Heródoto (485?-420
a.C), em suas Histórias (Livro III, §§ 80-82), trouxe uma Discussão Célebre, reproduzida por Bobbio, sendo que deste extraio:
Uma história das tipologias das formas de
governo, (...) entre três persas-Otanes, Megabises e Dario-sobre a melhor
forma de governo a adotar no seu país depois da morte de Cambises. O episódio,
puramente imaginário, teria ocorrido na segunda metade do século VI
antes de Cristo, mas o narrador, Heródoto, escreve no século seguinte.
De qualquer forma, o que há de notável é o grau de desenvolvimento que já tinha
atingido o pensamento dos gregos sobre a políticaura século antes da grande
sistematização teórica de Platão e Aristóteles (no século IV).
A passagem é verdadeiramente exemplar
porque, como veremos, cada uma das três personagens defende uma das três formas de governo que poderíamos denominar de
"clássicas" - não só porque foram transmitidas pelos autores
clássicos mas também porque se tornaram categorias da reflexão política
de todos os tempos (razão por que são clássicas mas igualmente
modernas). Essas três formas são: o governo de muitos, de poucos e de um
só, ou seja, "democracia", "aristocracia" e "monarquia",
embora naquela passagem não encontremos ainda todos os termos com que
essas três modalidades de governo foram consignadas à tradição que
permanece viva até nossos dias. Dado o caráter exemplar do trecho, e sua
brevidade, convém reproduzi-lo integralmente:
"Cinco dias depois de os ânimos se
haverem acalmado, aqueles que se rebelaram contra os magos examinaram a
situação; as palavras que disseram então pareceriam incríveis a alguns gregos,
mas foram realmente pronunciadas.
Otanes propôs entregar o poder ao povo
persa, argumentando assim: 'Minha opinião é que nenhum de nós deve ser feito
monarca, o que seria penoso e injusto. Vimos até que ponto chegou a
prepotência de Cambises, e sofremos depois a dos magos. De que forma
poderia não ser irregular o governo monárquico se o governo monárquico
se o monarca pode fazer o que quiser, se não é responsável perante nenhuma
instância?
Conferindo tal poder, a monarquia afasta
do seu caminho normal até mesmo o melhor dos homens. A posse de grandes
riquezas gera nele a prepotência, e a inveja é desde o princípio parte
da sua natureza. Com esses dois defeitos, alimentará todas as
malvadezas: cometerá de fato os atos mais reprováveis, em alguns casos devido
à prepotência, em outros à inveja. Poderia parecer razoável que o monarca
e tirano fosse um homem despido de inveja, já que possui tudo.
Na verdade, porém, do modo como trata os
súditos demonstra bem o contrário: tem inveja dos poucos bons que
permanecem, compraz-se com os piores, está sempre atento às calúnias. O
que há de mais vergonhoso é que, se alguém lhe faz homenagens com
medida, crê não ter sido bastante venerado; se alguém o venera em
excesso, se enraivece por ter sido adulado. Direi agora, porém, o que é
mais grave: o monarca subverte a autoridade dos pais, viola as mulheres,
mata os cidadãos ao sabor dos seus caprichos.
O governo do povo, porém, merece o mais
belo dos nomes, 'isonomia'; não faz nada do que caracteriza o
comportamento do monarca. Os cargos públicos são distribuídos pela
sorte; os magistrados precisam prestar contas do exercício do poder;
todas as decisões estão sujeitas ao voto popular. Proponho, portanto,
rejeitarmos a monarquia, elevando o povo ao poder o grande número faz
com que tudo seja possível'.
Esse foi o parecer de Otanes. Megabises,
contudo, aconselhou a confiança no governo oligárquico: 'Subscrevo o que
disse Otanes em defesa da abolição da monarquia; quanto à atribuição do
poder ao povo, contudo, seu conselho não é o mais sábio. A massa inepta
é obtusa e prepotente; nisto nada se lhe compara. De nenhuma forma se
deve tolerar que, para escapar da prepotência de um tirano, se caía sob
a da plebe desatinada. Tudo o que faz, o tirano faz conscientemente; mas
o povo não tem sequer a possibilidade de saber o que faz. Como poderia
sabê-lo, se nunca aprendeu nada de bom e de útil, se não conhece nada
disso, mas arrasta indistintamente tudo o que encontra no seu caminho?
Que os que querem mal aos persas adotem o partido democrático; quanto a
nós, entregaríamos o poder a um grupo de homens escolhidos dentre os
melhores - e estaríamos entre eles. É natural que as melhores decisões sejam
tomadas pelos que são melhores'.
Foi esse o parecer de Megabises. Em
terceiro lugar, Dario manifestou sua opinião: 'O que disse Megabises a
respeito do governo popular me parece justo, mas não o que disse
sobre a oligarquia. Entre as três formas de governo, todas elas
consideradas no seu estado perfeito, isto é, entre a melhor democracia,
a melhor oligarquia e a melhor monarquia, afirmo que a monarquia é
superior a todas.
Nada poderia parecer melhor do que
um só homem- o melhor de todos; com seu discernimento, governaria o povo de modo
irrepreensível; como ninguém mais, saberia manter seus objetivos
políticos a salvo dos adversários.
Numa oligarquia, é fácil que nasçam
graves conflitos pessoais entre os que praticam a virtude pelo bem
público: todos querem ser o chefe, e fazer prevalecer sua opinião,
chegando por isso a odiar-se; de onde surgem as facções, e delas os
delitos. Os delitos levam à monarquia, o que prova que esta é a melhor
forma de governo.
Por outro lado, quando é o povo que
governa, é impossível não haver corrupção na esfera dos negócios
públicos, a qual não provoca inimizades, mas sim sólidas alianças entre
os malfeitores: os que agem contra o bem comum fazem-no conspirando
entre si. É o que acontece, até que alguém assume a defesa do povo e põe
fim às suas tramas, tomando-lhes o lugar na admiração popular; admirado
mais do que eles, torna-se monarca. Por isso também a monarquia é a melhor forma de governo.
Em suma, para dizê-lo em poucas palavras:
de onde nos veio a liberdade? Quem a deu? O povo, uma oligarquia, ou um
monarca?
Sustento que, liberados por obra de um só
homem, devemos manter o regime monárquico e, além disso, conservar
nossas boas instituições pátrias: não há nada melhor'."
A passagem é tão clara que é quase
desnecessário comentá-la. (...)[1]
Habermas e Luhmann
já evidenciaram que a ditadura da maioria não é democracia. Lamentavelmente, um
povo inculto é dominado, apenas dominado, e piora a situação do Estado. Isso
verificamos ontem!
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