 9.080, de 19.7.1995, para incluir o
parágrafo único no seu art. 16, beneficiando o delator com a redução da pena de
1/ a 2/3.[14][15]
Os autores erram em mais de uma
década. Com efeito, no mesmo artigo nupercitado, afirmei:
O mesmo que se afirmou no parágrafo anterior se
pode dizer do acordo de leniência, introduzido na legislação brasileira por
força da Medida Provisória n. 2.055, de 11.8.2000, convertida na Lei n. 10.149,
de 21.12.2000, tendo incluído na Lei n. 8.884, de 11.6.1994, o acordo de
leniência.[16]
Sempre me questionei sobre ser o
acordo de leniência eventual mera conivência estatal com fim de lucro. Não gosto
da ideia de beneficiarmos criminosos sob o manto da sua utilidade.[17]
Em um utilitarismo exagerado o admitimos e, também, implementamos a delação
premiada, mais tarde, denominada eufemisticamente colaboração premiada.
Hoje, o acordo de leniência está
previsto no art. 16 da Lei n. 12.846, de 1.8.2013, enquanto a colaboração
premiada é disciplinada na Lei n. 12.850, de 2.8.2013.
Não gosto do utilitarismo exagerado.
Por isso, sou contrário ao excesso de pressões para que haja “conciliação” com
confissão, mediante delação ou acordo de não persecução penal. Durante a
Operação Lava Jato verificamos prisões para forçar delações premiadas. Essa
operação demonstrou o quanto esse utilitarismo só prejudica. Aliás, o próprio
Sérgio Moro reconhece que a Operação Mãos Limpas da Itália serviu para projetar
politicamente Sílvio Berluscone, suspeito de corrupção.[18]
Não me canso de citar Hegel,
visto que dizia que a pena dignifica o homem por ser ele capaz de se
responsabilizar pelos seus próprios atos.[19]
Diversamente, o delator trai os seus cúmplices, evidenciando não ter dignidade
suficiente para responder pelos próprios atos.
4. CONCLUSÃO
Longe da pretensão de esgotar o
assunto, visto que apenas pontuamos as suas linhas gerais, optando por incluir
o acordo de leniência e a delação premiada no Direito Criminal consensual, digo
que o acordo é bom, desde que não seja feito mediante prisão de eventual
delator, coação a uma pessoa jurídica etc.
Todos os benefícios devem ser acolhidos
e, alhures (no meu Execução Criminal, anteriormente citado) já informei que a
suspensão condicional da pena perde um pouco da razão de ser ante outros
benefícios e a realidade da execução criminal brasileira.
Um direito criminal civilizado é
de intervenção mínima. No entanto, os mecanismos de celeridade e economia
processual que instituímos (transação, suspensão condicional do processo e
acordo de não persecução penal) estão se revestindo em instrumentos para o
Direito Criminal de intervenção máxima, especialmente quando aliados às
pressões para acordos de leniência e delações premiadas.
[1]
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal. 10. ed. São Paulo:
Saraiva, 2006. v. 1, p. 35-38.
[2] Embora
haja a predominância entre os povos de língua originalmente latina da
Denominação Direito Penal, prefiro falar em Direito Criminal, uma vez que a
pena é efeito do crime. Ela é estudada pela Penalogia, não pelo Direito.
Ademais, o que visamos definir e evitar é a causa (crime), não o seu efeito
(pena). Já discorri um pouco, tangenciando o assunto, em: MESQUITA JÚNIOR,
Sidio Rosa de. Execução criminal: teoria e prática. 7. ed. São Paulo:
Atlas, 2014. p. 4. tAMBÉM, VOLTO A dizer5
[3] GOMES
FILHO, Dermeval Farias. Direito penal negocial: a legitimação da
resposta penal. Salvador: JusPODIVM, 2023. p. 256.
[4] DURKHEIM, Emile. Da divisão do
trabalho social. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p. 46. Para não deturpar
o seu pensamento, transcrevo:
Nas sociedades
primitivas, em que, como veremos, o direito é inteiramente penal, é a
assembleia do povo quem administra a justiça.
[5] CARVALHO,
Paulo Pinto de. “Sursis” simples e “sursis avec mise à l’épreuve”. Brasília: Revista
Informativa Legislativa, ano 15, n. 59 Jul-Set1978. Disponível em: <chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/181146/000366095.pdf?sequence=3&isAllowed=y#:~:text=A%20lei%20belga%20de%201888,de%20pol%C3%ADtica%20criminal%20franco%2Dbelga.>.
[6] GOMES,
Luiz Flávio. Suspensão condicional do processo penal. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 1995. p. 20.
[7] MESQUITA
JÚNIOR, Sidio Rosa de. Prescrição penal. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2007.
p. 104.
[8]
LOPES JÚNIOR, Aury. A crise existencial da justiça negocial e o que (não)
aprendemos com o JECRIM. Boletim do IBCCRIM, ano 29, n. 344, Jul2021, ISSN 1676-3661.
Disponível em: <https://publicacoes.ibccrim.org.br/index.php/boletim_1993/article/view/722/147>.
Acesso em: 8.12.2024, às 10h55.
[9] DURKHEIM, Emile. Da divisão do
trabalho social. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p.
48.
[10] Conhecida
por “pacote anticrime”, é pretensiosa em sua ementa ao exprimir: “Aperfeiçoa a
legislação penal e processual penal”.
[11] Dispõe
o Código de Processo Penal Italiano:
Art. 444.
Applicazione
della pena su richiesta
1. L'imputato e il
pubblico ministero possono chiedere al giudice l'applicazione, nella specie e
nella misura indicata, di una pena sostitutiva o di una pena pecuniaria,
diminuita fino a un terzo, ovvero di una pena detentiva quando questa, tenuto
conto delle circostanze e diminuita fino a un terzo, non supera cinque anni
soli o congiunti a pena pecuniaria. L'imputato e il pubblico ministero possono
altresì chiedere al giudice di non applicare le pene accessorie o di applicarle
per una durata determinata, salvo quanto previsto dal comma 3-bis, e di non
ordinare la confisca facoltativa o di ordinarla con riferimento a specifici
beni o a un importo determinato.
Em tradução livre:
Art. 444.
Aplicação da pena requerida
1. O arguido e o Ministério
Público podem requerer ao juiz a aplicação, na forma e na medida indicadas, de
pena substitutiva ou de pena pecuniária, reduzida até um terço, ou de pena de
prisão quando esta, tendo em conta as circunstâncias e reduzido até um terço,
não exceda cinco anos isoladamente ou combinados com uma sanção pecuniária. O
arguido e o Ministério Público poderão também pedir ao juiz que não aplique as
penas acessórias ou que as aplique por um período determinado, salvo o previsto
no n. 3-bis, e que não ordene o confisco facultativo ou o ordene com referência
a circunstâncias específicas, ativos ou uma quantia específica.
[12] Sobre:
(1) sursis e probation, transação e suspensão condicional do
processo tratei no meu Execução criminal. Também, (2) de suspensão condicional
da pena e (3) livramento condicional [MESQUITA JUNIOR, Sidio Rosa de. Execução
criminal: teoria e prática. 7. ed. São Paulo: Atlas, 2014. Respectivamente,
(1) p. 140-161, (2) p. 425-429 e (3) 411-419].
[13] VARELLA, Marcelo
Dias; ALENCAR, Carlos Higino Ribeiro de; VIANNA, Marcelo Pontes. Quando mais é
menos: arranjos institucionais e acordos de leniência anticorrupção no Brasil. Revista
de Informação Legislativa: RIL, Brasília, DF, v. 59, n. 233, p. 35-59, Jan-Mar2022.
Disponível em: <https://www12.senado.leg.br/ril/edicoes/59/233/ril_v59_n233_p35>.
Acesso em: 8.12.2024, às 17h.
[14]
MESQUITA JÚNIOR, Sidio Rosa de. A participação do Ministério Público é
imprescindível para efetivar o acordo de leniência. Publicado: 25.8.2020.
Disponível em: <https://sidiojunior.blogspot.com/2020/08/a-participacao-do-ministerio-publico-e.html>.
Acesso em: 8.12.2024, às 17h57.
[15] Lei
n. 8.137, de 27.12.1990, art. 16:
Parágrafo único. Nos crimes previstos nesta Lei, cometidos em
quadrilha ou coautoria, o coautor ou partícipe que através de confissão
espontânea revelar à autoridade policial ou judicial toda a trama delituosa
terá a sua pena reduzida de um a dois terços.
[16]
MESQUITA JÚNIOR, Sidio Rosa de. A participação do Ministério Público é
imprescindível para efetivar o acordo de leniência. Publicado: 25.8.2020.
Disponível em: <https://sidiojunior.blogspot.com/2020/08/a-participacao-do-ministerio-publico-e.html>.
Acesso em: 8.12.2024, às 17h57.
[17] MESQUITA
JÚNIOR, Sidio Rosa de. Comentários à lei antidrogas: ei n. 11.343, de
23.8.2006. São Paulo: Atlas, 2007. p. 114-116.
[18] MORO, Sérgio
Fernando. Considerações sobre a operação mani pulite. Artigo publicado na Revista
do Conselho da Justiça Federal: R. CEJ, Brasília, n. 26, p. 56-62, jul./set.
2004. In MESQUITA JÚNIOR, Sidio Rosa de. O artigo de autoria do Juiz Federal Sérgio Fernando Moro, de 2004, sobre
a Operação Mãos Limpas, "Mani Pulite", evidenciando suas práticas na
Operação Lava Jato. Estudos jurídicos e filosóficos. sidiojunior.blogsport.com,
15.9.2015. Disponível em: <https://sidiojunior.blogspot.com/search?q=mani+pulite>.
Acesso em: 12.12.2024, às 18h44.
[19] HEGEL,
Georg Wilhelm Frieddrich. Princípios de filosofia do direito. Lisboa:
Guimarães, 1990. p. 104.
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