1. FINALIDADE
Tratarei
aqui academicamente sobre um assunto que me incomoda que é a confusão existente
entre os institutos da graça e do indulto, especialmente porque a imprensa tem
alardeado sobre vídeo divulgado pelo Presidente da República, anunciando o
perdão a Daniel Silveira.
Inicialmente,
apresentarei o decreto destacado no mencionado vídeo, o qual foi publicado na
Seção 1 – Extra D, p. 1.[1]
Ele, portanto, existe no cenário jurídico nacional.
Como
a graça e o indulto constituem espécies de perdão do príncipe (indulgentia principis), dependem da
existência de um decreto para existirem, sendo que, até eventual declaração de
sua inconstitucionalidade pelo STF, estará em vigor, portanto, produzindo os seus
regulares efeitos.
Há
conselho do Presidente Michel Temer para que o atual Presidente da República revogue
o decreto e espere o trânsito em julgado final da condenação imposta a Daniel
Silveira,[2]
mas, parece, ele continua reticente.[3]
De todo modo, caso o Presidente não seja reeleito – não esqueçamos que ele era
contra a reeleição -, o que o suceder poderá revogar o Decreto de 21.4.2022.[4]
Não comparo os atos Presidenciais de 2010, concessão de refúgio a Cesare Battisti,
e de 2022, concessão de perdão a Daniel Lúcio Silveira, mas digo que os
fundamentos para revogação do decreto são aplicáveis ao último caso, ainda que
depois do prazo de 5 anos, ou seja, a revogação não estará sujeita ao prazo
decadencial quinquenal.[5]
2. O DECRETO DE 21.4.2022
Segundo
o que se ouve no áudio divulgado pelo Presidente da República, ele leu quase a
íntegra do decreto, o qual, tem a seguinte redação:
DECRETO
DE 21 DE ABRIL DE 2022
O
PRESIDENTE DA REPÚBLICA, no uso da atribuição que lhe confere o art. 84, caput,
inciso XII, da Constituição, tendo em vista o disposto no art. 734 do
Decreto-Lei n. 3.689, de 3 de outubro de 1941
- Código de Processo Penal, e
Considerando
que a prerrogativa presidencial para a concessão de indulto individual é medida
fundamental à manutenção do Estado Democrático de Direito, inspirado em valores
compartilhados por uma sociedade fraterna, justa e responsável;
Considerando
que a liberdade de expressão é pilar essencial da sociedade em todas as suas
manifestações;
Considerando
que a concessão de indulto individual é medida constitucional discricionária
excepcional destinada à manutenção do mecanismo tradicional de freios e
contrapesos na tripartição de poderes;
Considerando
que a concessão de indulto individual decorre de juízo íntegro baseado
necessariamente nas hipóteses legais, políticas e moralmente cabíveis;
Considerando
que ao Presidente da República foi confiada democraticamente a missão de zelar
pelo interesse público; e
Considerando
que a sociedade encontra-se em legítima comoção, em vista da condenação de
parlamentar resguardado pela inviolabilidade de opinião deferida pela
Constituição, que somente fez uso de sua liberdade de expressão.
DECRETA:
Art.
1º Fica concedida graça constitucional a Daniel Lucio da Silveira, Deputado
Federal, condenado pelo Supremo Tribunal Federal, em 20 de abril de 2022, no
âmbito da Ação Penal nº 1.044, à pena de oito anos e nove meses de reclusão, em
regime inicial fechado, pela prática dos crimes previstos:
I
- no inciso IV do caput do art. 23, combinado com o art. 18 da Lei n. 7.170, de
14 de dezembro de 1983; e
II
- no art. 344 do Decreto-Lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal.
Art.
2º A graça de que trata este Decreto é incondicionada e será concedida
independentemente do trânsito em julgado da sentença penal condenatória.
Art.
3º A graça inclui as penas privativas de liberdade, a multa, ainda que haja
inadimplência ou inscrição de débitos na Dívida Ativa da União, e as penas
restritivas de direitos.
Brasília,
21 de abril de 2022; 201º da Independência e 134º da República.
JAIR
MESSIAS BOLSONARO[6]
O Presidente da República apresenta condutas impetuosas e
desatinadas, razão de muitas vezes ter que voltar atrás. Por isso, considero
precipitado e desarrazoada a iniciativa de Advogados cariocas que procuram
sustar os efeitos do decreto em comento, até porque o caminho eleito por eles é
impróprio.[7]
O
parlamentar deixou de cumprir as condições da medida cautelar imposta
(monitoramento eletrônico), o que pode ensejar o seu retorno à prisão, uma vez
que o relator do processo sustenta não ser do conhecimento do STF a existência efetiva
do decreto concessivo de graça em seu favor. Com efeito, o Min. Alexandre de
Moraes, em 26.4.2022, despachou:
Em decisão proferida em 30.3.2022 e
referendada pelo Plenário do SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, foi determinada, entre
outras medidas, a fixação de multa diária de R$ 15.000,00 (quinze mil reais),
em relação a réu DANIEL SILVEIRA, no caso de descumprimento de qualquer das
medidas cautelares decretadas judicialmente.
Em sessão Plenária ocorrida no dia 20.4.2022,
o SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, por maioria, julgou o mérito da presente ação
penal, nos seguintes termos (Acórdão pendente de publicação):
Dispositivo: rejeito as preliminares, bem
como DECRETO A PERDA DE OBJETO dos agravos regimentais interpostos contra
decisão que indeferiu as diligências requeridas na fase do art. 10 da Lei
8.038/1990 e contra decisão que determinou a necessidade de juntada das
alegações finais para análise de requerimento de extinção de tipicidade e
punibilidade; e JULGO PARCIALMENTE PROCEDENTE A DENÚNCIA para: (a) ABSOLVER O
RÉU DANIEL LÚCIO DA SILVEIRA da imputação do art. 286, parágrafo único, do
Código Penal, considerada a continuidade normativo-típica em relação ao art.
23, II, da Lei 7.170/1983; (b) CONDENAR O RÉU DANIEL LÚCIO DA SILVEIRA: (b.1)
como incurso nas penas do artigo 18 da Lei 7.170/1983, por 2 (duas) vezes, na
forma do art. 71 do Código Penal, em virtude da ultra-atividade da lei penal
mais benéfica em relação ao artigo 359-L do Código Penal à pena 5 (cinco) anos
e 3 (três) meses de reclusão; (b.2) como incurso nas penas do art. 344 do
Código Penal, por 3 (três) vezes, na forma do art. 71 do Código Penal à pena 3
(três) anos e 6 (seis) meses de reclusão, bem como à pena de 35 (trinta e
cinco) dias-multa, no valor de 5 (cinco) salários mínimos dia-multa,
considerado o patamar vigente à época do fato, que deve ser atualizado até a
data do efetivo pagamento. Consideradas as penas para cada crime, a pena final
é de 8 (oito) anos e 9 (nove) meses de reclusão, em regime inicial fechado, e
35 (trinta e cinco) dias-multa, o valor do dia-multa equivalente a 5 (cinco)
salários mínimos, considerado o patamar vigente à época do fato, que deve ser
atualizado até a data do efetivo pagamento. Fica fixado o regime fechado para
o início do cumprimento da pena. Após o trânsito em julgado, ficam ainda
suspensos os direitos políticos do condenado, enquanto durarem os efeitos da
condenação, nos termos do art. 15 inciso III, da Constituição Federal; bem como
a perda do mandato parlamentar, em relação ao réu DANIEL LÚCIO DA SILVEIRA, nos
termos do art. 55, inciso VI e o § 2º, da Constituição Federal e artigo 92 do
Código Penal.
É fato notório que, no dia 21.4.2022, o
Excelentíssimo Presidente da República editou indulto individual em benefício
do réu DANIEL SILVEIRA.
......................................................................................................................
Diante de todo o exposto, DETERMINO:
(a) a juntada imediata do referido Decreto
Presidencial de Indulto aos autos;
(b) a intimação da Defesa do réu DANIEL
SILVEIRA para que, no prazo de 48 (quarenta e oito) horas, se manifeste sobre o
Decreto de Indulto Presidencial, bem como em relação ao descumprimento das
medidas cautelares por parte do réu DANIEL SILVEIRA. Após a manifestação da
Defesa, abra-se vista dos autos à Procuradoria-Geral da República, para
manifestação, no mesmo prazo de 48 (quarenta e oito) horas.
Diante da renúncia do advogado Jean Cléber
Garcia, OAB/DF 31.570 (eDoc. 893), à Secretaria para que proceda à retificação
da autuação.[8]
Daniel
Lúcio Silveira vem se apresentando pouco inteligente ao descumprir as medidas
cautelares determinadas, uma vez que a perda do mandato, o deixará desempregado
e inelegível. Também, não se sabe se o Presidente da República manterá o decreto
de perdão, o qual tem gerado grande repercussão em todo território nacional.
Não
se olvide que o Presidente da República pode aplicar a Súmula 473 do STF e
anular ou revogar o decreto, o que seria facilmente defensável juridicamente e
evitaria os desgastes que o perdão pode trazer aos envolvidos.
Caso o decreto seja mantido, conforme consta da decisão
monocrática transcrita, na parte que suprimi, poderá ser atacado, em controle
concentrado de constitucionalidade, perante o STF. Daí, não ter fundamentação
jurídica a pretensão dos Advogados cariocas que pretendem sustar os efeitos do
decreto em sede de Vara Federal (fato anteriormente mencionado neste texto).
Ora, a inconstitucionalidade em tese de uma norma não pode estar submetida ao
controle difuso de (in)constitucionalidade.
Essa discussão acerca da (in)constitucionalidade do decreto já
está colocada perante o STF pela Rede Sustentabilidade (ADPF n. 964-DF), pelo
Partido Democrático Trabalhista (ADPF n. 965-DF), pelo Cidadania (ADPF n.
966-DF) e pelo P-SOL (ADPF n. 967-DF), propostas em 22.4.2022, salvo a última,
protocolada em 23.4.2022. Elas foram distribuídas à Min.ª Rosa Weber, a qual
decidiu:
1. Trata-se de quatro arguições de
descumprimento de preceito fundamental, com pedido de medida liminar, propostas
pela REDE SUSTENTABILIDADE (ADPF 964/DF), pelo PARTIDO DEMOCRÁTICO TRABALHISTA
– PDT (ADPF 965/DF), pelo CIDADANIA (ADPF 966/DF) e pelo PARTIDO SOCIALISMO E
LIBERDADE – PSOL (ADPF 967/DF), em face de Decreto de 21 de abril de 2022,
editado pelo Presidente da República, que concedeu indulto individual a Daniel
Lucio da Silveira, Deputado Federal, condenado criminalmente por esta Suprema
Corte nos autos da AP 1.044/DF.
2. Os autores afirmam preenchidos todos os
requisitos necessários ao conhecimento das ADPF’s, pois o Decreto impugnado (i)
configura-se como ato do poder público e (ii) viola, de forma direta, preceitos
fundamentais constantes da Carta Política, além de satisfeito o pressuposto
negativo de admissibilidade (subsidiariedade), ante a ausência de qualquer
outro instrumento processual, na jurisdição constitucional, hábil a
questioná-lo.
3. Sustentam a nulidade do Decreto
presidencial, tendo em vista que concedeu graça constitucional a indivíduo que
ainda não foi condenado por decisão judicial transitada em julgado.
..........................................................................................................................
8. À alegação de que demonstrada a vulneração
dos preceitos fundamentais invocados (fumus boni juris) e o periculum in mora,
consubstanciado nos efeitos imediatos da concessão da graça, requerem, em
liminar, a suspensão, in totum, do Decreto de 21 de abril de 2022, editado pelo
Presidente da República, que concedeu indulto individual a Daniel Lucio da
Silveira, Deputado Federal, condenado criminalmente por esta Suprema Corte nos
autos da AP 1.044/DF e, sucessivamente, o reconhecimento, ao menos da manutenção
de todos os efeitos extrapenais da condenação criminal.
9. No mérito, pugnam pela procedência do
pedido, com a confirmação do teor da medida liminar requerida.
10. Reputo contemplar, a matéria, relevância
e especial significado para a ordem social e a segurança jurídica, pelo que
submeto, por analogia, a tramitação desta ADPF ao disposto no art. 12 da Lei
9.868/1999.
11. Requisitem-se informações ao Presidente
da República, a serem prestadas no prazo de 10 (dez) dias. Após, dê-se vista ao
Advogado-Geral da União e ao Procurador-Geral da República, sucessivamente, no
prazo de 05 (cinco) dias.
12. Por fim, considerando que as ADPF’s
964/DF, 965/DF e 966/DF, a mim distribuídas por prevenção, possuem idêntico
objeto ao desta arguição de descumprimento de preceito fundamental, determino a
tramitação conjunta dos feitos.[9]
Razões
relevantes foram inseridas nas petições iniciais, desde a impossibilidade de
haver indulto ou graça para o crime praticado contra o Estado democrático de
direito, até a violação de princípios constitucionais violadores da
administração pública. Tais aspectos serão enfrentados adiante.
3.
CONTEXTUALIZAÇÃO DA SITUAÇÃO DO PARLAMENTAR
Os pilares do
militarismo são a hierarquia e a disciplina, sendo que as diversas sanções
administrativas que a Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro impôs ao
ex-Soldado Daniel Lúcio Silveira evideciam que ele não foi um bom policial
militar. Ele se notabiliza pelas publicações em redes sociais, desde o tempo em
que estava em atividade na PMRJ, e iniciou uma série de ataques ao Supremo
Tribunal Federal, com destaque especial a alguns Ministros. Daí a sua prisão em
fragrante delito no dia 16.2.2021, isso nos autos do Inquérito 4.781-DF, isso
em razão de um vídeo publicado na seguinte direção eletrônica: <https://www.youtube.com/watch?v=jMfInDBItog>.
A prisão foi
determinada pelo Min. Alexandre de Moraes, tendo sido cadastrado paralelamente a
Petição n. 9456, que tramitou de 1.3.2021 a 23.6.2021. Também, há o
Inquérito 4.828-DF, autuado em 20.4.2020. Neste consta transcrições de
manuscritos de Allan dos Santos que evidenciam efetivos crimes contra o estado
democrático de direito, in litteris:
OBJETIVO: materializar a ira popular contra
os governadores/prefeitos; Fim intermediário: saiam às ruas; Fim último:
derrubar os governadores/prefeitos: meios.” (f. 104 do relatório da Polícia
Federal)[10]
Em uma conduta
acintosa ao povo brasileiro, Allan dos Santos, procurado pela Interpol,
notoriamente, esteve com Embaixador brasileiro em enterro de um astrólogo,
visto por muitos como intelectual. Nada foi feito para provocar a sua prisão.[11]
No entanto, tudo isso não passou de um simbolismo ideológico, em favor de uma
desordem antidemocrática que se objetiva. Nesse contexto, Daniel Silveira é
processado e sentenciado, em 20.4.2022.
Surgiram recursos
e, em 21.4.2022, adveio o famigerado decreto de perdão.[12]
Ocorre que a produção dos efeitos do decreto não é imediata, visto que o perdão
é um ato complexo, a ser confirmado pelo Juiz da Execução, assim como a
aposentadoria deverá ser confirmada pelo tribunal de contas.
4. GRAÇA E INDULTO
Um
Ministro Aposentado do STF cunhou o termo “operador do direito”,[13]
referindo-se aos juristas em geral. Isso é lamentável porque o Direito, assim
como as ciências em geral, pela própria natureza, tem conhecimento complexo,
não podendo ser relegado a meros operadores, como se fosse uma máquina. O
grande problema é que a doutrina jurídico-criminal brasileira é produzida por profissionais
que participam do sistema de justiça (Juízes, Advogados – públicos e privados
-, Delegados de Polícia etc.),[14]
fortalecendo a ideia de que somos meros operadores do Direito Criminal.
Graça
e indulto têm distinções, sólida doutrina as apresenta. No entanto, a doutrina
e a jurisprudência brasileiras passaram a considerar a graça como espécie de
indulto, ou seja, o indulto individual. Daí, o decreto em comento conceder
graça (art. 1º) e o Min. Alexandre de Moraes ter mencionado a notoriedade da
concessão de indulto individual, confusão própria do nosso ostracismo
jurídico-criminal.[15]
A
indulgentia principis não é admitida por todos. Alguns entendem ser
incabível fazer do Poder Executivo um órgão revisional das decisões judiciais.[16]
De todo modo ele está previsto na legislação pátria, razão de, em 1997, ter
publicado academicamente:
A
doutrina que admite a previsão do indulto no ordenamento jurídico pugna por sua
utilização moderada. Infelizmente, a indulgentia principis tem sido
utilizada excessivamente, transformando-se em um insulto para a Justiça, visto
que não adianta movimentar todo Poder Judiciário para a prolação de uma decisão
da qual o Poder Executivo retira a eficácia.[17]
O
decreto em comento é o pior exemplo de motivação inadequada para a sua
concessão, porque transforma o Poder Executivo em Poder Moderador, incompatível
com a democracia. Com efeito, a sua motivação, acerca da liberdade de
expressão, segue diametralmente oposta ao exame de mérito concretizado pelo
STF.
Calcado
em boa doutrina e naquilo que já publiquei, algumas distinções entre indulto e
graça tornam o decreto inválido, a saber:
Graça |
Indulto |
Sempre
dependerá de requerimento do interessado |
Pode
ser requerido ou concedido de ofício |
Sempre
se vinculará ao motivo determinante |
Pode
ser imotivado |
Dependerá
demonstração das razões de que o perdoado a merecer |
Pode
ser vinculada a nada |
Sempre
individual |
Pode
ser individual e coletivo |
Tratando
dos incidentes da execução criminal, em 1998, sobre a anistia e os perdões, escrevi:
Em
nosso país, já verificamos anistias e indultos que visavam a beneficiar,
injustificadamente, determinadas pessoas. Os dois institutos geram a extinção
da punibilidade, sendo fácil a aceitação dos mesmos quando não há uma conotação
política com evidentes interesses escusos.[18]
O
caso vertente tem tudo de errado, até porque não há pedido formal da graça, nem
demonstração pelo interessado do seu merecimento. Pior, a motivação tende a
menosprezar o julgamento do STF, uma vez que a liberdade de expressão tem
limites.
Em nome da liberdade de expressão poderemos ser racistas,
homofóbicos, xenofóbicos, opressores dos mais pobres etc.?
Não
se demonstra o requerimento formal do interessado para a concessão da graça.
Por mais que o Presidente da República desconheça o ordenamento jurídico,
deveria saber que a graça constitui incidente na execução criminal. Mais,
ainda, o nosso Código de Execução Criminal (Lei n. 7.210, de 11.7.194) dispõe:
Título
VII
Dos
Incidentes na Execução
........................................................................................................................
CAPÍTULO
III
Da Anistia e do Indulto
..........................................................................................................................
Art. 188. O indulto individual poderá ser provocado
por petição do condenado, por iniciativa do Ministério Público, do Conselho
Penitenciário, ou da autoridade administrativa.
Art. 189. A petição do indulto, acompanhada dos
documentos que a instruírem, será entregue ao Conselho Penitenciário, para a
elaboração de parecer e posterior encaminhamento ao Ministério da Justiça.
Art. 190. O Conselho Penitenciário, à vista dos autos
do processo e do prontuário, promoverá as diligências que entender necessárias
e fará, em relatório, a narração do ilícito penal e dos fundamentos da sentença
condenatória, a exposição dos antecedentes do condenado e do procedimento deste
depois da prisão, emitindo seu parecer sobre o mérito do pedido e esclarecendo
qualquer formalidade ou circunstâncias omitidas na petição.
Art. 191. Processada no Ministério da Justiça com
documentos e o relatório do Conselho Penitenciário, a petição será submetida a
despacho do Presidente da República, a quem serão presentes os autos do
processo ou a certidão de qualquer de suas peças, se ele o determinar.
Art. 192. Concedido o indulto e anexada aos autos
cópia do decreto, o Juiz declarará extinta a pena ou ajustará a execução aos
termos do decreto, no caso de comutação.
Art. 193. Se o
sentenciado for beneficiado por indulto coletivo, o Juiz, de ofício, a
requerimento do interessado, do Ministério Público, ou por iniciativa do
Conselho Penitenciário ou da autoridade administrativa, providenciará de acordo
com o disposto no artigo anterior.
Considerando
a necessidade de o decreto estar em conformidade com a lei, em face do vício de
forma, ter sido concedida a graça sem requerimento de qualquer pessoa física ou
jurídica legitimada e sem prévia manifestação do Conselho Penitenciário, o
Decreto de 21.4.2022 – em comento – é nulo.
Alhures,
academicamente, escrevi:
A
graça é uma causa de extinção da punibilidade não contemplada pelo legislador
na elaboração da LEP. Hélio Tornaghi, apud Paulo Lúcio Nogueira, ensina
que “a graça se recomenda por ato de heroísmo, por serviço de alto valor,
pela necessidade de amparar a família do condenado, por alguma razão de Estado
e por inúmeros outros motivos de grande valor social”.[19]
Entretanto, o legislador considerou a graça absorvida pelo indulto individual, ex
vi do disposto no n. 172 da Exposição de Motivos da LEP.[20]
Mesmo
considerando a graça uma espécie de indulto, não se deve olvidar de ela guarda
as peculiaridades da origem, ou seja, exige a demonstração de alto valor do
perdoado
Na
Constituição Federal, também, o art. 84, inc. XII, não menciona a graça. Já o seu
art. 5º, inc. XLIII, veda a concessão de “graça ou anistia” a
quem praticar crime hediondo ou assemelhado. Ora, sempre sustentei que não
podemos confundir, enquanto intérpretes, aquilo que a legislação distinguiu.
Por isso, não verificando qualquer ato meritório do perdoado, afirmo ser nulo o
Decreto de 21.4.2022.
Não
podemos nos olvidar de que o perdoado simplesmente desconsiderou todas as determinações
judiciais, a partir de 21.4.2022, o que é equivocado porque, conforme ensina Renato
Marcão, o perdão não é autoexecutável, tanto que sua aplicação depende de
decisão judicial.[21]
Eu
não poderia deixar de mencionar a posição sobre o decreto que é objeto de
análise, in verbis:
Ademais, pela leitura do decreto presidencial, fica muito claro
que ele não se destina a extinguir penas de um criminoso, mas questionar a
própria condenação do mais alto tribunal do país.
Vale dizer, esta (des)graça funcionaria como uma
anulação ou revisão da condenação do S.T.F.
Absurdo e incompatível com o Estado Democrático de
Direito, previsto na Constituição da República.
Mesmo que não seja ela anulada, sua eficácia não
abrange os efeitos da condenação como fato jurídico, que determina a incidência
de outras normas jurídicas.[22]
É
nesse contexto de que o Poder Executivo não pode ser superior ao Poder
Judiciário e de que ele não é revisor das decisões judiciais que defendo a absoluta
nulidade do decreto que concedeu, sem motivação adequada, a graça a Daniel
Lúcio Silveira.
CONCLUSÃO
Virgílio
Afonso da Silva já nos ensinou de que a classificação das normas
constitucionais quanto à eficácia (em plena, limitada – programática e institucional
-, e contida) é equivocada porque todos os direitos fundamentais são ponderáveis.[23]
Desse modo, invocar o art. 5º, inc. IX, da Constituição Federal para propor o
direito irrestrito aos ataques à democracia, ao crime organizado tendente ao
retorno do totalitarismo militar e do Ato Institucional n. 5 (AI-5), o que
possibilitou a destituição de três Ministros do STF, dentre eles o saudoso
Evandro Lins e Silva, será um absurdo.
Diversamente
do que o sentenciado divulga, a liberdade de expressão não pode obstar a tipicidade
do crime de ameaça, do de calúnia, do de injúria e, pior, do crime contra a
segurança nacional (Lei n. 7.170, de 14.12.1983, art. 18). O Capitão da reserva
não remunerada editou a Lei n. 14.197, de 1.9.2021, o que levou Daniel Lúcio
Silveira a pedir a abolitio criminis, o que não era o caso porque o que
houve foi o deslocamento do tipo para o art. 359-L do Código Penal, com pena
ainda mais severa. Daí o STF ter indeferido o pedido formulado pelo parlamentar
para que fosse declarada extinta a punibilidade, em face da suposta abolitio
criminis. Consequentemente, fez incidir a pena mais branda aplicável ao
caso.
Kant
defendia que o soberano só poderia perdoar no caso de crime de lesa majestade
(contra ele mesmo), o que não poderia ocorrer se a impunidade pudesse ser
perigosa para a segurança pública.[24]
Nesse contexto, sem trânsito em julgado da condenação, será estranho o perdão
ao juridicamente inocente, até porque o seu comportamento demonstra uma ameaça
à necessária tripartição de poderes.
Nos
governos anteriores, era comum o indulto natalino e, normalmente, era
prevista a comutação da pena (indulto parcial) ao inocente sentenciado que exclusivamente
tivesse recorrido (eis, que a pena não poderia ser majorada). Bolsonaro aboliu
o indulto coletivo e concedeu graça ao Deputado Daniel Silveira, em evidente contradictio
in terminis. A graça, desde o início da vigência da última Constituição
Federal, não a conhecemos. Porém, quem é contra o perdão, de forma atabalhoada,
o concedeu.
Espero
que o STF cumpra o seu papel e declare a nulidade do decreto em comento, eis
que apresenta vício de forma, desvio de finalidade e, essencialmente, motivação
nula.
[1] IMPRENSA OFICIAL.
Disponível em: <https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/decreto-de-21-de-abril-de-2022-394545395>.
Acesso em: 27.4.2022, às 17h43.
[2] SOUZA, Renata. Temer Sugere que Bolsonaro revogue perdão a
Silveira e aguarde a conclusão do julgamento: ex-Presidente afirmou que decreto
anterior ao trânsito em julgado pode levar à crise institucional. São Paulo:
CNN, 22.4.2022, às 17h53. Disponível em: < https://www.cnnbrasil.com.br/politica/temer-sugere-que-bolsonaro-revogue-perdao-a-silveira-e-aguarde-conclusao-do-julgamento/>. Acesso em 26.4.2022, às 17h53.
[3] SOARES, Ingrid. “Não”, responde Bolsonaro a conselho de
Temer para revogar perdão a Silveira. 22.4.2022, às, 19h04. Disponível em: <https://www.correiobraziliense.com.br/politica/2022/04/5002553-nao-responde-bolsonaro-a-conselho-de-temer-para-revogar-perdao-a-silveira.html>.
Acesso em: 26.4.2022, às 21h.
[4] Isso
já aconteceu uma vez. Na Extradição n. 1085, o STF decidiu que caberia ao
Presidente da República decidir sobre a extradição de Cesare Battisti. O então
AGU referendou o Parecer AGU/AG-17/2010, de 28.12.2010 (Disponível em: <http://direito.folha.uol.com.br/uploads/2/9/6/2/2962839/parecer_da_agu.pdf>.
Acesso em: 30.4.2022, às 15h), acolhido pelo então Presidente da República,
isso no último dia do mandato da sua reeleição, 31.12.2010. O parecer aprovado
pelo Presidente da República vincula toda administração pública federal.
Battisti foi liberado pelo STF, uma vez que o italiano enviou missiva ao STF
pedindo a liberação e a Itália propôs a Reclamação 11243-DF. (inteiro teor do
acórdão disponível em: <https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=1495257>. Acesso em: 30.4.2022,
às 14h40). Segundo consta dos bastidores da história, quem trouxe Battisti ao
Brasil, prestes a ser extraditado para a Itália pela França, foi uma filha do
então Ministro de Justiça, um Advogado que veio a ser Ministro do STF – que julgou
o caso – e outro famoso Advogado brasileiro, notório simpatizante do MST e que
pediu o impedimento do então Presidente Fernando Collor.
Em
14.11.2017, Cesare Battisti impetrou Habeas Corpus n. 148.408-DF, preventivo,
contra potencial ato de extradição, cuja liminar foi deferida em 13.10.2017. Em
31.10.2017, o relator acolheu pedido de conversão do HC em reclamação. Em
15.1.2018, o relator decretou a prisão cautelar, o que resultou no Despacho n.
156 do então Presidente da República, publicado no DOU, Seção 1, de 14.12.2018,
n. 240-A, p. 24, que determinou a extradição de Cesare Battisti, sendo ele
preso na Bolívia no dia 12.1.20219, o que resultou no pedido de desistência, de
15.1.2019, homologado em 4.2.2019. (Todos os dados estão disponíveis em:
<https://sistemas.stf.jus.br/peticionamento/dashboard>. Acesso em:
1.5.2022, às 9h).
[5]
De todo modo, é marcante a ideologia determinante da motivação dos dois atos
presidenciais, atacáveis por violarem o princípio da impessoalidade.
[6] O decreto não
apresentar o número foge à regra da edição das leis, regulada pela Lei
Complementar n. 95, de 26.2.1998, e é incomum. Mas, isso não o invalida. Ocorre
que, a postura eleitoreira, marcantemente ideológica, e açodada do Presidente
da República acabou resultando nisso, um decreto sem número.
[7] HIRABAHASI, Gabriel. Justiça do RJ intima União para se
manifestar sobre o perdão a Daniel Silveira: Presidente Jair Bolsonaro assinou,
na última quinta-feira (21) decreto concedendo o perdão da pena ao deputado
federal Daniel Silveira (PTB-RJ). Brasília: CNN, 25.4.2022, às 18h50.
Disponível em: <https://www.cnnbrasil.com.br/politica/justica-do-rj-intima-uniao-para-se-manifestar-sobre-perdao-a-daniel-silveira/>. Acesso em 27.4.2022, às 16h08.
[8] STF. Tribunal Pleno. AP 1044-DF. Min. Alexandre de Moraes,
decisão monocrática, de 26.4.2022. Disponível em: <https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15350845185&ext=.pdf>.
Acesso em: 27.4.2022, às 16h51.
[9] STF. ADPF n. 967-DF.
Min. Rosa Weber, decisão monocrática de 25.4.2022. Disponível em: <https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15350841225&ext=.pdf>.
Acesso em: 28.4.2022, às 1h12.
[10] STF. IP 4828-DF. Min.
Alexandre de Moraes, decisão de 1.7.2021. Disponível em: <https://sistemas.stf.jus.br/peticionamento/api/peca/recuperarpdf/15346945140>.
Acesso em: 30.4.2022, às 16h02.
[11] REDAÇÃO.
Funeral de Olavo de Carvalho nos EUA reúne ex-chanceler e blogueiro foragido,
26.1.2022, às 19h29. Disponível em: <https://oantagonista.uol.com.br/brasil/funeral-de-olavo-nos-eua-reune-ex-chanceler-e-blogueiro-foragido/>.
Acesso em: 1.5.2022, às 7h36.
[12] O
senso comum empresta sentido depreciativo à palavra famigerado,
quando, no vernáculo, significa famoso, notável etc.
[13] Não mencionarei o
seu nome porque os maus exemplos merecem o esquecimento e a citação a eles,
inversamente, os prestigiará.
[14] A maioria desses
profissionais passa pelo concurso público. Nesse campo, vejo – assim como Lênio
Streck -, a teoria da graxa sobre rodas (há corrupção boa, pois ajuda o sistema
a funcionar), a teoria da bola de neve (corrupção sempre atrai corrupção,
virando bola de neve), a teoria do Estado vampiro (Estado cleptoclático, em que
os governantes manipulam para roubar), teoria dos testículos esmagados ou
despedaçados (aquele que pratica pequenos delitos e é perseguido pela polícia acabará
abandonado o lugar indo para outro) etc. nada mais produz do que concurseiros opacos,
que não gostam de pensar (STRECK, Lenio Luiz. A concursocracia, a teoria da
graxa e os testículos despedaçados. Consultor Jurídico, 6.4.2017, às 8h.
Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2017-abr-06/senso-incomum-concursocracia-teoria-graxa-testiculos-despedacados>.
Acesso em: 28.4.2022, às 2h16.
[15] BITENCOURT,
Cezar Roberto. Prefácio. In BUSATO, Paulo César; HUAPAYA, Sandro Montes.
Introdução ao direito penal: fundamentos para um sistema penal
democrático. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. p. XVIII:
Vivemos em nosso País, um
verdadeiro déficit intelectual em matéria penal, com decisões de extrema relevância
sendo tomadas a partir, somente, dos anseios de uma sociedade sedenta mais por
punição do que propriamente, pela diminuição da violência.
[16] Cite-se como exemplo:
NORONHA, Edgard Magalhães. Direito penal. 4. ed. São Paulo: Saraiva,
1967. v. 1, p. 462.
[17] MESQUITA JÚNIOR,
Sidio Rosa de. Prescrição penal. São Paulo: Atlas, 1997. p. 49.
[18] MESQUITA JÚNIOR,
Sidio Rosa de. Manual de execução penal. São Paulo: Atlas, 1999. p. 291.
[19]
NOGUEIRA, Paulo Lúcio. Comentários à lei de execução penal. São Paulo:
Saraiva, 1990. p. 224.
[20] MESQUITA
JÚNIOR, Sidio Rosa de. Execução criminal: teoria e prática. 7. ed. São
Paulo: Atlas, 2014. p. 245.
[21] MARCÃO,
Renato. Curso de execução penal. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p.
343.
[22] JARDIM,
Afrânio Silva. Breves notas sobre o instituto da graça. Empório do Direito,
26.4.2022. Disponível em: <https://emporiododireito.com.br/leitura/breves-notas-sobre-o-instituto-da-graca>.
Acesso em: 1.5.2022, às 15h37.
[23] SILVA,
Virgílio Afonso da. Direitos fundamentais: conteúdo essencial,
restrições e eficácia. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2010. p. 254.
[24] KANT,
Imannuel. Doutrina do direito. 2. ed. São Paulo: Ícone, 1993. p. 184.
Nenhum comentário:
Postar um comentário