quinta-feira, 12 de dezembro de 2024

Justiça criminal consensual: transação, acordo de não persecução, suspensão condicional do processo, sursis e livramento condicional

1. FINALIDADE

Atualizarei aqui alguns temas que constam de alguns livros e de vários artigos que já publiquei anteriormente. Não os citarei neste momento porque merecerão análise no momento próprio.

Destaco que o tema é multidisciplinar. Embora eu tenha em vista que o Direito é uma ciência, não podemos nos olvidar que os seus diversos ramos têm autonomia relativa e que as ciências se comunicam com outras, sejam em ações performativas ou autopoiesis. Dentro do Direito, mais diretamente, passaremos por Direito Constitucional, Direito Criminal, Direito Processual em matéria criminal e Direito de Execução Criminal. Este último é um Direito de fusão, tendo nascido da reunião de institutos do Direito Criminal, do Direito Processual – em matéria criminal – e do Direito Administrativo.

2. INSPIRAÇÃO CONSENSUALISTA EM MATÉRIA CRIMINAL

É vetusta a busca por consenso em matéria criminal. Não podemos nos olvidar de que, antes mesmo da escrita, tivemos uma fase ou instituição criminal denominada de composição, a qual representou um grande avanço na punição, uma vez que permitia a substituição da pena corporal pelo pagamento em bens móveis ou imóveis. César Roberto Bitencourt não menciona essa instituição criminal,[1] o que considero um equívoco, visto que, na atualidade, a composição orienta o Direito Criminal da maioria dos povos efetivamente civilizados.

Alguns preferem falar em Direito Penal[2] Negocial, distinguindo a negociação da pena dos equivalentes funcionais da pena, aduzindo que no modelo brasileiro não há negociação de pena, havendo apenas negociação de equivalentes funcionais da pena.[3] Entendo diversamente, uma vez que a substituição da pena pode ser recusada pelo condenado, bem como a suspensão condicional da pena dependerá da aceitação das condições pelo condenado.

Com Durkheim (1958-1917), afirmo que o Brasil vem demonstrando a cada dia ter uma cultura rudimentar, visto procura solucionar todos os seus problemas criando leis criminais.[4] Até mesmo a nossa Constituição Federal agasalha os denominados mandados constitucionais de criminalização, efetivas ordens para que determinados fatos sejam considerados crimes. Mas, é nela em que vejo uma inspiração, ainda que tímida, para uma “conciliação” jurídico criminal (art. 98, inciso I).

3. “SURSIS” E “PROBATION”

O probation (período de prova) surgiu em 1841, em Boston, Estados Unidos. Por ele, suspendia-se a prolação da sentença. O Código de Processo Penal francês, de 1958, instituiu o sursis.[5] Enquanto, o instituto anglo-saxão permite executar uma pena sem sentença condenatória, o franco-belga permite suspender a execução da pena imposta ao condenado, isso mediante condições por um determinado período de prova.

Não temos sursis e probation puros no Brasil. Já conhecíamos a suspensão condicional da pena (sursis), que tem origem franco-belga, a qual está expressa no Código Penal (arts. 77-82), mas não de forma pura, visto que na sua origem a substituição é sem imposição de pena, enquanto, no Código Penal, haverá pena restritiva de direito durante o primeiro ano da suspensão (art. 78, § 1º).

O art. 98 da Constituição Federal traz, quanto à eficácia, a denominada norma constitucional limitada institucional, uma vez que deveriam ser instituídos Juizados Especiais Cíveis e Criminais no Brasil, o que foi regulado pela Lei n. 9.099, de 26.9.1995. Essa lei trouxe a conciliação como orientadora das soluções das ações condenatórias por infrações criminais de menor potencial ofensivo (art. 60). Para tanto, criou novos institutos, a saber: (a) composição civil – arts. 72-75); (b) transação – art. 76; e (c) suspensão condicional do processo – art. 89. Conforme afirmou Luiz Flávio Gomes, com a Lei n. 9.099/1995, abandonamos o modelo de Justiça Criminal Conflitiva, adotando um novo paradigma, o de Justiça Criminal Consensuada.[6]

A transação e a suspensão condicional do processo parecem probation, não o sendo de forma pura. Não obstante, equivocadamente, a prática forense é de denominar esta última de “sursis processual”, o que é equivocado, conformei informei alhures:

A suspensão condicional do processo tem sido conhecida por “sursis” processual, denominação imprópria porque sursis é um instituto de origem francesa que se refere unicamente à suspensão condicional da pena. Ora, sem processo não há pena, como corolário, a referida denominação não deve ser utilizada, a fim de se evitar o conhecimento equivocado do instituto.[7]

A doutrina é firme ao dizer que rechaçamos a plea bargain dos EUA (acordo, mediante confissão, para condenação com pena menor), por ser incompatível com a nossa concepção de Estado de Direito e, também, inconciliável com o rule of law (Estado de Direito) anglo-saxônico.[8]

Digo a todo momento que devemos ser responsáveis. Não devemos desejar ser incautos e apoiar o punitivismo religioso. Por isso, volto à Durkheim:

Nas sociedades inferiores, o direito como veremos, é quase exclusivamente penal; por isso, é sobremodo estacionário. De modo geral, o direito religioso é sempre repressivo: é essencialmente conservador.[9]

A Lei n. 13.964, de 24.12.2019,[10] inseriu o art. 28-A no Código de Processo Penal, o qual disciplina o acordo de não persecução penal, a ser proposto pelo Ministério Público ao investigado, antes do oferecimento da denúncia, por crime sem violência ou grave ameaça, cuja pena mínima cominada seja inferior a 4 anos, preenchidos os requisitos do referido artigo. Chama a atenção ser exigida a confissão formal e circunstanciada da prática da infração penal (caput do art. 28-A).

Embora se exija a confissão para a realização do acordo de não persecução penal, ele está mais próximo do patteggiamento (aplicação da sanção a pedido das partes), inserido no Código de Processo Penal da Itália de 1988 (art. 444).[11] Outros países europeus têm previsões semelhantes, por exemplo, Portugal e Espanha. O novel instituto do art. 28-A do CPP não pode representar condenação, uma vez que é anterior ao devido processo legal.

Embora a suspensão condicional da pena e o livramento condicional constem do Código Penal, é matéria do Direito de Execução Criminal, não devendo constar da sentença condenatória, visto que têm regulação especial no nosso Código de Execução Criminal (o qual se autodenomina Lei de Execução Penal).[12] A Lei n. 13.964/2019 alterou alguns requisitos sobre o livramento condicional – estabeleceu a sua proibição em alguns casos  – e criou o acordo de não persecução penal.

4. ACORDO DE LENIÊNCIA E COLABORAÇÃO PREMIADA

O acordo de leniência e a delação premiada são considerados meios de obtenção de prova, portanto, de direito processual alheios ao Direito Criminal negocial. A delação premiada surgiu com a Lei n. 8.072, de 25.7.1990, enquanto o acordo de leniência foi incluído na revogada Lei 8.884, de 11.6.1994, pela Medida Provisória n. 2.055, de 11.8.2000 (art. 35-B). Tais acordos, o de leniência (realizado por pessoa jurídica) e a colaboração (realizada por pessoa física ou jurídica), para redução da pena e outros benefícios criminais e administrativos. Por isso, entendo que guardam natureza jurídico-criminal, não podendo serem afastados da presente abordagem.

Eu fiquei pasmado ao ler um artigo jurídico que afirma em seu resumo:

O acordo de leniência anticorrupção no Brasil surgiu com a Lei n. 12.846/2013 e logo em seguida teve ampla aplicação envolvendo grandes empresas e um enorme volume de recursos, principalmente em razão da Operação Lava Jato. O artigo pretende mostrar que as mudanças legais, embora tenham facilitado a investigação e a comprovação das condutas, desenharam um arranjo institucional complexo, com sobreposição de competências e divergência de interesses...[13]

Não!

Afirmei anteriormente:

A Lei n. 8.137, de 27.12.1990 (lei de combate aos crimes contra a ordem econômica, tributária e das relações de consumo), foi alterada pela Lei n. 9.080, de 19.7.1995, para incluir o parágrafo único no seu art. 16, beneficiando o delator com a redução da pena de 1/ a 2/3.[14][15]

Os autores erram em mais de uma década. Com efeito, no mesmo artigo nupercitado, afirmei:

O mesmo que se afirmou no parágrafo anterior se pode dizer do acordo de leniência, introduzido na legislação brasileira por força da Medida Provisória n. 2.055, de 11.8.2000, convertida na Lei n. 10.149, de 21.12.2000, tendo incluído na Lei n. 8.884, de 11.6.1994, o acordo de leniência.[16]

Sempre me questionei sobre ser o acordo de leniência eventual mera conivência estatal com fim de lucro. Não gosto da ideia de beneficiarmos criminosos sob o manto da sua utilidade.[17] Em um utilitarismo exagerado o admitimos e, também, implementamos a delação premiada, mais tarde, denominada eufemisticamente colaboração premiada.

Hoje, o acordo de leniência está previsto no art. 16 da Lei n. 12.846, de 1.8.2013, enquanto a colaboração premiada é disciplinada na Lei n. 12.850, de 2.8.2013.

Não gosto do utilitarismo exagerado. Por isso, sou contrário ao excesso de pressões para que haja “conciliação” com confissão, mediante delação ou acordo de não persecução penal. Durante a Operação Lava Jato verificamos prisões para forçar delações premiadas. Essa operação demonstrou o quanto esse utilitarismo só prejudica. Aliás, o próprio Sérgio Moro reconhece que a Operação Mãos Limpas da Itália serviu para projetar politicamente Sílvio Berluscone, suspeito de corrupção.[18]

Não me canso de citar Hegel, visto que dizia que a pena dignifica o homem por ser ele capaz de se responsabilizar pelos seus próprios atos.[19] Diversamente, o delator trai os seus cúmplices, evidenciando não ter dignidade suficiente para responder pelos próprios atos.

4. CONCLUSÃO

Longe da pretensão de esgotar o assunto, visto que apenas pontuamos as suas linhas gerais, optando por incluir o acordo de leniência e a delação premiada no Direito Criminal consensual, digo que o acordo é bom, desde que não seja feito mediante prisão de eventual delator, coação a uma pessoa jurídica etc.

Todos os benefícios devem ser acolhidos e, alhures (no meu Execução Criminal, anteriormente citado) já informei que a suspensão condicional da pena perde um pouco da razão de ser ante outros benefícios e a realidade da execução criminal brasileira.

Um direito criminal civilizado é de intervenção mínima. No entanto, os mecanismos de celeridade e economia processual que instituímos (transação, suspensão condicional do processo e acordo de não persecução penal) estão se revestindo em instrumentos para o Direito Criminal de intervenção máxima, especialmente quando aliados às pressões para acordos de leniência e delações premiadas.



[1] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2006. v. 1, p. 35-38.

[2] Embora haja a predominância entre os povos de língua originalmente latina da Denominação Direito Penal, prefiro falar em Direito Criminal, uma vez que a pena é efeito do crime. Ela é estudada pela Penalogia, não pelo Direito. Ademais, o que visamos definir e evitar é a causa (crime), não o seu efeito (pena). Já discorri um pouco, tangenciando o assunto, em: MESQUITA JÚNIOR, Sidio Rosa de. Execução criminal: teoria e prática. 7. ed. São Paulo: Atlas, 2014. p. 4. tAMBÉM, VOLTO A dizer5

[3] GOMES FILHO, Dermeval Farias. Direito penal negocial: a legitimação da resposta penal. Salvador: JusPODIVM, 2023. p. 256.

[4] DURKHEIM, Emile. Da divisão do trabalho social. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p. 46. Para não deturpar o seu pensamento, transcrevo:

Nas sociedades primitivas, em que, como veremos, o direito é inteiramente penal, é a assembleia do povo quem administra a justiça.

[5] CARVALHO, Paulo Pinto de. “Sursis” simples e “sursis avec mise à l’épreuve”. Brasília: Revista Informativa Legislativa, ano 15, n. 59 Jul-Set1978. Disponível em: <chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/181146/000366095.pdf?sequence=3&isAllowed=y#:~:text=A%20lei%20belga%20de%201888,de%20pol%C3%ADtica%20criminal%20franco%2Dbelga.>.

[6] GOMES, Luiz Flávio. Suspensão condicional do processo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. p. 20.

[7] MESQUITA JÚNIOR, Sidio Rosa de. Prescrição penal. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2007. p. 104.

[8] LOPES JÚNIOR, Aury. A crise existencial da justiça negocial e o que (não) aprendemos com o JECRIM. Boletim do IBCCRIM, ano 29, n. 344, Jul2021, ISSN 1676-3661. Disponível em: <https://publicacoes.ibccrim.org.br/index.php/boletim_1993/article/view/722/147>. Acesso em: 8.12.2024, às 10h55.

[9]  DURKHEIM, Emile. Da divisão do trabalho social. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p. 48.

[10] Conhecida por “pacote anticrime”, é pretensiosa em sua ementa ao exprimir: “Aperfeiçoa a legislação penal e processual penal”.

[11] Dispõe o Código de Processo Penal Italiano:

Art. 444.

Applicazione della pena su richiesta

1. L'imputato e il pubblico ministero possono chiedere al giudice l'applicazione, nella specie e nella misura indicata, di una pena sostitutiva o di una pena pecuniaria, diminuita fino a un terzo, ovvero di una pena detentiva quando questa, tenuto conto delle circostanze e diminuita fino a un terzo, non supera cinque anni soli o congiunti a pena pecuniaria. L'imputato e il pubblico ministero possono altresì chiedere al giudice di non applicare le pene accessorie o di applicarle per una durata determinata, salvo quanto previsto dal comma 3-bis, e di non ordinare la confisca facoltativa o di ordinarla con riferimento a specifici beni o a un importo determinato.

Em tradução livre:

Art. 444.

Aplicação da pena requerida

1. O arguido e o Ministério Público podem requerer ao juiz a aplicação, na forma e na medida indicadas, de pena substitutiva ou de pena pecuniária, reduzida até um terço, ou de pena de prisão quando esta, tendo em conta as circunstâncias e reduzido até um terço, não exceda cinco anos isoladamente ou combinados com uma sanção pecuniária. O arguido e o Ministério Público poderão também pedir ao juiz que não aplique as penas acessórias ou que as aplique por um período determinado, salvo o previsto no n. 3-bis, e que não ordene o confisco facultativo ou o ordene com referência a circunstâncias específicas, ativos ou uma quantia específica.

[12] Sobre: (1) sursis e probation, transação e suspensão condicional do processo tratei no meu Execução criminal. Também, (2) de suspensão condicional da pena e (3) livramento condicional [MESQUITA JUNIOR, Sidio Rosa de. Execução criminal: teoria e prática. 7. ed. São Paulo: Atlas, 2014. Respectivamente, (1) p. 140-161, (2) p. 425-429 e (3) 411-419].

[13] VARELLA, Marcelo Dias; ALENCAR, Carlos Higino Ribeiro de; VIANNA, Marcelo Pontes. Quando mais é menos: arranjos institucionais e acordos de leniência anticorrupção no Brasil. Revista de Informação Legislativa: RIL, Brasília, DF, v. 59, n. 233, p. 35-59, Jan-Mar2022. Disponível em: <https://www12.senado.leg.br/ril/edicoes/59/233/ril_v59_n233_p35>. Acesso em: 8.12.2024, às 17h.

[14] MESQUITA JÚNIOR, Sidio Rosa de. A participação do Ministério Público é imprescindível para efetivar o acordo de leniência. Publicado: 25.8.2020. Disponível em: <https://sidiojunior.blogspot.com/2020/08/a-participacao-do-ministerio-publico-e.html>. Acesso em: 8.12.2024, às 17h57.

[15] Lei n. 8.137, de 27.12.1990, art. 16:

Parágrafo único. Nos crimes previstos nesta Lei, cometidos em quadrilha ou coautoria, o coautor ou partícipe que através de confissão espontânea revelar à autoridade policial ou judicial toda a trama delituosa terá a sua pena reduzida de um a dois terços.

 [16] MESQUITA JÚNIOR, Sidio Rosa de. A participação do Ministério Público é imprescindível para efetivar o acordo de leniência. Publicado: 25.8.2020. Disponível em: <https://sidiojunior.blogspot.com/2020/08/a-participacao-do-ministerio-publico-e.html>. Acesso em: 8.12.2024, às 17h57.

[17] MESQUITA JÚNIOR, Sidio Rosa de. Comentários à lei antidrogas: ei n. 11.343, de 23.8.2006. São Paulo: Atlas, 2007. p. 114-116.

[18] MORO, Sérgio Fernando. Considerações sobre a operação mani pulite. Artigo publicado na Revista do Conselho da Justiça Federal: R. CEJ, Brasília, n. 26, p. 56-62, jul./set. 2004. In MESQUITA JÚNIOR, Sidio Rosa de. O artigo de autoria do Juiz Federal Sérgio Fernando Moro, de 2004, sobre a Operação Mãos Limpas, "Mani Pulite", evidenciando suas práticas na Operação Lava Jato. Estudos jurídicos e filosóficos. sidiojunior.blogsport.com, 15.9.2015. Disponível em: <https://sidiojunior.blogspot.com/search?q=mani+pulite>. Acesso em: 12.12.2024, às 18h44.

[19] HEGEL, Georg Wilhelm Frieddrich. Princípios de filosofia do direito. Lisboa: Guimarães, 1990. p. 104.