quarta-feira, 22 de abril de 2009

O fatualismo constitui grosseiro reducionismo da experiência jurídica

1. FINALIDADE

O presente texto não tem a pretensão de ser um artigo jurídico, mas um ensaio que visa a esclarecer a cientificidade do Direito, exigindo ponderações, acerca das soluções aos fatos sociais graves, melhores que as que grassam nas feiras, botecos, bailes populares etc. Então, preciso convencer meus alunos de que a ciência do Direito deve ser discutida por cientistas, mediante linguagem e método de estudo próprios.

A matéria jornalística abaixo, a qual versa sobre a imposição de estupro como pena imposta a uma moça por “crime” praticado por seu irmão, adolescente de 12 anos de idade, será objeto de cobrança nas próximas avaliações escritas que serão elaboradas, razão da produção do pequeno texto explicativo.

Fui muito severo em minhas avaliações acadêmicas, mas mudei minha postura, passando a concordar com Vasco Pedro Moretto, no sentido de que a prova deve constituir um momento privilegiado de estudo,[1] razão de estar antecipando aos meus alunos uma parte do que lerão no momento da avaliação escrita.

2. DIREITO É CIÊNCIA

A fragmentariedade do conhecimento científico leva ao surgimento de ciências autônomas, mas vejo o Direito como a ciência que estuda as normas jurídicas e suas coercibilidades visando ao bem-estar social. Desse modo, a autonomia dos ramos do Direito é apenas didática, não adotando a postura que entende existirem várias ciências jurídicas autônomas.[2]

Não me canso de citar Luís Barroso para dizer que a maioria das soluções dos problemas da sociedade complexa são metajurídicas[3]. Todavia, as pessoas não pensam assim. Hoje, enquanto Professor de Instituições de Direito Público e Privado na Universidade de Brasília, devo alertar meus alunos para a fragmentariedade do conhecimento científico, buscando demonstrar que, ainda que ele contenha falhas, é mais seguro que o conhecimento vulgar. Nesse ponto, buscamos apoio em Bertrant Russel para esclarecer que é maior a probabilidade de erro nas teorias não científicas, o qual afirma: “A ciência, em nenhum momento, está inteiramente certa, mas é raro estar inteiramente errada e, normalmente, tem maior chance de estar certa que as teorias não-científicas. Portanto, é racional aceitá-la hipoteticamente”.[4]

Neste semestre letivo, um aluno de uma faculdade privada afirmou que eu estava errado quando disse à turma que as leis devem conter linguagem técnica, eis que o Direito é ciência e como tal merece ser tratado. Todavia, ele pretendia que – como as normas jurídicas se dirigem ao povo – elas devem ser completamente compreendidas pela população. Rechaço esta idéia porque senão seria desnecessário o Curso de Direito para formação de juristas. Seriam suficientes as experiências populares.

3. FATUALISMO REDUCIONISTA

Todo jusnaturalismo está calcado em idéias e valores universais dados por Deus (jusnaturalismo teológico) ou construídos segundos uma perspectiva laica, em que a origem primeira das coisas está além da física e, portanto, fora do alcance da racionalidade humana (jusnaturalismo metafísico).

O positivismo representa a busca do homem, por meio do conhecimento, de superar a organização natural das coisas no universo. Todavia a teoria do conhecimento entrou em crise dizendo-se que o positivismo nos levou à construção de conceitos estéreis e pouco críveis. Talvez por isso, Habermas afirma que “Kant caiu no descrédito porque, valendo-se dos fundamentos transcendentais, criou uma nova disciplina: a teoria do conhecimento”.[5]

Pessoalmente, estou mais para Heidegger e para Sartre, mas não posso negar a influência que as teorias sistêmicas exercem sobre o ambiente acadêmico brasileiro. Particularmente, concordo com Luigi Ferrajoli, o qual afirma ser a proposta de Luhmann jusnaturalista, expondo:

“Luhmann parece relutante a esclarecer se sua teoria se limita a dizer como vão as coisas ou mesmo se aspira ainda sugerir-nos como as coisas não podem não andar, ou pior, devam não andar. E acaba freqüentemente por equiparar subrepticiamente a sua descrição ‘científica’ do mundo como é a tese, não importa se otimista ou pessimista, que o mundo não pode ser de outro modo. Aqui é evidente a falácia jusnaturalista. Da tese (opinativa) de que este mundo é existente, isto é de um juízo de fato, se deriva um juízo de valor ou, o que dá no mesmo, de necessidade: precisamente da direita, que este é o melhor dos mundos possível; da esquerda, que este mundo, por sendo péssimo, é o único mundo possível, sendo necessário ou inevitável. É assim que o cientificismo sociológico se converte em uma nova filosofia da história e uma nova metafísica determinista”.[6]

Habermas, por sua vez, apresenta uma filosofia que exige conhecimentos multidisciplinares, propondo candidamente um consenso pressuposto que só poderia ser possível em democracias ideais. Embora ele mencione Freud, parece olvidar-se de que o “isso” (este é denominado de “id” na Psicologia Clínica. Esta não foi proposta por Freud[7]) representa a maior parte do psiquê. Todavia, devo afirmar como Campilongo porque o “fatualismo” representa um grosseiro reducionismo da experiência jurídica.[8]

4. SOLUÇÃO "JURÍDICA" ABSURDA
Ninguém duvida que o Direito formal é seletivo. Entretanto, não será correto propor a aceitação do “Direito achado na rua”. Este não é científico, nem pode ser melhor que aquele estabelecido mediante métodos seguros de estudos. Outrossim, não se pode pretender um Direito alternativo, ou seja, fora do Direito, porque senão será outra coisa, um não Direito, ou seja, quando muito, pode-se propor um Direito renovado.

A notícia que se segue representa um “Direito” dos povos, tão rudimentar e bárbaro quando aquele da antiguidade. Leia-se a seguir:

“Paquistão: estupro como punição.

Governo indeniza professora violentada por quatro homens por ordem de um tribunal. Seu crime: ser irmã de jovem que namorou mulher de outra casta.

Da redação

O estupro de uma professora de 18 anos, punida por um conselho tribal por um crime cometido por seu irmão de 12 anos, gerou um escândalo tão grande dentro e fora do Paquistão que até o governo federal teve que intervir para melhorar a imagem do país. Sob ordens do presidente Pervez Musharraf, a Ministra Paquistanesa de Assuntos Femininos, Attiya Anaytullah, entregou ontem à família da moça um cheque de indenização de US$ 8 mil. e prometeu que uma escola será construída em homenagem à vítima, Mukhtar Mai.

Mai, da casta Gujjar, foi violentada quatro vezes no dia 22 de junho por ordem de juízes tribais da região de Punjab, como um castigo pelo fato de seu irmão Abdul Shakoor ter se relacionado com Salma Bibi, uma mulher de 22 anos pertencente a uma casta superior, os Mastoi. A polícia paquistanesa prendeu ontem um dos estupradores, Abdul Khaliq, mas continua à procura dos outros três. Oito familiares dos suspeitos foram detidos, como medida de pressão para que eles se entreguem às autoridades.

A sentença da Jirga local (tribunal popular) foi decidida há um mês. Apesar de os tribunais tribais serem ilegais, eles ainda são muito procurados pelas populações das áreas rurais. nos últimos dias, porém, a comissão dos direitos humanos do Paquistão tem pedido com insistência o fim das punições tribais.

Abdul, o irmão da vítima, também não saiu ileso do caso. Por ter se relacionado com Salma, o menino recebeu uma surra com pedaços de paus por parte da família da moça, que depois recorreu ao tribunal tribal.

A sentença contra Mai foi cumprida por dois irmãos e um primo de Salma Bibi, além de um dos membros da Jirga, em uma casa de barro no povoado de Meerwala, enquanto do lado de fora cerca de 500 pessoas gritavam e davam gargalhadas. ‘‘Eu rezei e implorei, mas eram como animais’’, conta Mai. ‘‘Um deles colocou uma arma na minha cabeça enquanto os outros arrancavam minha roupa’’. Ela ainda foi obrigada a voltar nua para casa.

Medo

A família da jovem ficou uma semana paralisada de medo e impotência. Eles pertencem à tribo Gujjar, casta inferior à Mastoi — que é muito mais influente. Por isso, temiam denunciar o caso e estimular as represálias da tribo Mastoi. No fim de semana passado, um grupo de Advogados apresentou queixa formal à polícia de Meerwala.

Os pais do garoto agora acusam a tribo Mastoi de fabricar as acusações para esconder o fato de o menino ter sido Sodomizado por três homens Mastoi. Eles contaram à polícia que seu filho foi vítima de abusos sexuais quando trabalhava num campo, em junho. Quando ele ameaçou contar tudo, os homens o trancaram num quarto com Salma e o acusaram de manter relações com ela.

Segundo os moradores de Meerwala, este foi o segundo estupro cometido na região recentemente. Há uma semana, uma garota de uma vila próxima se suicidou depois de ter sido violentada por dois homens de tribos locais. Dois suspeitos foram presos. Nas zonas rurais do Paquistão onde imperam os tribunais tribais, a sentença por infidelidade feminina, comprovada ou não, é quase sempre a morte. Segundo estudo citado pelo jornal The Times, mais de 300 mulheres são assassinadas a cada ano no Paquistão em nome da honra. E uma violação ocorre a cada duas horas”.[9]

5. PARA NÃO CONCLUIR

Sou parceiro do POSEAD, estando coordenando pós-graduação lato sensu que tem a marca Gama Filho. Em tal posição, devo atualizar os textos da pós-graduação à distância e, diante da proposta institucional de apresentar temas para reflexão sob a provocação de “não concluir”, resolvi apenas chamar a atenção do leitor para algumas indagações:

a) o Direito é ciência ou parte da filosofia? Caso se conclua que o Direito é ciência, o julgamento exposto é invalido porque contraria o Direito formal do Paquistão. De qualquer modo, será mesmo inválido o julgamento que estiver amparado pela vontade do povo paquistanês, o qual prefere tais julgamentos tribais?

b) sendo a legitimação anterior ao Direito, leis como a decorrente da sentença tribal exposta não seriam válidas?

c) havendo uma predominância de vontade pelos julgamentos tribais e uma conformação local às sentenças proferidas, haverá justiça nas decisões?
Referências:

[1] Moretto, Vasco Pedro. Prova, um momento privilegiado de estudo, não um acerto de contas. Rio de Janeiro: DP&A, 2.001.
[2] MESQUITA JÚNIOR, Sidio Rosa de. Execução criminal: teoria e prática. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2007. p. 20-23.
[3] BARROSO, Luís Roberto. Temas de direito constitucional. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2.002. p. 76.
[4] RUSSELL, Bertrand. Meu desenvolvimento filosófico. Rio de Janeiro: Zahar, 1.980. p. 12.
[5] HABERMAS, Jürgen. Consciência moral e agir comunicativo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989. p. 18.
[6] FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão – teoria do garantismo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 719.
[7] BETTELHEIM, Bruno. Freud e a alma humana. 14. ed. São Paulo: Pensamento-Cultrix, 1.982. passim.
[8] CAMPILONGO, Celso Fernandes. Direito e democracia. 2. ed. São Paulo: Max Limonad, 2000. p. 16.
[9] CORREIO BRASILIENSE. Estupro como punição. Carderno Mundo, 6.7.2002. Disponível em: http://www2.correioweb.com.br/cw/EDICAO_20020706/pri_mun_ 060702_111.htm. Acesso em: 21.4.2009, às 8h,

3 comentários:

Anônimo disse...

Marta M. R. Camacho, Direito/UDF, turma 4142 – 7A, em mensagem eletrônica, disse:

Evidentemente, me faltam muitos conhecimentos para tecer algo sobre o Reducionismo que, referido em brevíssimas aulas da Metodologia Científica (Iniciação à Ciência) em nível de introdução aos Estudos da Linguagem associo-o ao Estruturalismo que também conheço minimamente aplicado na Linguística. Portanto, a vossa visão vem de estudos filosóficos aprofundados do mestre e doutorando que você é, os quais não possuo. Contudo, o relato seguinte à suas considerações acerca dos estupros como pena imposta, é absolutamente impensável, porém ocorreu e tomo a liberdade de enviar-lhe seguinte comentário. Nada técnico, mas, consegui ao menos, expor minha perplexidade, tentando comparar esta barbárie ao que também começo a estudar em Penal I.

Anônimo disse...

Continuando o comentário de Marta:

Enquanto aprendiz iniciante do Direito e ciosa de conhecimentos, devo dizer que as ocorrências - ao meu juízo barbáries - cometidas contra a jovem Mai e seu irmão no Paquistão por ordem de um tribunal tribal não é justiça e remonta sem dúvida alguma ao período da prática da Autotutela onde o "mais forte, o mais rico ou mais influente" tinha o poder de dispor da vida, do corpo, dos bens patrimoniais ou dos familiares do mais fraco ou devedor e, não venham me dizer que tais aberrações são parte da “cultura, da tradição de um povo”. Tal como naqueles remotíssimos séculos, ambos foram tratados como não-cidadãos, tampouco como pessoas. Foram vitimados por serem desiguais social e economicamente; por serem parte de uma parcela da sociedade em situação de discriminação, alvo de desrespeito e desvalorização tal como o são aqui na América Latina – uma mulher e um infante - talvez por serem pobres ou sem alfabetização para defenderem seus direitos pé de igualdade como vislumbra a Declaração Universal dos Direitos dos Homens. Foram ambos irmãos, vítimas de uma elite (castas superiores); vítimas da omissão ou e quem sabe, do desassistência do Estado para com sua população desafortunada. Juízes que se confundem com os Justiceiros, como nas favelas brasileiras. Tribunal ad hoc à ser referendado por qual Poder ou Autoridade daquele Estado? pasmén, a sociedade daquela localidade parece ter se acovardado e até delirou como a plebe na Grécia ao jogar seus criminosos ou inimigos dos poderosos nas arenas, às feras! Pavor ou temor? O ordenamento jurídico do Estado paquistanês não pretende o mínimo justo; não possui um código de penas de alcance indistinto à todos os seus cidadãos? E havendo o irmão de Mai, criança de 12 anos de idade, supostamente cometido o crime, a pena imposta à sua irmã, não passou da pessoa do acusado? Como pretende-se corrigir um crime, cometendo-se outros crimes (se é que existiu, pois relata o adolescente que foi ele o violentado com requintes cruéis por dias e por vários estupradores, entre nós brasileiros, pedófilos )? E as provas não foram colhidas e se colhidas, omitidas, por serem os verdadeiros criminosos parte de um seguimento social superior, isto também não é igualmente criminoso? Repulsiva a pena a que ambos foram submetidos. Foram eles as vítimas, equivocada e covardemente condenados. E que pena desta natureza reabilita? Ao meu ver, opinião de quem ainda tateia lições primeiras acerca do Direito Penal, o que parece ter havido em Punjab foi uma desobediência civil - reflexo da política aliada ao terrorismo afegão - generalizada às leis daquele Estado nacional em nome de uma conduta costumeira que, se não aboliu no passar dos milênios, está retomando hábitos primitivos ou simplesmente parece que estes nunca findaram. É a retomada da autotutela, da tal “justiça pelas próprias mãos” dito enquanto senso comum. Assustador a idéia de uma justiça feita fora dos foros especializados. Pouco antes de ingressar no curso de Direito assustei-me com as notícias da criação de um curso de Direito das Ruas pela UnB - também por ainda não conhecer as suas bases, seus fundamentos, seus objetos e fins - exatamente porque me sugeriam ser este um caminho para se dar voz à "justiceiros coletivos saídos do seio das comunidades” ou (embora não seja este o objetivo final desta novidade no Direito) dar voz à grupos com interesses vários nas tais de "camaras comunitárias” o que redundará em equívocos; em injustiças pela própria Justiça; em simulacros de julgamentos com aplicações de penas que apesar de não vislumbrar algo tão rudimentar como a de Punjab, podem contribuir para condenações; sentenças contrariando o que os nossos códigos penais preveem, o que nossas Leis estabelecem, o que nossa Constituição tutela, em detrimento da vontade popular ou de seus representantes. Assustador lá e cá.

Sidio Rosa de Mesquita Júnior disse...

A Marta foi uma grande aluna, mas - infelizmente - morreu antes de concluir o semestre letivo.

Deixou saudades!